Por Passa Palavra
Em meados de Setembro, ainda antes das eleições autárquicas, a Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP) anunciava a realização de duas manifestações, em Lisboa e no Porto. Ao contrário das habituais marchas, ambas as iniciativas percorreriam não ruas, praças ou avenidas, mas sim a ponte do Infante, no Porto, e a ponte 25 de Abril, em Lisboa.
Depressa, os meios de comunicação social acederam a diversos pareceres técnicos desfavoráveis à realização da manifestação na ponte 25 de Abril. Da Lusoponte ao Conselho de Segurança da Ponte 25 de Abril, passando pela Polícia de Segurança Pública (PSP), todos os relatórios alegaram riscos e inseguranças, secundarizando da sua análise o cariz pacífico da generalidade das manifestações organizadas pela central sindical. Apesar dos pareceres não serem vinculativos, o seu conteúdo foi evocado pelo governo, o qual proibiu a realização do evento, apresentando como alternativa a Ponte Vasco da Gama, muito maior e distante do centro da capital. A CGTP manteve a sua posição, argumentando com a falta de independência das instituições responsáveis pelos pareceres ou, no caso do Conselho de Segurança da Ponte 25 de Abril, a constante reserva à organização de iniciativas na ponte (corridas, por exemplo) que, no entanto, acabam por obter aprovação superior.
O braço de ferro entre a central sindical e o governo, representado pelo ministro da Administração Interna (MAI) Miguel Macedo, manteve-se ao longo de vários dias. De um lado, a CGTP, numa rara postura de intransigência, a afirmar que estava disposta a ir contra a decisão governamental; do outro, Miguel Macedo a aconselhar quem considere «ilegítima ou ilegal» a proibição a recorrer aos tribunais.
A CGTP acabou, no entanto, por recuar, optando pela travessia das pontes por autocarro, em fila organizada, de forma a bloquear o trânsito. Das reuniões com o MAI não há registo de qualquer ata publicada, desconhecendo-se as razões por trás de tal recuo: se, mais uma vez, a central sindical concedeu primazia “à unidade dos portugueses honrados” ou se as ameaças de repressão por parte do governo atingiram um ponto nunca antes alcançado. Em ambos os casos, trata-se de um passo atrás sem, aparentemente, dois passos em frente à vista. Mais constrangedor do que as acusações de traição e cobardia por parte de setores da esquerda críticos da CGTP, mas solidários com a iniciativa, foi o silêncio (ocasionalmente interrompido por tímidas defesas de honra) da maioria dos seus apoiantes.
Em paralelo, uma iniciativa anónima convocava o bloqueio do Porto de Lisboa, com vista a “apoiar a greve em curso dos estivadores”, “interromper a circulação de mercadorias no principal terminal de transporte marítimo de Portugal” e “parar um dos principais nós rodoviários, e também ferroviário, da cidade de Lisboa”. Embora se tivesse demarcado da iniciativa, o sindicato dos estivadores não a repudiou. De acordo com as declarações do presidente da organização, António Mariano, «Não faço ideia [de onde surgiu a ideia do bloqueio] mas, mesmo que soubesse, não diria, porque quem o convocou se quisesse identificar-se tinha-o feito. Agora o sindicato não foi».
No final de um dia chuvoso, o balanço resume-se a uma repetição do que tantas vezes já se viu, mas com menos uns milhares de pessoas. A tentativa de bloqueio, fortemente vigiada por polícias à paisana e sem a presença de trabalhadores da estiva, acabou por se limitar a uma manifestação que se dirigiu e se concentrou num dos acessos ao porto de Lisboa. No final de um dia chuvoso, como alguém escreveu, restava a imagem de uma classe operária no purgatório:
“As imagens da chegada dos autocarros a Alcântara no dia da manifestação da CGTP em que várias dezenas de veículos são recebidos por umas poucas centenas de pessoas e se acenam mutuamente carregam em si algo de trágico, principalmente pela separação e fatalidade que evocam. Separação no sentido em que são imagens que nos habituámos a ver em chegadas e partidas, que presumem o início e/ou o fim de uma viagem, ou seja, de uma aventura, e a consequente celebração de um afeto que se mantém apesar da cesura presencial. Ao simulacro da travessia correspondeu o simulacro de um reencontro reconstituído pela luta, de modo sincero e emocional, mas ainda assim meramente figurativo. Fatal porque as carrinhas não paravam e as portas não se abriam. Toda aquela gente tão cheia de alegria, de som e de fúria, toda aquela potência e vida encaixotada a passar para desaparecer não se sabe bem para onde, levada assim não se sabe por que razão, recordando imagens inomináveis do século passado”.
Uma semana depois, respondendo à convocatória do Que se Lixe a Troika! (QSLT), milhares de pessoas por todo o país participaram em concentrações e manifestações. Em Lisboa, entre 10 000 a 20 000 pessoas (números da organização) dirigiram-se da praça do Rossio à Assembleia da República. À sua espera, um palco onde viria a decorrer um misto de comício com espetáculo de variedades.
E pouco mais há a acrescentar.
E agora?
As últimas duas semanas demonstraram o quão o derrube do governo pelas ruas dificilmente se encontra na próxima esquina. Aliás, é cada vez mais evidente o fenómeno de deslocalização das esperanças em direção ao Tribunal Constitucional, anteriormente responsável pelo chumbo das reformas de «flexibilização» dos despedimentos de funcionários públicos.
O número de participantes nas duas últimas iniciativas organizadas pelo QSLT ficou muito aquém dos números alcançados nas manifestações de Setembro e de Março do ano passado. Um fenómeno que poderá ser explicado pelo desinteresse e boicote dos meios de comunicação mas que dificilmente se resume a tal. Neste sentido, a insistência numa estratégia específica – neste caso, a grande manifestação de massas – perde a sua viabilidade a partir do momento em que não consegue gerar resultados específicos. O problema do ativismo em geral é imputar a sua mundividência à globalidade das pessoas: quando se constatam as diferenças de postura, resta a incompreensão e a indignação com quem, inicialmente, participa em manifestações não porque gosta, mas porque precisa; e, concomitantemente, com quem deixa de nelas participar por verificar que as mesmas não surtem efeito.
Uma eventual via de fuga não passa, como é óbvio, por desistir, mas sim por mudar de direção e de escala. Não deixa de ser problemático verificar a frustração das tentativas de se organizar manifestações de massa a partir da confluência de «marés» (educação, saúde, habitação, por exemplo) oriundas de pontos diferentes da cidade. Partir da reflexão sobre as causas destas fracas marés – leia-se, da inexistência de grupos a operar nas escolas, nas universidades, nos locais de trabalho ou em torno de questões como a saúde e a habitação – poderá, mesmo sob a constante ameaça de novas medidas de austeridade, ser mais útil do que a insistência em fórmulas cujos resultados são cada vez mais escassos.
Os leitores brasileiros que não entendam certas expressões usadas em Portugal
e os leitores portugueses que não compreendam expressões empregues no Brasil
dispõem aqui de um glossário de gíria e termos idiomáticos.
Pode fazer-se um teste curioso. O Passa Palavra é um site luso-brasileiro, a tal ponto que para facilitar a leitura recíproca incluiu um glossário nos artigos que o necessitam. Ninguém pode dizer que não entendeu. Apesar disto, embora seja frequente leitores brasileiros comentarem artigos portugueses, é muito raro que portugueses insiram comentários em artigos brasileiros.
E é pena, porque os portugueses aprenderiam bastante com os brasileiros a respeito da organização de lutas.
Aprenderiam, por exemplo, que manifestações que podem paralisar avenidas ou agitar um bairro ou uma cidade ou até, como aconteceu em Junho, todo o país não se limitam a ser convocadas; resultam de um trabalho preparatório feito ao longo de vários anos junto à população e no meio das comunidades locais, o trabalho da «velha toupeira», como diizia o das barbas.
Aprenderiam que as manifestações aqui no Brasil nunca se fazem sem ser acompanhadas por advogados, prontos a intervir, de maneira a diminuir o mais possível o tempo de detenção dos militantes e activistas.
Aprenderiam que as manifestações no Brasil, se são mais do que uma procissão triste de gente repetindo em uníssono palavras de ordem, não o devem só à propensão melódica e rítmica da população. Devem-no ao facto de o trabalho da «velha toupeira» ter incluído nos bairros pequenas bandas informais ou grupos de amigos que sabem bater um pandeiro. Mas deve-se também ao facto de haver, como lhes chamar?, militantes musicais organizados, por exemplo a fanfarra do Movimento Autónomo Libertário, e gostava de saber quantos instrumentos a polícia já lhes partiu. Deve-se também ao facto de grupos de teatro irem para a rua e fazerem animações com os manifestantes. Até ser possível, no que aqui se chama um jogral, converter toda a manifestação num coro teatral.
Em suma, uma manifestação aqui no Brasil não é uma reunião episódica de pessoas dispersas. É apenas a parte visível de uma infra-estrutura social subjacente, de relações que ao longo de anos se foram tecendo nas comunidades e que a própria manifestação contribui para consolidar e ampliar.
Conta-se que quando se preparava o 5 de Outubro (para os brasileiros: é o 15 de novembro dos portugueses) um dos conspiradores levantou o problema de fazer a revolução na província. E alguém, talvez Afonso Costa, explicou: «A revolução faz-se em Lisboa. Na província faz-se pelo telefone». Parece que hoje a esquerda portuguesa foi ainda mais longe por este caminho e até em Lisboa pretende fazer a revolução pelo telefone. Com estes resultados.
O comentário acima toca num ponto interessante. Apesar de alguns limites e contradições, mas que são e devem ser amplamente debatidas, há algumas práticas no Brasil que em Portugal não são tão comuns – ou pelo menos as informações não chegam.
Em Portugal uma fala do Passos Coelho foi interrompida na AR com um “Grândola, Vila Morena” surpresa. Foi realmente uma bonita cena, mas a guarda mandou e os manifestantes calaram-se e retiraram-se. Enquanto isso, aqui no Brasil, e repito que com limites e contradições, várias câmaras municipais foram ocupadas. Em Portugal e no Brasil os sindicatos e as centrais ainda são grandes instituições de controle da classe trabalhadora. Ainda não vi notícia sobre caso parecido em Portugal, mas no Brasil já há sindicatos com a alcunha de “traidores” e até mesmo algumas greves já foram deflagradas sem o apoio (e à revelia e até mesmo contra) desses sindicatos. Daí acabam surgindo ou uma nova onda burocratizante por novos sindicatos e associações, ou a descrença nessa organização institucional e verticalizada, seja pelos velhos ou novos sindicatos, da consciência de que os trabalhadores organizados e autônomos alcançam melhores resultados.
As lutas contra o aumento das tarifas do autocarro no Brasil existem há décadas, mas neste ano sacudiram. Delas saíram também o descrédito de sindicatos e partidos, e também uma frequência de lutas que de tão intensas criou-se um perigoso fetiche (que também deve ser debatido constantemente) da “combatividade”. Perigoso não porque sou contra o vandalismo e as porradas na polícia, mas porque essa tal “combatividade” é requerida por setores mais autoritários de esquerda (maoístas e stalinistas do “centralismo democrático” e da “nova democracia” contra o “velho Estado”)… que querem se consolidar justamente em oposição a uma grande novidade deste ano: o fortalecimento de lutas autônomas com organização horizontal e de caráter libertário, como é exemplo dos MPLs.
Em Portugal, quando estive há um ano e inclusive presenciando manifes, greves e o 14N, o que mais me surpreendeu foi a mitologia criada em cima da Revolução dos Cravos – mas de tão centrada no MFA que as posteriores ocupações de fábrica e outras lutas autônomas são seletivamente esquecidas. Ué, pelo tanto que se orgulha e se referencia desse episódio em comparação às práticas políticas de luta em pleno século XXI, vou começar a duvidar de que houve de facto um 25 de Abril em Portugal.