Por Pablo Polese

 

Segundo Marx, a política só é capaz de efetuar as tarefas negativas da revolução, e não as positivas. As tarefas positivas, referentes à reestruturação dos fundamentos estruturais e funcionais do metabolismo social, só podem ser cumpridas por uma força social que crie órgãos capazes de não só destruir ou decretar, mas construir as formas de ser alternativas. Tais formas de ser certamente serão homologadas politicamente, mas sua natureza essencialmente extrapolítica as impede de serem implementadas politicamente.

A Comuna de Paris, em seus 62 dias de existência antes do massacre [1] operado pelo capital francês em conluio com o capital prussiano, teve chance de apenas iniciar parte das tarefas revolucionárias construtivas (positivas). Numa passagem genial Marx afirmou:

As classes trabalhadoras sabem que têm de passar por diferentes fases da luta de classe. Sabem que a substituição das condições econômicas da escravidão do trabalho pelas condições do trabalho livre e associado só pode ser o trabalho progressivo do tempo (essa transformação econômica), que isso requer não apenas uma mudança na distribuição, mas uma nova organização da produção – ou, antes, requer a liberação (desobstrução) das formas sociais de produção no atual trabalho organizado (engendrado pela indústria atual), libertando-as dos grilhões da escravidão, de seu atual caráter de classe – e o estabelecimento de sua harmoniosa coordenação nacional e internacional. Elas sabem que essa obra de regeneração será continuamente atrasada e impedida pela resistência de direitos adquiridos e egoísmos de classe. Elas sabem que a atual “ação espontânea das leis naturais do capital e da propriedade fundiária” só pode dar lugar à “ação espontânea das leis da economia social do trabalho livre e associado” mediante um longo processo de desenvolvimento de novas condições, tal como ocorreu com a “ação espontânea das leis econômicas da servidão”. Mas elas sabem, ao mesmo tempo, que grandes passos podem ser dados desde já pela forma comunal de organização política e que é chegada a hora de iniciar esse movimento para elas mesmas e para o gênero humano. (MARX, 2011: 132 – grifos nossos).

Infelizmente, as experiências revolucionárias de fins do século XIX e de todo o século XX mostraram que é preciso duvidar do fato de que “a classe trabalhadora” – e não apenas alguns de seus melhores ideólogos, dentre eles o próprio Marx – soubesse ou pudesse intuir na luta toda essa complexa problemática intrínseca à transição e suas diferentes fases e momentos. Como vimos, a abordagem do próprio Engels passa ao largo todo esse conjunto de problemas da transição, se limitando a identificar na propriedade privada dos meios de produção o principal elemento a ser transformado revolucionariamente pela apropriação social das forças produtivas estatizadas. A análise de Marx vai muito mais longe, identificando e expondo com detalhes o lócus e as formas de superação do sistema de mediações alienadas. É o que encontramos, por exemplo, em seu texto Crítica ao Programa de Gotha (1875), onde Marx demonstra de modo detalhado a forma como concebia alguns aspectos da reestruturação econômica da sociedade na passagem da Ditadura do proletariado para a sociedade comunista.

Depois de ridicularizar alguns termos ambíguos e imprecisos usados pelo Programa, afirmando que “isto de ‘todos os membros da sociedade’ e ‘o direito igual’ não são, manifestamente, senão frases”, Marx passa à desconstrução do conceito lassalliano de “fruto íntegro do trabalho”, aquilo que a sociedade comunista, de acordo com o Programa de Gotha, disponibilizaria aos indivíduos. Marx prossegue sua argumentação definindo o conceito mais adequado para expressar o que o lassalliano “fruto do trabalho” quer remeter: a totalidade do produto social.

Mas mesmo com esse conceito mais concreto, a análise crítica da economia política feita por Marx jamais se contentaria em afirmar que o Comunismo daria aos indivíduos “a totalidade do produto social”. A complexa rede de determinações que constitui e sustenta o metabolismo social exige que, antes do “produto do trabalho” chegar a seu produtor-consumidor, haja uma série de etapas “dedutivas” desse produto total. Marx as enumera: “Primeiro: [é preciso deduzir] uma parte para repor os meios de produção consumidos. Segundo: uma parte suplementar para ampliar a produção. Terceiro: o fundo de reserva ou de seguro contra acidentes, transtornos devidos a fenômenos naturais, etc.”. (Marx in MARX & ENGELS, s/d: 212)

Marx explica que tais deduções do “fruto íntegro do trabalho” são uma necessidade econômica e que a magnitude dos montantes varia de acordo com o nível e magnitude das forças produtivas existentes. Ele faz questão de ressaltar que tais deduções devem ser feitas através de um “cálculo de probabilidades” e que “o que não se pode fazer de modo algum é calculá-la partindo da equidade”. Evidentemente que o motivo de não se poder partir da equidade reside no fato de que assim se estariam perpetuando as desigualdades iniciais, herdadas do modo de produção capitalista. Mas, prossegue Marx, mesmo depois de tais deduções ainda não se poderia chegar à repartição individual, aos meios de consumo. Se repararmos bem, as deduções acima listadas são todas localizadas na esfera produtiva. Restariam ainda as deduções necessárias à manutenção da esfera distributiva e de todas as outras esferas sociais:

Primeiro: as despesas gerais de administração, não concernentes à produção”. Segundo Marx nesta parte se conseguirá, desde o primeiro instante, uma redução de gastos expressiva, em comparação com a sociedade atual, redução que “irá aumentando à medida que a nova sociedade se desenvolva”. Esse aspecto é muito importante. Já na transição ao sistema comunal muitas tarefas e funções de controle, repressão, imputação de falsas necessidades, etc., se tornarão totalmente descartáveis, sendo que a centralidade da produção deixará progressivamente de residir no valor de troca e, portanto, na difícil e complexa manutenção das condições de exploração do trabalho.

Segundo: a parte que se destine a satisfazer necessidades coletivas, tais como escolas, Instituições sanitárias, etc.”. Segundo Marx, esta parte irá, desde o primeiro momento, aumentar consideravelmente, em comparação com a sociedade atual, e “irá aumentando à medida que a nova sociedade se desenvolva”. Novamente temos aqui um aspecto extremamente importante: toda capacidade produtiva estancada pelo capital a fim de impor e garantir o processo de extração da mais-valia será redirecionada e realocada em outras tarefas sociais, realmente produtivas e benéficas à sociedade. Apenas para citar um exemplo hipotético: milhões de soldados, policiais e burocratas estatais se tornarão disponíveis para atuar na sociedade não enquanto repressores e “controladores” do sistema de metabolismo hierarquicamente estruturado, mas como operários, professores, artistas, médicos, agricultores.

Terceiro: os fundos de manutenção das pessoas não capacitadas para o trabalho, etc.; em uma palavra, o que hoje compete à chamada beneficência oficial”. Com tais deslocamentos produtivos certamente a sociedade poderia e, mais que isso, gostaria de proporcionar aos “inválidos” e aposentados recursos suficientes para levarem uma vida digna. Depois de explicar essas necessárias deduções, Marx finaliza a crítica ao conceito de “fruto íntegro do trabalho”:

Só depois disto podemos proceder à “repartição”, isto é, à única coisa que, sob a influência de Lassalle e com uma concepção estreita, o programa tem presente, ou seja, a parte dos meios de consumo que será repartida entre os produtores individuais da coletividade. O “fruto íntegro do trabalho” transformou-se já, imperceptivelmente, no “fruto parcial”, ainda que o que se retira ao produtor na qualidade de indivíduo, a ele retorna, direta ou indiretamente, na qualidade de membro da sociedade. (Marx in MARX & ENGELS, s/d: 213)

E na sequência Marx vai ainda mais longe, ressaltando que na sociedade comunista não só o termo “fruto íntegro do trabalho”, mas o próprio termo “fruto do trabalho” perde todo sentido, posto que:

No seio de uma sociedade coletivista, baseada na propriedade comum dos meios de produção, os produtores não trocam seus produtos; o trabalho investido nos produtos não se apresenta aqui, tampouco, como valor destes produtos, como uma qualidade material, por eles possuída, pois aqui, em oposição ao que sucede na sociedade capitalista, os trabalhos individuais já não constituem parte integrante do trabalho comum através de um rodeio, mas diretamente. (idem, ibid: op.cit)

Sobre esse aspecto, nomeadamente: a questão da superação da lei do valor, não podemos aqui nos debruçar – e mesmo Marx não o tratou mais a fundo, no texto em tela. [2] Como não se tratava de tematizar o Comunismo, mas sim as tarefas presentes, Marx centrou-se nas lacunas do Programa em relação aos problemas que inevitavelmente teriam de ser enfrentados e solucionados no período de transição, a “primeira fase da sociedade comunista”:

Do que se trata aqui não é de uma sociedade comunista que se desenvolveu sobre sua própria base, mas de uma que acaba de sair precisamente da sociedade capitalista e que, portanto, apresenta ainda em todos os seus aspectos, no econômico, no moral e no intelectual, o selo da velha sociedade de cujas entranhas procede. Congruentemente com isto, nela o produtor individual obtém da sociedade – depois de feitas as devidas deduções, precisamente aquilo que deu. O que o produtor deu à sociedade constitui sua cota individual de trabalho. (idem, ibid: op.cit)

Estamos falando aqui de uma sociedade de transição, que carrega o peso do passado ainda não totalmente superado e que só o será depois de um longo processo simultaneamente destrutivo da velha ordem e construtivo da nova forma de ser social.

Marx cita um exemplo esclarecedor quanto ao processo de “troca justa” inerente ao período de transição:

a jornada social de trabalho compõe-se da soma das horas de trabalho individual; o tempo individual de trabalho de cada produtor em separado é a parte da jornada social de trabalho com que ele contribui, é sua participação nela. A sociedade entrega-lhe um bônus consignando que prestou tal ou qual quantidade de trabalho (depois de descontar o que trabalhou para o fundo comum), e com este bônus ele retira dos depósitos sociais de meios de consumo a parte equivalente à quantidade de trabalho que prestou. (idem, ibid: 214)

Dessa forma, segundo Marx, “a mesma quantidade de trabalho que deu à sociedade sob uma forma, recebe-a desta sob uma outra forma diferente”. Ou seja, o metabolismo social permanece dentro do esquema capitalista e da lei do valor: “aqui impera, evidentemente, o mesmo principio que regula o intercâmbio de mercadorias, uma vez que este é um intercâmbio de equivalentes”.

Variaram a forma e o conteúdo, porque sob as novas condições ninguém pode dar senão seu trabalho, e porque, de outra parte, agora nada pode passar a ser propriedade do indivíduo, fora dos meios individuais de consumo. Mas, no que se refere à distribuição destes entre os diferentes produtores, impera o mesmo princípio no intercâmbio de mercadorias equivalentes: troca-se quantidade de trabalho, sob uma forma, por outra quantidade igual de trabalho, sob outra forma diferente. (idem, ibid: op.cit)

Assim, a sociedade de transição ainda seria assentada na lei do valor, e a “igualdade de direitos”, inerente a essa forma capitalista de metabolismo social, continuaria, segundo Marx, assentada no direito burguês:

O direito dos produtores é proporcional ao trabalho que prestou; a igualdade consiste em que é medida pelo mesmo critério: pelo trabalho. Mas, alguns indivíduos são superiores, física e intelectualmente, a outros e, pois, no mesmo tempo, prestam mais trabalho, ou podem trabalhar mais tempo; e para o trabalho servir de medida, tem que ser determinado quanto à duração ou intensidade; de outro modo, deixa de ser uma medida. Este direito igual é um direito desigual para trabalho desigual. Não reconhece nenhuma distinção de classe, por aqui cada indivíduo não é mais do que um operário como os demais; mas reconhece, tacitamente, como outros tantos privilégios naturais, as desiguais aptidões dos indivíduos, por conseguinte, a desigual capacidade de rendimento. No fundo é, portanto, como todo direito, o direito da desigualdade. [3] (idem, ibid: op.cit)

Segundo Marx, esses limites ou “defeitos” são “inevitáveis na primeira fase da sociedade comunista, tal como brota da sociedade capitalista depois de um longo e doloroso parto”.

A seguir, retomando a problemática desenvolvida desde A Ideologia Alemã, Marx afirma que o direito, enquanto superestrutura, “não pode ser nunca superior à estrutura econômica nem ao desenvolvimento cultural da sociedade por ela condicionado” (idem, ibid: op.cit). Ou seja, Marx tinha plena consciência de que o período de transição da velha à nova forma de ser social seria carregado de contradições herdadas, que inevitavelmente fariam a revolução ora avançar, ora recuar. Somente ao fim do processo de transição, esse “longo e doloroso parto”, o sistema comunal poderia se por “naturalmente”, e só então a “ação espontânea das leis naturais do capital e da propriedade fundiária” dará lugar à “ação espontânea das leis da economia social do trabalho livre e associado” (MARX, 2011: 132). Assim:

Na fase superior da sociedade comunista, quando houver desaparecido a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, o contraste entre o trabalho intelectual e o trabalho manual; quando o trabalho não for somente um meio de vida, mas a primeira necessidade vital; quando, com o desenvolvimento dos indivíduos em todos os seus aspectos, crescerem também as forças produtivas e jorrarem em caudais os mananciais da riqueza coletiva, só então será possível ultrapassar-se totalmente o estreito horizonte do direito burguês e a sociedade poderá inscrever em suas bandeiras: De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades. (Marx in MARX & ENGELS, s/d: 215)

Notas

[1] Em acordo com Marx, Lênin enumera os dois principais aspectos que levaram a Comuna de Paris à derrota: “Dois erros aniquilaram os frutos de uma brilhante vitória. O proletariado deteve-se na metade do caminho: em vez de proceder à “expropriação dos expropriadores”, deixou-se arrastar por sonhos a respeito do estabelecimento de uma justiça suprema no país, unida por uma tarefa nacional comum; instituições como, por exemplo, os bancos, não foram tomadas: a teoria proudhoniana da “troca justa” etc. reinava ainda entre os socialistas. O segundo erro consistiu na excessiva magnanimidade do proletariado: em lugar de exterminar seus inimigos, procurou exercer influência sobre a moral deles, menosprezando a importância, na guerra civil, das ações puramente militares e, em vez de coroar sua vitória em Paris com uma decidida ofensiva sobre Versalhes, contemporizou, dando ao governo de Versalhes tempo para reunir as forças das trevas e preparar-se para a semana sangrenta de maio”. (Lênin)

[2] Quem se interessar sobre o problema encontrará uma ótima análise da questão no capítulo 19 de Para além do capital, de Mészáros, intitulado “O Sistema comunal e a lei do valor”.

[3] Para quem tiver interesse em acompanhar um pouco mais o raciocínio de Marx: “O direito só pode consistir, por natureza, na aplicação de uma medida igual; mas os indivíduos desiguais (e não seriam indivíduos diferentes se não fossem desiguais) só podem ser medidos por uma mesma medida sempre e quando sejam considerados sob um ponto de vista igual, sempre quando sejam olhados apenas sob um aspecto determinado, por exemplo, no caso concreto, só como operários, e não veja neles nenhuma outra coisa, isto é, prescinda-se de tudo o mais. Prossigamos: uns operários são casados e outros não, uns têm mais filhos que outros, etc., etc. Para igual trabalho e, por conseguinte, para igual participação no fundo social de consumo, uns obtêm de fato mais do que outros, uns são mais ricos do que outros, etc. Para evitar todos estes inconvenientes, o direito não teria que ser igual, mas desigual”. (Marx in MARX & ENGELS, s/d: 214)

Referências

MARX, K. (s/d). Crítica ao Programa de Gotha. In: Marx & Engels, Obras escolhidas, vol.2. SP: Alfa-Ômega.
____. (2011). A guerra civil na França. SP: Boitempo.
MÉSZÁROS, I. (2002). Para além do capital. SP: Boitempo.

Esta série inclui os seguintes artigos:

1) superação do Estado, o problema
2) Engels e a posse dos meios de produção previamente centralizados no Estado
3) a ditadura do proletariado como “Estado” transicional
4) o grande segredo da Comuna de Paris
5) socialismo passo a passo
6) Marx, a negatividade da política e o aspecto multidimensional e de longo prazo da transição
7) os limites do legado político de Marx
8) superar o Estado, só pela autogestão

2 COMENTÁRIOS

  1. Pablo,
    tenho acompanhado teus textos e gosto da problemática, ainda não estou certo a respeito de quanto acompanho sua posição (não conheço a obra de Meszaros, talvez por isso algumas coisas me soem novas).

    De qualquer forma, algo me fez ruído: esta tal “lei do valor” e o “direito igual” não são a própria capacidade intelectual de abstração? Concedo sem problemas que a organização social não precisa se pautar nessa prerrogativa de um valor “indiferente”, em outras palavras, o mercado. No entanto, como é possível diferenciar entre um indivíduo com capacidades tais e necessidades tais de um outro indivíduo com capacidades outras tais e necessidades outras tais, se não tivermos um ponto de referência externo?
    Se não me engano, foi o próprio Engels quem “deu o palpite” sobre a relação entre o começo do uso do ouro como meio de trocas e o surgimento da filosofia no mundo mediterrâneo (especificamente na Asia Menor). Não seria de alguma maneira intrínseca à sua natureza abstrata a capacidade do trabalho pensar-se como tal apenas a partir do momento em que consegue ser medido pelo tempo (sejam horas no relógio, dias na semana, temporadas de colheita, enfim)? Imagino um mundo onde o trabalho não se pensa de forma abstrata, creio que ele se assemelharia então mais aos rituais e liturgias religiosas antigas, sem as quais o mundo perde todo o sentido.
    Não estou certo se Marx avança na análise econômica mesmo deste seu mundo comunista. Meszaros o faz?

  2. Olá Lucas,

    Creio que a maioria das minhas opiniões são fruto de uma leitura de Mészáros, mas não tenho a preocupação de ser “fiel” ao que ele ou qualquer outro disse, então existem pontos que incorporo de outros autores de bases teóricas distintas.

    Sua pergunta sobre a questão da lei do valor é boa e espinhosa. Penso o seguinte, pretendendo estar em acordo com o que pensam Marx e Mészáros: a possibilidade, que se torna necessidade, de abstrair-se o trabalho pelo tempo de trabalho socialmente necessário, a fim de equiparar trabalhos concretos diferentes e, assim, ter um parâmetro para as trocas, é uma necessidade posta pelo capital e que só se mantém (independentemente da relação de exploração) enquanto houver uma relativa escassez de recursos naturais e de relações novas que permitam substituir a relação-capital. Ora, com o desenvolvimento das forças produtivas tornou-se (e com a transição socialista se tornará ainda mais) possível não precisarmos mais fazer essa abstração como necessidade advinda da falta de recursos: o ideal a ser alcançado é uma situação em que cada um possa pegar e consumir “o quanto quiser” da produção comunal total. Evidentemente isso pressupõe uma série de questões: a produção e consumo não serão tão destrutivos dos recursos naturais e não haverá tanto desperdício com descartáveis, etc; a produção sustentável e em abundância; o aumento do nível cultural dos indivíduos, o que, entre outras coisas, levará a que eles realmente saquem do fundo comunal apenas o “necessário” para seu gozo e satisfação; a superação da lei do valor e sua substituição por alguma outra lei parametrada nas necessidades humanas, etc;
    Marx fala sobre a troca comunal ser uma troca de atividades e não de produtos, mas essa mesma “troca” não seria uma troca de equivalentes e sim uma troca onde cada um dá o que estiver disposto a dar e pega o que quer. Algum excesso individual seria espontaneamente reprimido pelos demais indivíduos comunais. Mészáros sugere que esse novo dinamismo no mundo comunal residiria no “tempo disponível”: o aumento do tempo disponível para fazer tudo que não seja trabalhar seria o pressuposto do desenvolvimento das forças produtivas, e o oferecimento voluntário (por parte de cada indivíduo) de parte de seu tempo disponível seria o equacionador da produção. Claro, provavelmente seria um oferecimento sistemático, digamos, 2 horas de trabalho por semana, podendo variar e ser em atividades diferentes a cada semana etc. Mas a questão a ser tratada não reside no Comunismo, distante, e sim na transição socialista. Como iniciar a superação da lei do valor? É preciso ter as bases objetivas e construir as bases subjetivas pra isso. O desenvolvimento das forças produtivas levado a cabo pelo capitalismo já faz algumas décadas permite vislumbrarmos um Socialismo da abundância, e nesse âmbito nos livramos de antemão de muitos dos problemas que a URSS teve que enfrentar. Entretanto esse mesmo desenvolvimento em abundância traz novos problemas, como por exemplo o fato de a tecnologia estar pautada e ter encrustada em si mesma a lei do valor e, pior ainda, a produção destrutiva. Imagine quanto da atual maquinaria seria totalmente inútil não só no Comunismo, quando espera-se que ninguém tenha que trabalhar numa máquina degradante e desgastante dos recursos naturais e humanos, mas mesmo no Socialismo, quando precisará haver rapidamente a ampliação da produção dos bens mais básicos e a redução de alguns bens de alto luxo. Isso sem falar que a luta de classes não vai oferecer apenas os órgãos capazes de solucionar os problemas, mas vai também colocar em pauta alguns problemas novos. Penso por exemplo dos camponeses colocando fogo nas plantações russas, ou no tratado de brest-litovski tirando boa parte dos recursos russos. Mas o essencial, me parece, reside nas bases subjetivas: os órgãos políticos e econômicos (sovietes, conselhos, etc) capazes de operar a reapropriação das forças produtivas do trabalho, usurpadas pelo capital. Tendo esses órgãos e com isso a capacidade de novas relações sociais, torna-se possível no longo prazo, e com a vitória mundial da revolução, superar a lei do valor. Por isso, costumo tratar a superação da lei do valor como idêntica à superação do capital e, portanto, de todo o sistema de mediações de segunda ordem, a que me referi no primeiro artigo da série.

    Sendo desnecessário abstrair o trabalho em tempo de trabalho, sendo desnecessário “ter” algo para poder “trocar”, a vida humana não vai perder o sentido e sim ganhar: a individualidade poderá se desenvolver pautada em milhões de outras coisas, ao invés de ter que se preocupar com questões primárias como por exemplo comer, beber, ter onde dormir, etc. Imagino, por exemplo, uma produção em abundância de obras de arte, presenteadas às pessoas e expostas em tudo quanto é canto.

    Lucas, tentei te responder, mas fiquei com a impressão de que não consegui, por isso te peço que se puder dê uma lida no capítulo 19 do Para além do capital, que é sobre a lei do valor. Obrigado pelo comentário.

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