Por Pablo Polese
Mészáros usa a seguinte metáfora ao tratar do desafio da transição socialista no século XXI:
«Como no caso do pai de Goethe […], não é possível colocar abaixo o prédio existente e erigir outro
com fundações completamente diferentes em seu lugar. A vida deve continuar na casa escorada
durante todo o curso da reconstrução, “retirando um andar após o outro de baixo para cima,
inserindo a nova estrutura, de tal modo que ao final nada deve ser deixado da velha casa”. Na verdade,
a tarefa é ainda mais difícil que esta. Pois a estrutura de madeira em deterioração do prédio
também deve ser substituída no curso de retirada da humanidade da perigosa
moldura estrutural do sistema do capital.»
Essa série de artigos busca contribuir com o debate posto por João Bernardo e por João Valente Aguiar em alguns artigos publicados no Passa Palavra que tematizam a relação entre Marx e o nacionalismo (João Bernardo) e Marx e a nação. Um abraço pela frente e uma facada por trás (João Valente Aguiar). Tratando-se de um debate amplo e já largamente explorado nestes e noutros artigos publicados pelo site, limitei-me a um conjunto de questões relativas ao legado político de Marx e, em especial, tentei refutar algumas ideias presentes no quarto artigo da série de João Valente Aguiar, subintitulado A Comuna de Paris: um Estado por cima dos operários?, onde o autor defende, a nosso ver injustificadamente, que dentre as tensões internas à obra de Marx haveria uma “coexistência conflitual e contraditória entre o nacionalismo e o internacionalismo” e a defesa sub-reptícia de um tipo de “estatismo”.
*
O Estado cumpre, no Capitalismo, um conjunto de funções vitais à reprodução do sistema sociometabólico do capital. Ele atua em ao menos quatro grandes frentes, todas igualmente importantes e igualmente comuns a todo e qualquer Estado capitalista contemporâneo: a) a integração da classe trabalhadora, de modo que ela aceite sua situação estrutural de subordinação e exploração capitalista; b) a repressão da classe trabalhadora, por meio da polícia, forças armadas, sistema jurídico e penitenciário; c) criar e assegurar as condições gerais da produção de capital; d) administrar as crises do capital.
Embora seja um constituinte central do sistema do capital, o processo gradual de perda (para as megacorporações transnacionais) do poderio político e econômico que um dia teve nesse sistema, redefine o conceito de Estado, como “comitê executivo da burguesia”, o que por sua vez traz implicações para as lutas sociais anticapitalistas em suas perspectivas de superação do Estado na transição socialista. Posto isso, faz-se necessário não apenas um estudo aprofundado das determinações constitutivas do Estado capitalista contemporâneo, mas especialmente a observação do legado histórico das tentativas de transição para além do Estado e do capital.
Embora o estudo precursor de João Bernardo Estado: a silenciosa multiplicação do poder [pode encontrar-se aqui] nos traga importantes insights sobre a nova constituição e modos de atuação do Estado amplo e restrito, há que se reconhecer que, tal como há séculos atrás, o Estado (em sua acepção clássica, o “Estado restrito” segundo a terminologia de JB) ocupa ainda hoje um lugar estrutural e hierarquicamente determinado de subordinação funcional às exigências do capital, constituindo parte essencial do sistema e, portanto, um dos alvos imprescindíveis a ser atacado e suprimido a fim de que a revolução socialista triunfe.
Uma importante função desempenhada pelo Estado a fim de salvaguardar o sistema do capital reside no deslocamento das contradições para a periferia do sistema. As transformações do Capitalismo contemporâneo levaram o par conceitual centro-periferia a perder a vitalidade analítica que detinha até, talvez, meados do século XX. Entretanto a função do Estado em deslocar as contradições mantém seu vigor, apenas tendo complexificado as formas de ser do deslocamento das contradições, fundamental para a manutenção de um sistema eivado por contradições explosivas: o deslocamento se dá não apenas entre nações e regiões, mas até mesmo entre classes e frações de classe internas ao que o arcabouço conceitual antigo chamaria de “centro” do sistema.
Ao longo do século XX, e em especial a partir dos anos 1970, a forma de deslocamento das contradições diretamente via Estado se tornou mais complexa, entre outras coisas devido à agudização da contradição estrutural (inerente ao sistema do capital) entre capital transnacional e Estados nacionais. É cada vez mais comum o capital, cada vez mais não apenas multi, mas transnacional, não só deslocar as contradições para a periferia do sistema através do uso do Estado como máquina de Guerra imperialista, ou através do meio mais sutil (mas não menos bárbaro) de impor suas determinações exploratórias numa ação mancomunada com os gestores estatais da nação onde “investirá” (no sentido político e econômico do termo) mas também deslocar as contradições, assimilando e remanejando-as, para uma fração de classe “interna” a “seu” próprio Estado-Nação. Ou seja, estamos falando da generalização da superexploração antes reservada especialmente à periferia ou ao subproletariado geograficamente mais próximo, para as classes trabalhadoras brancas e de olhos azuis dos países tradicionalmente vistos como países “centrais” do sistema. Nesse último caso, é cada vez mais comum essa fração de classe trabalhadora “interna” ao país “de primeiro mundo” não necessariamente estar sendo subassalariada por esse capital transnacional de roupagem nacional, e sim por outro, “estrangeiro”. Independentemente da roupagem nacional de que se veste o capital transnacional, face aos efeitos nocivos da superexploração do trabalho por ele engendrada o aparato estatal de tal nação será chamado a atuar, através de práticas assistencialistas, políticas sociais de “complementação” financeira, etc., que garantam a subsistência e reprodução dessa fração de classe superexplorada da qual o capital não pode abrir mão. O Estado, portanto, atua com vistas a perpetuar o sistema do capital em sua totalidade, e sua preferência a tal ou qual fatia do capital somente se verificará e se resolverá no contexto específico e por meio da cristalização da luta de classes em âmbito nacional e também no que tange às questões de política internacional. No Brasil dos últimos anos, por exemplo, o Estado prioriza o capital financeiro, portador de juros, bem como as transnacionais do agronegócio voltado à produção de commodities.
Assim, tal como sempre fez, o capital transnacional superexplora o trabalho “da periferia” onde investe (no duplo sentido de investir) de forma imperialista, mas é um fato relativamente recente que ele se veja cada vez mais forçado, pela pressão “interna” decorrente de sua incurável crise estrutural, a retirar as concessões trabalhistas que antes deram lugar às modalidades de “Welfare State” e muitas vezes é forçado a superexplorar algumas frações da classe trabalhadora “do centro” onde, virtualmente, é sediado (vale observar que ser “forçado” a superexplorar a classe trabalhadora interna não leva os capitalistas a nenhuma crise moral, já que para eles os determinantes objetivos do sistema se apresentam de maneira inescapável e a superexploração aparece como justificada, já que necessária. Tinham razão aqueles que há décadas alertavam que olhar para a periferia do sistema era olhar para o futuro do centro do sistema. A mundialização do capital nivelou por baixo as taxas de exploração do trabalho, levando as classes e frações de classe tradicionalmente superexploradas (mulheres, negros, imigrantes, menores de idade, trabalhadores latino-americanos e chineses, etc.) a sentirem o gosto de uma espécie de intensificação da superexploração que tais camadas já vinham sofrendo há gerações: elas estão no olho da barbárie do capitalismo.
Um exemplo que deixa evidente esse processo é a diferenciada e intensificada precarização do trabalho a que são submetidos os imigrantes mexicanos nos EUA e os imigrantes europeus vindos da África e da parte oriental da Europa, a qual tem reverberado em aumento da precarização do trabalho também das classes trabalhadoras estadunidenses, japonesas e europeias. Também é preciso ressaltar que o correto entendimento do deslocamento das contradições operado pelo capital exige um complexo categorial que vá além do tradicional par categorial centro-periferia (o qual só se sustenta pela interposição de verdadeiros malabarismos conceituais), pois há inúmeros casos de “subimperialismo” em que a sede do capital multi e transnacional fica num Estado “periférico”, como por exemplo, a Companhia siderúrgica Vale, que é “brasileira” e explora, por exemplo, a classe trabalhadora canadense.
A função de suporte para o deslocamento das contradições do capital, tão importante na teorização do Estado feita, por exemplo, por I. Mészáros, também não passou despercebida por D. Harvey:
Em resposta ao poder organizado dos trabalhadores dentro de suas fronteiras, um determinado Estado-Nação talvez procure exportar os piores elementos da exploração capitalista mediante a dominação imperialista de outros países. A dominação imperialista também possui outras funções: facilitação da exportação de capital, preservação de mercados, manutenção do acesso a um exército de reserva para a indústria etc. Por esses meios, um Estado-Nação talvez consiga a obediência dos elementos da classe trabalhadora dentro de suas fronteiras, à custa dos trabalhadores dos países dependentes, ao mesmo tempo em que conquista influência ideológica, disseminando as noções de orgulho nacional, império e chauvinismo que, normalmente, acompanham as políticas imperialistas. (HARVEY, 2005: 88)
A apreensão do Estado como “comitê executivo” do capital exigiria uma análise do Estado e suas funções não só sob o Capitalismo, mas também sob as experiências pós-capitalistas de tipo soviético. A partir dos estudos de Mészáros sobre a experiência soviética posterior à Revolução Russa de Outubro de 1917 podemos afirmar que a despeito das radicais alterações revolucionárias a URSS foi incapaz de subverter essa determinação fundamental do Estado. O Estado soviético não só manteve-se atrelado às exigências do capital como, ainda, deixou de ser um apoio e assumiu diretamente uma série de tarefas antes deixadas aos capitalistas privados, como, por exemplo, a direção – tornada centralizada – do processo de extração do trabalho excedente, sob uma base de sustentação política, e não mais inerentemente econômica, tal como sob o Capitalismo.
Essencialmente subordinado e funcional ao capital, o Estado deve ser superado ou, o que é o mesmo, deve “fenecer” para que o trabalho consiga definitivamente superar o capital. Entretanto, uma ampla gama de funções societárias que estão atualmente nas mãos do Estado precisará ser resolvida – com ou sem um “Estado” alternativo – durante e depois da transição para além do capital. É preciso, então, saber quais funções sociais análogas às que hoje cumpre o Estado permanecerão necessárias mesmo depois do período transitório, já num sistema sociometabólico comunal. Se existem, quais dessas “funções” são e permanecerão complexas demais a ponto de exigirem, ao menos a princípio, um órgão similar ao Estado? Quais órgãos sociais o trabalho precisará criar e manter a fim de levar a cabo essas funções e tarefas necessárias à manutenção satisfatória do sociometabolismo comunal?
As experiências históricas de poder proletário mostraram que a tomada do poder político pelo trabalho já permite elencar algumas instituições estatais como imediatamente “dispensáveis e supérfluas” por sua própria essência repressiva classista. Essas instituições do aparato estatal, dado o anacronismo imediato das funções sociais coercitivas/repressivas que cumpriam sob o Capitalismo, podem ser imediatamente abolidas. Ou seja: parte do Estado (exatamente a parte que o qualifica como Estado burguês) pode ser rapidamente e de modo relativamente simples destruída e abolida “por decreto”, sendo necessário reconstruir algumas delas, as voltadas à defesa militar, para assegurar o esmagamento da contra-revolução e seu poderoso aparato militar repressivo. Temos aqui, claramente, um problema, na medida em que essa reconstrução dificilmente conseguirá improvisar uma estrutura militar radicalmente democratizada e, ao mesmo tempo, tão ou mais militarmente eficiente quanto a estrutura secular em mãos da contra-revolução.
Já o fenecimento (superação) do Estado como um todo (e não apenas a supressão de seus órgãos repressivos) é um processo muito mais complicado, que exige a reestruturação “de cima a baixo” da sociedade e a criação de uma nova forma de ser político-social não mais alienada, ou seja, não mais assentada nas mediações de segunda ordem: 1. a família nuclear; 2. os meios alienados de produção e suas personificações; 3. o Dinheiro; 4. os objetivos fetichistas da produção; 5. o trabalho estruturalmente separado da possibilidade de controle; 6. as diversas formas de Estado Nacional; 7. o incontrolável mercado mundial.
Ao contrário das mediações de primeira ordem [1], as de segunda ordem [2] assentam na alienação do trabalho e, portanto, são historicamente superáveis, não sendo necessárias a todo e qualquer sistema de metabolismo social, mas apenas àqueles regidos pelo capital. As mediações de segunda ordem estabelecidas pelo modo de controle sociometabólico do capital estão interligadas de modo a constituir um poderoso círculo vicioso que se auto-sustenta e tende a “auto-reproduzir” o sistema hierárquico estabelecido. Isso ocorre porque cada uma das mediações de segunda ordem “se ajuda” reciprocamente, tornando muito difícil superar qualquer uma delas isoladamente (o que implica que as ações revolucionárias sejam coordenadas tanto do microcosmo ao macrocosmo quanto do macro ao micro, e incidam simultaneamente sobre todas as mediações de segunda ordem, tendo como base a reestruturação de baixo para cima (radicalmente democrática) de todo o sociometabolismo.
Assentada nesse complexo e poderoso sistema do capital, a sociedade não pode ser reestruturada radicalmente da noite para o dia. Qual é o papel do Estado ou de um órgão similar ao Estado durante esse longo processo revolucionário de reestruturação da sociedade? Diferentemente dos anarquistas, que com voluntarismo desavergonhado descartam de antemão esse conjunto de questões e defendem a extinção imediata e permanente de toda forma de Estado, Marx mostrou ter plena consciência das dificuldades que adviriam e ressaltou inúmeras vezes, com realismo, que os problemas relativos à reestruturação da sociedade seriam grandes demais para serem “resolvidos” por decreto, ou seja, pela via exclusivamente política.
Embora Marx tivesse, desde as Revoluções de 1848, uma ampla noção desse conjunto de questões, é apenas com a experiência da Comuna de Paris, em 1871, que tanto os problemas quanto as formas possíveis de solucioná-los surgem na cena histórica. Lastreado nos ensinamentos da Comuna, Marx teorizará a transição com maior segurança. É então que ele e Engels cunharão o termo designativo da nova forma política “estatal” da transição para além do sistema do capital: a Ditadura do proletariado. A problemática dos órgãos políticos da transição é tão complexa que mesmo Engels não soube tratá-la com realismo.
Notas
[1] 1) a regulação mais ou menos espontânea da reprodução biológica humana, a fim de manter sustentável o tamanho da população; 2) a regulação do processo de trabalho no que diz respeito ao aprimoramento de seus meios técnicos e científicos, a fim de garantir o aprimoramento das forças produtivas em conformidade com as finalidades produtivas socialmente estabelecidas; 3) o estabelecimento de relações de troca material e cultural entre os povos, a fim de otimizar os recursos naturais e garantir um ser humano mais rico individualmente, por conta do contato enriquecedor com outras culturas; 4) a organização, a coordenação e o controle das atividades que asseguram e protegem as precondições materiais e culturais do processo de reprodução social de comunidades humanas progressivamente mais complexas; 5) a alocação racional dos recursos naturais e humanos historicamente disponíveis; 6) a promulgação e administração de leis de convívio social articuladas às demais mediações de primeira ordem.
[2] “1) a família nuclear, articulada como o “microcosmo” da sociedade, o qual, além de seu papel na reprodução da espécie, participa em todas as relações reprodutivas do “macrocosmo” social, incluindo a mediação necessária das leis de Estado para todos os indivíduos e, assim, diretamente necessária também para reprodução do Estado; 2) os meios de reprodução alienados e suas “personificações” por meio das quais o capital adquire “vontade férrea” e consciência rígida, estritamente demandado a impor sobre todos a conformidade com relação às exigências objetivas desumanizantes da ordem sociometabólica dada; 3) o dinheiro assumindo uma multiplicidade de formas mistificantes e progressivamente mais dominantes no curso do desenvolvimento histórico, chegando ao domínio total do sistema monetário internacional dos dias de hoje; 4) objetivos de produção fetichistas, submetendo de uma forma ou de outra a satisfação das necessidades humanas (e a provisão correspondente de valores de uso) aos imperativos cegos da expansão e acumulação do capital; 5) trabalho estruturalmente divorciado da possibilidade de controle, seja nas sociedades capitalistas, nas quais deve funcionar como trabalho assalariado coagido e explorado pela compulsão econômica, seja sob o controle pós-capitalista do capital sobre a força de trabalho politicamente dominada; 6) variedades de formação de Estado do capital em seus terrenos globais, nos quais podem confrontar-se uns contra os outros (por vezes com os mais violentos meios, deixando a humanidade à beira da autodestruição), como Estados nacionais orientados a si mesmos; 7) e o descontrolado mercado mundial em cuja estrutura os participantes, protegidos por seus respectivos Estados nacionais por meio das relações de poder dominantes, devem se acomodar às precárias condições de coexistência econômica enquanto se empenham em obter a mais alta vantagem praticável para si ao ludibriar suas contrapartes concorrentes, aqui lançando inevitavelmente as sementes de mais conflitos destrutivos”. (MÉSZÁROS, 2007: 193)
Referências
AGUIAR, J. V. (2013a). Marx e a nação. Um abraço pela frente e uma facada por trás – I. O nacionalismo. Disponível em: http://passapalavra.info/2013/09/85889
___. (2013b). Marx e a nação. Um abraço pela frente e uma facada por trás – II. O espaço nacional no centro da constituição do proletariado em classe. Disponível em: http://passapalavra.info/2013/10/86339
___. (2013c). Marx e a nação. Um abraço pela frente e uma facada por trás – III. A onda internacional ignorada, Disponível em: http://passapalavra.info/2013/10/86710
___. (2013d). Marx e a nação. Um abraço pela frente e uma facada por trás – IV. A Comuna de Paris: um Estado por cima dos operários? Disponível em: http://passapalavra.info/2013/10/86842
___. (2013e). Marx e a nação. Um abraço pela frente e uma facada por trás – V. Marx e os gestores. Disponível em: http://passapalavra.info/2013/10/87371
___. (2013f). Marx e a nação. Um abraço pela frente e uma facada por trás – VI. As duas esquerdas dos gestores. Disponível em: http://passapalavra.info/2013/11/87845
BERNARDO, J. (1998). Estado: a silenciosa multiplicação do poder. São Paulo: Escrituras.
___. (2009a). Marxismo e nacionalismo (I): O antieslavismo de Engels e de Marx. Disponível em: http://passapalavra.info/2009/05/4140
___. (2009b). Marxismo e nacionalismo (II): Os comunistas russos e a questão nacional. Disponível em: http://passapalavra.info/2009/06/4843
___. (2009c). Marxismo e nacionalismo (III): O Partido Comunista alemão e a extrema-direita nacionalista. Disponível em: http://passapalavra.info/2009/06/5364
___. (2009d). Marxismo e nacionalismo (IV): Comunismo e terceiro- mundismo. Disponível em: http://passapalavra.info/2009/06/6275
HARVEY, D. (2005). A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume.
MÉSZÁROS, I. (2007). O desafio e o fardo do tempo histórico. SP: Boitempo.
Esta série inclui os seguintes artigos:
1) superação do Estado, o problema
2) Engels e a posse dos meios de produção previamente centralizados no Estado
3) a ditadura do proletariado como “Estado” transicional
4) o grande segredo da Comuna de Paris
5) socialismo passo a passo
6) Marx, a negatividade da política e o aspecto multidimensional e de longo prazo da transição
7) os limites do legado político de Marx
8) superar o Estado, só pela autogestão
Uma amiga leu esse texto hoje e via internet me colocou algumas questões, que gostaria de socializá-las para pensarmos juntos, pois me pareceram muito pertinentes.
Vou reproduzir a conversa tal como se deu, pois me parece melhor do que reescrever as questões:
Amiga: Oi Pablo. Li seu texto. Uma coisa que fiquei pensando a partir do que você diz é no processo venezuelano. A questão é que a gente age, mas sempre tem o outro lado agindo também, na luta de classes. Está o Estado, os Conselhos Comunais, e as milícias. São 3 coisas, três tipos de órgãos de poder. A limpeza das forças armadas e as milícias passaram pelas “leis habilitantes” depois da tentativa de golpe de 2002. Eram medidas tomadas por uma questão de sobrevivência. Serviram para adiar o conflito. Ganhou-se tempo. Mas, como funcionam as milícias? A população tem acesso às armas, no bairro. Essa é a milícia. E tem certa autonomia de ação, só que sob comando técnico de um militar retirado. Ante um golpe de Estado por algum setor do exército profissional, ou uma invasão estrangeira, funciona. Assim como os Comitês de Defesa em Cuba. Mas em caso de um conflito interno mais complexo… não sabemos como será o comportamento, porque não responde às decisões políticas do Conselho Comunal, associado aos espaços de produção. Essa coisa de unir produção, poder político e poder militar para garantir o poder popular… A autonomia das milícias é também autonomia dos conselhos. Então, num conflito entre os Conselhos Comunais e o Estado… como vão reagir? Então, esse primeiro passo que você fala, para a superação do Estado, envolve esses problemas “prático-políticos”.
Outra questão é da propriedade social convivendo com uma economia (como aconteceu em Cuba) voltada para exportação. E que cresce nesse setor a passos gigantes. O capital chinês investe fortemente em Venezuela.
Pablo: a ligação entre comites de bairro, conselhos comunais, milicias e comites de fábrica tem que ser muito organica, e tem q ser muito clara a localização do aparato estatal como possível inimigo ainda que com formatação “chavista”…
Amiga: Claro! Outra coisa da qual se fala muito pouco é sobre a alienação no trabalho nos países exportadores. A alienação, na periferia, tem outra componente de efeito fatal para a subjetividade: Toda ou o grosso da produção está destinada ao mercado externo. Inclusive Cuba e as ex-colônias africanas tinham essa relação com a URSS. O produtor não é consumidor.
Pablo: sim, lembrei do dilema cubano sobre construir ou nao uma fábrica/usina de aço
Amiga: O distanciamento com o resultado do trabalho é ainda maior que nos países centrais. A comuna chinesa tinha uma coisa interessantíssima, próxima ao que hoje chamamos perma-cultura. Tudo isso acabou. Esse dilema está sendo vivido, mesmo na propriedade social em Venezuela, e não apenas no ramo do petróleo. O capital chinês está instalando, na Venezuela, fábricas, que levanta em 8 meses, com uma cidade ao redor. Nisso lembra o imperialismo inglês. Uma grande planta, uma cidade com toda a infra-estrutura, hospitais, escolas, creches, serviços..
Pablo: bom, mas aí eu acho que o aspecto da alienação de “reconhecer-se” ou nao no fruto do trabalho acaba indo pra segundo plano, frente ao fato de eles terem ou não controle sobre a produção e o processo de trabalho. Além disso o balanço de pagamentos e todas essas coisas relacionadas ao mercado mundial teriam que ter um órgão radicalmente democrático decidindo em detalhes os termos da exportação-importação, e não poderia ser um órgão centralizado tal qual o da URSS…
Amiga: Com a anuência do Estado. O Estado “chavista”. Os chavistas dizem que China pode fazer frente a EUA.
Pablo: q bobagem, só trocam os tentáculos ocidentais do capital pelos tentáculos orientais
Amiga: Em grande parte da propriedade social há controle da produção pelos trabalhadores
Pablo: mesmo do capital chinês? mas deve ter alguns termos imposto pelo Estado venezuelano, nao?
Amiga: Da propriedade social. O capital chinês, é chinês. Como uma transnacional, mas chinesa, e apoiada pelo Estado, o Estado chavista e o Estado chinês. Sim, as condições são mais vantajosas, mas é capital. Num cálculo geopolítico: “que lo marines se metam co’s chino, que van a ver lo que pasa… lo chino tienen bomba atómica…”
Pablo: então, aí entra o poder heurístico daquela distinção entre Capital e Capitalismo, que o Mészáros mostra que há em Marx. Sim sim, mas nessa reflexão ainda estamos diante de políticas de Estado, enquanto tais ligadas ao capital e à manutenção do poder político. Isso tudo tem mais a ver com o Estado venezuelano se fortalecendo frente a uma nova tentativa de golpe dos EUS do que propriamente com a transição socialista
Amiga: Exatamente. Há capitalismo nas empresas privadas (nacionais ou não). Há capital em todas, mesmo naquelas que tem controle da produção pelos trabalhadores.
Pablo: nao é pra menos, já que a Venezuela tá cercada de bases norte-americanas
Amiga: Sim, completamente explicável. E mesmo compas que querem construir o poder popular se vem nesse problema: os chineses armaram Venezuela até os dentes. Caças, artilharia anti-aérea…
Pablo: Um pepino implícito nessas problemática é que simultaneamente se vê que o Estado não é o órgão adequado e ao mesmo tempo vemos que sem um Estado poderoso e interligado a outros Estados, a política internacional (imperialista) foge a qualquer possibilidade dos pequenos órgãos de poder popular em construção, que ficariam à merce do poderoso sistema do capital e seus órgãos repressivos imperialistas
Amiga: É isso aí. uma sinuca de bico. Ao mesmo tempo há um outro problema. É o do controle dos trabalhadores e como se dá no contexto venezuelano. Primeiro: o PSUV não é um partido para construir o socialismo. É um partido pra concorrer nas eleições e para articular politicamente nas regiões com interesses locais, pra surfar nas tensões.
Pablo: Sim, típico da forma-partido…
Amiga: nem sempre
Pablo: hehehe boa. (concordo)
Amiga: Se armou como uma aliança de diferentes partidos alguns partidos regionais, fisiológicos. se encheu de gente que quer cargos no Estado. Então, não esperemos um “partido educador para o socialismo” que amplie o horizonte da experiência local. Você tem uma fábrica de agrotóxicos com controle operário da produção. Esses operários acham muito bom produzir e controlar a produção. Mas não vem a função social da planta. Porque essa planta fazia parte das cadeias de produção do capital. É preciso acabar com essa matriz produtiva, reestruturar. Parar de produzir agrotóxicos. Os trabalhadores dessa planta. não querem. E ainda concorrem com outra planta também de propriedade social. Então o Estado vai e intervém: manda um burocrata e acaba com o controle dos trabalhadores. A iniciativa veio da direção chavista, essa do controle dos trabalhadores. Mas não é uma direção política que se dispõe à educação socialista.
Indo ao que me parece o cerne da questão apresentada na primeira parte desta série, a pergunta que me fica é: porque a tensão subjacente à articulação entre os diversos aspectos da reprodução da vida social representadas pelo autor através da categoria de “mediações de primeira ordem” são organizadas exclusivamente do ponto de vista de um controle centralizado e hierárquico?
Sob a acusação um tanto ligeira e parcialmente infundada ao conjunto dos anarquistas – afinal de que anarquismo se fala? de quais anarquistas? sofreriam todos neste ponto deste “voluntarismo desavergonhado”? – por supostamente não terem um projeto, onde de fato eles existem (quem estuda a minimamente a história do anarquismo sabe disso), embora acredite que seja plenamente possível questionar a eficácia das suas instituições e práticas, neste ponto há uma reprodução pura e simples da forma capitalista de organizar e conceber a política, que me soa como uma presunção tecnocrática, já que não ocorre ao autor se colocar a questão sobre a capacidade das lutas em seus processos de enfrentamento de gestarem seus próprios mecanismos para superarem a forma Estado de dominação.
Isto me parece ainda mais evidente quando vislumbramos o recuso à fórmula mariniana do “subimperialismo” e seu par conceitual a “superexploração”, objetivando explicar a dinâmica internacional de organização do sistema capitalista. O problema desta teorização me parece: 1º considerar a exploração do trabalho como simples expropriação, enquanto que a extração de mais-valia é um processo que ocorre dentro de um conjunto de relações sociais específicas entre classes sociais historicamente determinadas (não podendo ser confundida com a relação entre Estados e países, onde todas elas possuem seus próprios capitalistas); 2º desconsiderar que pela própria dinâmica de funcionamento das relações capitalistas, todo e qualquer negócio capitalista que tenha alguma importância é impelido a uma dinâmica imperialista para sua própria sobrevivência, já que a competição entre empresas se dá na expansão e controle de umas sobre as outras.
Com algum esforço comparativo é muito fácil aproximar esta fórmula com as teorizações de autores corporativistas como Mihail Manoilescu, que procurava explicar os mecanismos econômicos da dominação de um país sobre outro, ou mesmo as teses limite de autores que estão na gênese do fascismo, como Enrico Corradini, em sua conceituação sobre as nações proletárias, já que todo imperialismo pressupõe um imperializado.
De todo modo, me inquieta algumas outras coisas. Será que a própria história do capitalismo não mostra planos e projetos de racionalização arquitetados e executados de forma descentralizada? Afinal estamos falando da ação de classes sociais e não de indivíduos. Por outro lado, não seria possível vislumbrar estas “mediações” articulando diferentes ramos e setores produtivos a partir de uma perspectiva política revolucionária, onde a forma capitalista de exploração do trabalho (que se estendem às relações de troca) seja substituída por práticas revolucionárias (não capitalistas, portanto, não exploratórias)?
Evidentemente aqui não se busca cair no mesmo erro que o autor acusa aos anarquistas (embora não me considere anarquista). Desta maneira, mesmo considerando que a colocação da questão é muito válida e me parecendo ainda mais oportuna que este debate seja travado no espaço deste site (já que esta é uma de suas missões), rogo para que o autor no correr da série proceda um salto para além dos postulados meramente teóricos e promova alguma apreciação dos processos revolucionários de um ponto de vista historiográfico, mesmo que (ou oportunamente) de forma crítica.
Mesmo assim a questão ainda permanece e se por um lado possamos questionar a eficácia das instituições mais próximas ao anarquismo sobre este ponto (e também de outras linhas do movimento operário que não tinham preocupação explícita em se vincular estreitamente com esta ou aquela corrente teórica), também é fato que nenhum Estado organizado consoante os preceitos marxistas conseguiu solucionar a questão de um ponto de vista revolucionário, de ruptura efetiva com a exploração do trabalho, sendo este precisamente o motivo porque estamos aqui debatendo.
Caro Rodrigo Araújo,
As “mediações de primeira ordem” são sob o capital organizadas e subjugadas pelas “mediações de segunda ordem”, visando a produção de valor, por meio da divisão estrutural-hierárquica do trabalho. Tal forma de controlar e direcionar a produção em acordo com os imperativos de expansão/acumulação do capital é sempre hierárquico, mas nem sempre centralizado, e isso se deve a que a centralização do capital e as tendências monopolistas do sistema com o tempo mostraram que a organização centralizada da produção trazia algumas desvantagens no que tange ao imperativo de que a rotação do capital seja sempre a mais rápida possível e com a menor porosidade e gastos inúteis no circuito do capital total (produção, circulação, troca e consumo). Com o tempo as corporações perceberam que uma organização descentralizada trazia vantagens relativas, entre outras coisas, porque inseria a competição dentro da própria estrutura produtiva em menor escala, permitindo um controle mais rigoroso do processo produtivo, às vezes terceirizado, por exemplo. Com tal descentralização, atuante enquanto contratendência à centralização de capitais, o capital se tornou capaz de intensificar a exploração do trabalho e “superar” alguns dos gastos desnecessários que uma estrutura centralizada não era capaz sequer de localizar. De todo modo, atualmente as tecnologias de comunicação, etc., permitem um controle rigoroso dos processos produtivos e distributivo, e tal controle ainda é, e não pode deixar de ser, bastante centralizado.
A acusação ligeira ao anarquismo foi dirigida a toda e qualquer grupo/tendência anarquista cujo projeto não problematize adequadamente a simultânea necessidade de superar o Estado e impossibilidade de fazer isso de imediato ou rapidamente.
Sobre a questão da “presunção tecnocrática” e que “não ocorre ao autor se colocar a questão sobre a capacidade das lutas em seus processos de enfrentamento de gestarem”. Me parece que houve algum desentendimento, talvez por ser apenas a primeira parte da série; pois minha intenção é justamente a de defender que as lutas da classe trabalhadora organizada são as únicas capazes de “gestar seus próprios mecanismos para superarem a forma Estado de dominação”. Entretanto não sei se estamos de acordo com o significado dessa “capacidade de gestar seus próprios mecanismos”, já que na frase seguinte você desdobra que fica “evidente” que não defendo isso quando recuso o par conceitual centro-periferia, que você, em certo sentido corretamente, desdobrou pra uma recusa do legado de Ruy Mauro Marini. Em todo caso, a categoria superexploração me agrada, e a uso despojada de seus elementos “nacionais”, priorizando o caráter transnacional do capital que superexplora seja na “periferia” ou “centro”. Não entendi se quando você disse “o problema dessa teorização me parece” você se referia ao meu texto ou à teoria do Marini. Me parece que foi uma crítica ao Marini, critica com a qual concordo em partes. O segundo ponto que você aponta, sobre o capital ser impelido a dinâmicas imperialistas, você aponta tal imperialismo como caracterizado pela dinâmica entre países, nacionalidades, capitais ancorados em nacionalidades?
Sobre a questão de se seria possível vislumbrar as mediações de primeira ordem “articulando diferentes ramos e setores produtivos a partir de uma perspectiva política revolucionária, onde a forma capitalista de exploração do trabalho (que se estendem às relações de troca) seja substituída por práticas revolucionárias (não capitalistas, portanto, não exploratórias)”. Sim, é claro que é possível, mas como fazer isso frente a um poderoso sistema do capital armado com um aparato estatal repressivo/coercitivo e estruturado em mediações de segunda ordem que, arraigadas na base econômica da sociedade, exercem uma força autoreprodutiva aparentemente insuperável? Ou seja, que fazer com o Estado e com a luta de classes enquanto se dá os primeiros passos na criação dessa nova forma de vislumbrar as mediações de primeira ordem? O sistema do capital não vai ficar parado apenas olhando de longe a criação de um modo alternativo de controle e estruturação do metabolismo social. Também não se trata de tomar o poder político e aí então começar a criação desse modo alternativo de mediação. Daí a importância de se pensar, entre outras coisas, a superação do Estado na transição e os órgãos políticos (das lutas sociais) necessários pra tal, sempre tendo em mente que a luta é agora e não no futuro distante, e que a construção da autonomia das lutas e a construção do poder popular não é um meio para a revolução e sim a própria revolução in flux, sendo a tomada do poder político um coroamento e aprofundamento da transição e não o começo ou final dela.
Sobre a questão final, de que se por um lado podemos questionar
1) a eficácia das instituições mais próximas ao anarquismo, 2) nenhum Estado organizado consoante os preceitos marxistas conseguiu solucionar a questão.
Bem, aí é que entra a contribuição do texto e a necessidade do debate. Isso porque, primeiro, os Estados organizados consoante os princípios marxistas, leia-se a URSS e seu círculo de influência, a meu ver NÃO estavam organizados segundo os preceitos de Marx (daí essa série acaba tendo um tom de “fazer justiça a Marx”) e sim segundo a leitura leninista de Marx. O trágico é que não se trata de um erro de interpretação de Lenin, e sim de uma opção política do Partido Bolchevique, recheada de justificativas “históricas”. Quando Lenin torna os sovietes órgãos estatais ele tinha plena consciência de que estava a fortalecer o Estado e a enfraquecer os órgãos de poder popular. Ora, para ele, tratava-se de uma “necessária” opção, por conta da complexidade envolvida nas lutas internas da URSS, da força da contra-revolução, do estado econômico do país, etc., enfim, por conta do “contexto” e das “tarefas” da revolução. Eu ainda não tenho colhões pra dizer que ele “errou”, mesmo porque o fracasso da transição já mostrou que eles, o Partido e a classe trabalhadora soviética, erraram. O que importa é que a transição do futuro não pode nem chegar nessa situação de “ter” que enfraquecer os órgãos de poder popular a fim de fortalecer o Estado a ser superado, não importando se tal Estado esteja sob direção do mais revolucionário dos Partidos, pois o mais revolucionário dos Partidos não pode jamais desmantelar os órgãos de poder popular. Os órgãos de poder popular tem que ter força pra não permitir isso, não importa o contexto, pois tais órgãos da revolução são a revolução.
As experiências históricas e a bagagem analítica/crítica de tais experiências permitem elencar alguns “princípios” que devem ser seguidos pra se poder superar o capital. Infelizmente o poder da teoria da transição antes da transição estar em curso avançado para por aí. Mas não é pouco. O debate é necessário não só pra arrumar as arestas desses “princípios” como também pra nos permitir uma orientação mais realista quando da construção dos órgãos da revolução durante nossas lutas.
Muito obrigado pelo comentário. Espero que sigamos o debate neste e nos próximos artigos da série.
apenas uma contribuição para o tema que estava sendo debatido com a Amiga, sobre a produção feita sob controle dos trabalhadores e o vínculo com o Estado. Vale a pena conferir este pequeno relato jornalístico-romântico de uma Comuna venezuelana (em espanhol. Supostamente será uma série de relatos quinzenais deste portal, esta é a primeira):
http://www.marcha.org.ar/1/index.php/cultura/135-relatos/4678-piritu-becerra-una-comuna-que-produce-vida-y-organizacion
Pablo,
Referia-me sim ao Marini. Para ele a superexploração se trata de um conjunto de três mecanismos – a intensificação do trabalho, a prolongação da jornada de trabalho e a expropriação do excedente produzido pelo trabalhador. Ocorre que a noção de excedente tem origem na economia clássica, onde o progresso tecnológico – e não da exploração da mão-de-obra, diferente, portanto, da mais-valia de Marx – seria a pedra de toque da geração de valor. Das relações sociais passamos analisar a sociedade a partir das tecnologias que ela mesma produziu. Mas vejamos onde a série irá nos levar.
Minha alusão ao imperialismo teve objetivo contrário ao do que questiona, tendo em vista que me referia à dinâmica interna do processo de exploração do trabalho, que em função da necessidade de acumulação constante tende sempre a se lançar em empreitadas expansionistas, na busca por produzir em quantidade crescente.
Por fim, eu tenderia a colocar a questão sobre a reação dos capitalistas em outros termos, pois se “o sistema do capital” é composto por relações sociais e se no processo de transformação social estiverem ocorrendo transformações nestas relações, me parece que isto também teria alguma influência sobre a própria dinâmica da contra ofensiva dos capitalistas, o que não deixaria de ter sérias implicações sobre a dinâmica da instituição de um novo modo de produção. Assim o que é tido por certeza eu coloco como dúvida: como é possível prever um processo social desta magnitude? Será que instrumentos forjados em outro contexto seriam mesmo capazes de dar respostas à dinâmica social atual?
Lucas, obrigado pelo link. Estou na correria, então ainda não li, mas assim que possível lerei.
Rodrigo, o que do pondo de vista do capital toma o nome de mais valia, é, do ponto de vista da classe trabalhadora, trabalho excedente. Valor é trabalho socialmente necessário e mais-valor é trabalho excedente expropriado sem remuneração. Assim, embora tenha surgido, como vc diz, na economia clássica (eu diria inclusive que é anterior, mas enfim…), a noção de excedente está em Marx e não poderia deixar de estar, já que expressa o objetivo maior de toda produção de capital. Claro, localizar tal excedente como fruto único do progresso técnico é loucura, mas a meu ver você não toma o cuidado necessário e acaba desqualificando a problemática da técnica como se fosse algo alheio às relações sociais. As mudanças tecnológicas são um dos elementos principais usados pelos capitalistas como contratendência a algumas das mais sérias contradições internas do capital, como por exemplo aquela que expulsa trabalho vivo do processo produtivo, o tal aumento da composição orgânica do capital. Além disso, me parece que essa desqualificação da temática da técnica em pró da observância das “relações sociais” faz com que você tenha uma visão estreita sobre os mecanismos do imperialismo. Você diz que o capital “tende sempre a se lançar em empreitadas expansionistas, na busca por produzir em quantidade crescente”. Ora, para além do fato de que seria necessário precisar esse termo “quantidade crescente”, há que observar que com a instituição do capital em todo o globo, não haveria uma saturação dessa capacidade do capital se expandir infinitamente buscando ampliar o círculo de consumo? A Rosa Luxemburgo foi uma das primeiras a tratar dessa questão. As saídas que o capital ensaia para tais limites são muitas, como por exemplo intensificar a produção e consumo em determinadas áreas, aumentar a rotação do capital, aumentar o ritmo de desvalorização/depreciação do valor, obsolescência programada, etc. Na maioria dos casos, as saídas capitalistas para tais limites, ou seja, as respostas capitalistas visando manter as relações sociais capitalistas, provém da técnica. É o desenvolvimento tecnológico um dos mais poderosos elementos que proporciona ao capital fôlegos a mais por meio da reorganização da produção capitalista num sentido que contrarreste a tendência à queda da taxa de lucro e ao aumento da composição de valor do capital. O João Bernardo, que tenho certeza que você conhece melhor que eu, também sempre ressalta a importância de termos em mente as “relações sociais”; mas me parece que ele não desqualifica a problemática da tecnologia, pelo contrário, tem uma teoria muito interessante sobre como esse desenvolvimento tecnológico e essas saídas capitalistas provém da capacidade do capital de sistematicamente assimilar as lutas da classe trabalhadora e os frutos/inovações organizacionais, etc criativamente criados por essa classe em suas lutas.
Eu não disse que é possível prever “um processo social desta magnitude”. O que eu digo implicitamente (na série) é que embora não possamos prever os desdobramentos futuros da luta de classes, podemos apontar, por meio da análise crítica do sistema do capital e suas características estruturais, quais são os elementos dessa estrutura que devem ser superados e quais são as formas de levar a cabo tal superação ou, ao menos, quais são as formas que não deram e não darão certo (aí entra a questão dos instrumentos forjados em outro contexto se mostrarem, muitas vezes, inadequados frente às tarefas).
Camaradas, obrigado pelos comentários.
Caro Pablo,
Decretou uma polarização em minha perspectiva que não corresponde ao que eu disse. Na verdade, me parece impossível compreender as tecnologias exteriormente ao modo de produção que as gesta. E aqui não estou falando de técnicas, que extrapolam espaços e tempos como conhecimentos sistematizados e aplicados (embora com funções distintas em distintos modos de produção), mas da tecnologia, ou seja, a organização para que as práticas de exploração se realizem. As tecnologias se transformam no tempo e em função da dinâmica da luta de classes. Poderia citar como exemplo o contexto revolucionário do início do século XX que abriu espaço a instituição do taylorismo ou as lutas das décadas de 1960-1970 que abriram espaço ao toyotismo (diferentes tecnologias de exploração direcionadas a diferentes situações da luta de classes). Tomar a consequência pela causa neste caso pra mim continua significando uma adesão à uma perspectiva tecnocrática, como se fossem os tecnocratas a instituírem a realidade social independentemente das tensões sociais que a compõem.
Por outro lado, da forma que você coloca se “Valor é trabalho socialmente necessário e mais-valor é trabalho excedente expropriado sem remuneração” fica bastante difícil explicar como há acumulação capitalista, pq seguindo a lógica desta sua afirmação o excedente expropriado sem remuneração não valeria nada, já que não seria socialmente necessário. Ao contrário, até onde eu entendo, o trabalho socialmente necessário serve para mensurar o valor tanto da parte do trabalho necessário à reprodução da força de trabalho quanto para a parte que serve à acumulação capitalista, sendo por isso impossível qualificar a mais-valia como simples excedente. Inclusive quando se produz menos mais-valia isso implica em menor acumulação para o capitalista, sem por isso o sistema se tornar menos “predatório”. Na verdade o que ocorre é exatamente ao contrário, pois quanto menor a capacidade de acumulação, maior se torna a sanha dos capitalistas em dilapidar a própria força de trabalho, utilizando para isso regimes de exploração baseados em mais-valia absoluta.
Sobre as limitações da expansão do sistema, basta olhar para produtos comercializados hoje (muitos deles baseados em tecnologia intensiva) e aos de ontem. Será que o gênio e a capacidade humana de se reinventar e criar novas necessidades sociais serão um dia um limite à expansão do capitalismo? Até agora acredito que a resposta para esta questão seja negativa, pois o homem não se limita a explorar espaços previamente existentes, mas também atua na criação de novos espaços….
De qualquer modo, obrigado pelas respostas. Sigamos na série.
Pablo, parabéns pelo texto! Você desenvolve com muito mais propriedade vários pontos que no meu texto aparecem de modo impressionista, a despeito de algumas diferenças conceituais e de perspectivas – por exemplo, nos afastamos bastante quando você escreve: “Marx mostrou ter plena consciência das dificuldades que adviriam e ressaltou inúmeras vezes, com realismo, que os problemas relativos à reestruturação da sociedade seriam grandes demais para serem “resolvidos” por decreto, ou seja, pela via exclusivamente política”.
Uma das problemáticas que não foi destrinchada no meu texto é justamente essa da prática política, que me parece o próprio fundamento para realizarmos a luta de classes proletária em outro patamar, em meio aos processos de eliminação ou “fenecimento” do Estado e da sociedade de classes. Penso mesmo que os erros de Marx e da tradição que ele fundou transparecem em grande medida nessa concepção da política como prática de decretar e administrar, manifestação de um intelecto gestorial.
Os embaraços com a prática política aparecem no próprio cotidiano de nossas organizações classistas, e isso não é gratuito, sinalizando novos e velhos problemas no porvir da luta de classes…
Caro Rodrigo,
o ponto em que nos afastamos é de suma importância para minha abordagem do problema. Trata-se da concepção negativa da política, que estou convencido que seja a concepção de Marx, e seus limites. Peço-lhe que atente para os artigos 6 e 7 da série. Teremos muito que conversar.
Um abraço