Por João Valente Aguiar

Neste artigo em seis partes pretendo discutir a tensão entre um vector emancipatório, anticapitalista e internacionalista e um vector nacionalista e estatista nas obras políticas de Marx. Ao contrário da esmagadora maioria da esquerda, que tende a santificar as suas figuras, por mais geniais que tenham sido, o objectivo deste artigo será dar conta de alguns aspectos do nascimento e desenvolvimento do nacionalismo à esquerda. Apresentar-se-ão algumas pistas visando a relação entre o desenvolvimento de vectores antagónicos na obra teórica marxiana e de como estes traduzem conexões com aspectos relacionados com a evolução das lutas sociais no século XIX.

Assim sendo, na primeira parte deste artigo procurarei discutir uma definição minimalista mas abrangente do conceito de nacionalismo. Após essa introdução, na segunda parte, analiso a tensão entre o grito de revolta internacionalista e a solução política nacional que Marx e Engels prescreveram para a mobilização da classe trabalhadora no Manifesto Comunista. Na terceira parte, contextualizo o Manifesto no quadro da sua época, debatendo algumas das suas omissões políticas estratégicas. De seguida, na quinta parte, abordo resumidamente as contradições entre o estatismo e o controlo político do proletariado na Comuna de Paris, conforme Marx o concebeu à época. Por último, nas duas partes finais, o artigo centra-se na análise da formação de duas esquerdas dos gestores. Ali procura-se debater a tensão entre os contributos teóricos de Marx para a compreensão do capitalismo e os seus contributos para a construção de uma plataforma política e organizativa de gestores.

Uma definição minimalista de nacionalismo

O nacionalismo não é sinónimo de fascismo. Apesar de o primeiro ser sempre uma via aberta para o segundo, importa reconhecer algumas diferenças. Só tendo em mente estas diferenças se pode perceber como é possível circularem temas, activistas, práticas e/ou teses políticas entre dois pólos opostos do espectro político. Assim, o fascismo não é apenas um nacionalismo belicista, mas situa-se na confluência entre a classe e a nação, nos interstícios das ambiguidades com que a esquerda anticapitalista se foi deparando. Assim, se, por exemplo, foi na esquerda sindicalista revolucionária de inspiração soreliana que surgiram as primeiras teses do pretenso antagonismo entre o capital produtivo e o capital especulativo, e se o fascismo se apropriou delas, hoje é novamente a esquerda a principal difusora dessas proposta

Mas se ambos podem comunicar intimamente entre si, o nacionalismo comporta sempre algo mais genérico e mais vasto do que o fascismo. Enquanto este último transporta a dinâmica nacionalista da harmonia entre classes antagónicas num espaço nacional para a renovação da ordem capitalista por via da mobilização operária e militar, o nacionalismo é dotado de um carácter mais abrangente e o seu leque de ideias e de práticas estende-se a múltiplas correntes e organizações políticas. O fascismo é o corolário de uma determinada confluência de processos. O nacionalismo, pelo contrário, é um pressuposto permanente nas sociedades contemporâneas. Vejamos alguns aspectos que compõem o nacionalismo.

Dito de forma concisa, o nacionalismo é uma construção da modernidade capitalista e fundamenta-se em dois princípios fundamentais. Por um lado, a soberania popular e, por outro, a transformação de um antagonismo universal numa harmonia nacional.

Assim, a soberania popular moderna distingue-se totalmente da soberania política das sociedades pré-capitalistas na medida em que rejeita a figura do soberano como representante e agente directo de uma vontade divina. Esta é uma transformação de monta e representa um corte com as noções existentes da política e da sociedade nos modos de produção pré-capitalistas.

Desse modo, a ruptura operada nos mecanismos de legitimação da soberania do Estado moderno tanto se aplica à estrutura interna do aparelho de Estado como vai exigir uma relação imprescindível com a população. Nesse sentido, os princípios de organização do Estado moderno expandem-se para o exterior da sua estrutura e organizam o que se convenciona denominar de comunidade nacional. Assim sendo, o Estado regula administrativamente uma população dentro de um determinado território. Contudo, a regulação está muito longe de ser estritamente técnica mas concretiza-se fundamentalmente no plano das práticas e das ideologias. Nesse sentido, a nação é sempre uma decorrência de uma prática política favorável e vital à reprodução ou nascimento de um Estado.

Ora, se o Estado moderno se constrói como um conjunto de instituições centralizadas e monopolizadoras do uso da violência; e se o Estado moderno replica o princípio capitalista da cisão entre os detentores das funções de direcção e de coordenação da vida social em geral; então o Estado não é antagónico do mercado e das empresas. Pelo contrário, complementa-as e auxilia na criação de condições políticas para a sua expansão.

Não focando o plano da intervenção económica, cinjo-me aqui unicamente ao plano político propriamente dito. Assim sendo, o nacionalismo surge como a aplicação óptima dos princípios políticos do Estado no plano ideológico. O mesmo é dizer que o nacionalismo concretiza a legitimação política do Estado da seguinte maneira:

«O Estado apresenta-se como o representante do “interesse geral” de interesses económicos divergentes e em competição. […] Este Estado apresenta-se como a incarnação da vontade popular do povo-nação. Assim, o povo-nação é institucionalmente fixado como o conjunto de “cidadãos” ou “indivíduos” em que a sua unidade é representada pelo Estado capitalista» (Poulantzas 1978: 133).

Cito propositadamente um autor estruturalista para, de uma só vez, evidenciar o carácter durável das propriedades do Estado que nunca se corrompem com as mudanças eleitorais, governativas e conjunturais; e evidenciar a ligação do Estado à difusão do nacionalismo. Ou, dito de forma simétrica, as manifestações de nacionalismo em qualquer organização extra-estatal (partidos, sindicatos, movimentos sociais, associações, etc.) são a forma mais poderosa de manter os princípios hierárquicos e impositivos do Estado capitalista sobre os trabalhadores. Com a grande vantagem para o Estado e para os capitalistas de essas formas nacionalistas poderem penetrar o tecido das sociabilidades concretas e quotidianas de trabalhadores e activistas.

Assim sendo, sob qualquer forma mais ou menos agressiva, o nacionalismo tem como núcleo fundador a replicação de mecanismos totalmente opostos à difusão de práticas autónomas, democráticas e decididas colectivamente pelos trabalhadores. Fazendo a ponte com a história das lutas sociais, a formação, difusão e maturação de organismos de poder proletário (conselhos operários, comissões de fábrica) mostra-se incompatível com a aceitação do nacionalismo. E assim é, tanto pela verticalidade de relações impositivas que o nacionalismo difunde, como pelo facto de o nacionalismo ser um dos exemplos mais flagrantes de formação de um «mito da coesão social» (Bernardo 2003: 215) nas sociedades capitalistas.

Se o internacionalismo veicula o princípio da dissolvência das fronteiras, do Estado e da exploração, «o modo nacional do poder valoriza forçosamente uma outra concepção. Porque quer mobilizar o todo nacional, o modo nacional valoriza o poder representante, particular, territorializado e centralizado que é o do estado nacional, sendo através deste que ele pretende constituir-se parte do mundo» (Neves 2008: 398). Por outras palavras, o nacionalismo desenha uma unificação entre trabalhadores e capitalistas do mesmo país, ao mesmo tempo que recorta em pedaços nacionais a transversalidade global da condição proletária/assalariada. Separam-se assim trabalhadores na mesma exacta medida em que se unificam ideologicamente membros de classes sociais antagónicas. No dizer de um especialista, o nacionalismo é um «processo que cria um universal sobre a dualidade social» (Trindade 2008: 44).

Enveredei até aqui por uma postura fundamentalmente descritiva e resumida do fenómeno nacionalista, tentando acima de tudo chegar ao seu núcleo conceptual. O leitor verificará igualmente que, nos seus traços fundamentais, a abordagem recorre a conceitos e teses devedoras do marxismo. Ora, se o marxismo fornece algumas pistas perspicazes para desmontar o fenómeno nacionalista e considerá-lo como parte integrante da reprodução do modo de produção capitalista, o marxismo é também, desde Marx, responsável pela reinserção de eixos políticos e ideológicos nacionalistas no seio da classe trabalhadora. Como referiu um estudioso desta matéria, o nacionalismo tem-se «revelado uma anomalia desconfortável para a teoria marxista e que, precisamente por essa razão, tem sido evitado, mais do que confrontado» (Anderson 2012: 23). E o mesmo autor lembra:

«de que outra forma poderíamos explicar o uso, durante mais de um século, do conceito de “burguesia nacional” sem que haja um esforço sério no sentido de justificar teoricamente a relevância do adjectivo? Porque é esta segmentação da burguesia – uma classe mundial, na medida em que é definida em termos de relações de produção – importante a nível teórico?» (Anderson 2012: 23).

Apesar de adepto individual do nacionalismo, Benedict Anderson teve sempre a lucidez de abordar as contradições do marxismo. No caso, a definição social das classes esbarra com a territorialização geopolítica enquanto critério político.

Os enunciados políticos e teóricos comportam sempre ambiguidades e esquinas retorcidas no seu seio. Equivocam-se aqueles que pensam encontrar em quaisquer enunciados teóricos, inclusive nos mais fecundos, uma via rápida e directa para fórmulas prontas. Se a teoria política e científica é sempre socialmente produzida, então a produção teórica de Karl Marx não vive num estado de pureza etérea mas espelha, de modo complexo e contraditório, as vicissitudes das lutas sociais do capitalismo.

Bibliografia desta primeira parte

ANDERSON, Benedict (2012) – Comunidades imaginadas. Lisboa: Edições 70; BERNARDO, João (2003) – Labirintos do fascismo. Porto: Afrontamento; NEVES, José (2008) – Comunismo e nacionalismo em Portugal. Lisboa: Tinta da China; POULANTZAS, Nicos (1978) – Political power and social classes. London: New Left Books; TRINDADE, Luís (2008) – O estranho caso do nacionalismo português. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais

A série Marx e a nação. Um abraço pela frente e uma facada por trás é formada pelos seguintes artigos:

1) O nacionalismo
2) O espaço nacional no centro da constituição do proletariado em classe
3) A onda internacional ignorada
4) A Comuna de Paris: um Estado por cima dos operários?
5) Marx e os gestores
6) As duas esquerdas dos gestores

2 COMENTÁRIOS

  1. burguesia nacional existe porque o capital só existe por meio da concorrencia e como ele precisa de agentes subjetivos e estes estão inseridos em Estados Nacionais, existem burguesias nacionais. Ademais o capital se desenvolve de forma desigual, não é homogeneo. A contradição aqui é do capital e não da teoria.
    Não li os outros textos, mas me causa espanto em um texto com o título “Marx e a Nação” que a crítica do ‘jovem Marx’ ao Estado não esteja presente no artigo.

  2. Andre,

    já respondi à questão dos Estados nacionais noutro comentário. Existem dois artigos meus que abordam directamente o assunto: http://passapalavra.info/2013/05/77152
    http://passapalavra.info/2013/05/77590

    Sobre o jovem Marx. Lamento desiludi-lo mas neste ponto em específico acho que o Althusser tinha alguma razão. Os tempos do jovem Marx são importantes e ajudam a estabelecer os rudimentos de um novo modo de pensar o capitalismo e a vida social mas a orientação da maioria dos textos até 1845 é fundamentalmente especulativa e claramente normativa. Por exemplo, os Manuscritos de 1844 são algo de fenomenal para quem os escreveu com 26 anos de idade. São sem dúvida um esforço analítico espantoso para alguém que está a sair da reflexão filosófica e busca um novo terreno racional de compreensão do mundo social.

    Todavia, achar que nos escritos do jovem Marx se encontra uma teoria do capitalismo é uma ilusão. Em última instância, não há até 1845 uma concepção sólida da sociedade mas fundamentalmente uma crítica aos vícios e aos efeitos políticos do capitalismo. Não existe ali uma crítica aos seus fundamentos.

    Em Portugal, uma certa onda de gente ligada à filosofia conhece de trás para diante os textos desse período. Curiosamente nada dominam da obra posterior. E esse é o maior problema. Congelar a obra do Marx naquele período, recortar o Marx apenas até 1845 leva a uma abordagem estritamente moralista e voluntarista ao capitalismo. O mesmo fazem muitos outros que estudam o capitalismo a partir única e exclusivamente, sublinho única e exclusivamente, da leitura do Zizek, do Badiou, do Ranciére, etc. Ora, conhecer e criticar o capitalismo é tudo menos especulação e condenação moral dos seus efeitos. Esse é o ponto de chegada, nunca o de partida. O próprio Marx avançou muitíssimo após 1845 precisamente porque, correctamente, foi cada vez mais alicerçando os seus estudos na compreensão da materialidade do capitalismo e não nas obras especulativas e filosofantes do seu tempo. Veja quais foram os autores que mais influenciaram o Marx e a sua teoria económica e veja quantas pessoas de esquerda estão lá no meio.

    Para terminar esta parte da «crítica do jovem Marx ao Estado». A esmagadora maioria das obras do jovem Marx teve pouca influência directa na formação da esquerda dos gestores. Teve influência intelectual (e mesmo aí boa parte dela só teve larga difusão a partir dos anos 30) mas directamente organizativa, isso não se pode afirmar. Daí que eu tenho escolhido propositadamente textos políticos do Marx com largo impacto na esquerda, nomeadamente o “Manifesto” e “A guerra civil em França”.

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