Por Pablo Polese

 

Diferentemente da ambiguidade do tratamento dado por Engels ao período da transição socialista, Marx determinou com nitidez os três momentos do “Estado” antes e durante a revolução proletária: Estado capitalista, “Estado” transitório (Ditadura do proletariado) e Comunismo, onde o Estado já pereceu completamente:

Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista medeia o período da transformação revolucionária da primeira na segunda. A este período corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser outro senão a ditadura revolucionária do proletariado. (MARX, s/d: 221)

Atento aos problemas inerentes ao período de transição, Marx formulou claramente o problema: que transformação sofrerá o Estado na sociedade comunista? Que funções sociais, análogas às atuais funções do Estado, subsistirão então?

Quanto àquelas instituições do Estado capitalista que são inerentemente operantes para as funções de controle e repressão, inerentes à sociedade de classes, Marx não deixou dúvidas: quanto a essas instituições estatais a atitude comunista deveria ser decidida, e o termo correto a ser empregado seria esse: destruição. É assim que ele se expressa numa carta enviada a L. Kugelmann em 12 de abril de 1871 – portanto, durante a experiência da Comuna – onde lembra que já há mais de duas décadas havia ressaltado a necessidade de demolição do aparato estatal repressivo:

Se você reler o último capítulo do meu 18 Brumário, verá que afirmo que a próxima tentativa da revolução francesa não será passar a máquina burocrático-militar de umas para outras mãos, como até agora vinha sucedendo, mas tratará de demoli-la [1], e esta é a condição prévia de toda verdadeira revolução popular no continente. Nisto, precisamente, consiste a tentativa de nossos heroicos camaradas de Paris. (in: MARX, s/d-b: 262-3)

Em seus escritos sobre a Comuna Marx não deixa restar qualquer possibilidade de “dúvida” sobre seu posicionamento quanto ao papel da máquina estatal na transição. Depois de afirmar o caráter de “guerra contra o capital” da Comuna de 1871, [2] Marx pontua com firmeza:

O que os trabalhadores tinham de derrubar era não uma mais ou menos incompleta forma de poder governamental da velha sociedade, mas sim esse poder mesmo em sua forma mais acabada e exaustiva: o Império. O oposto direto do Império era a Comuna. Em sua mais simples concepção, a Comuna visava a destruição preliminar da velha maquinaria governamental em suas sedes centrais – Paris e as outras grandes cidades da França – e sua substituição por um verdadeiro autogoverno que, em Paris e nas grandes cidades, bastiões da classe trabalhadora, era o governo da classe trabalhadora. (MARX, 2011: 172 – grifos nossos)

Os proletários da capital, através do Comitê Central (Resolução de 20 de março), entenderam que era preciso “salvar a situação tomando em suas mãos a direção dos negócios públicos… Entenderam ser seu imperioso dever e seu absoluto direito tomar em suas próprias mãos o seu próprio destino, apossando-se do poder político (poder estatal)”. Ora, objeta Marx:

Mas o proletariado não pode, como o fizeram as classes dominantes e suas diferentes frações rivais nos sucessivos momentos de seu triunfo, simplesmente se apossar desse corpo estatal existente e empregar esse aparato para seu próprio objetivo. A primeira condição para a manutenção do poder político é transformar a maquinaria estatal e destruí-la – um instrumento de domínio de classe. Essa enorme maquinaria governamental, que como uma jiboia constringe o verdadeiro corpo social na malha ubíqua de um exército permanente, uma burocracia hierárquica, uma polícia e um clero obedientes e uma magistratura servil, foi primeiramente forjada nos dias da monarquia absoluta como uma arma da nascente sociedade da classe média em suas lutas para emancipar-se do feudalismo. (MARX, 2011: 169) [3]

Mesmo tratando-se de um Rascunho, Marx é muito claro, não deixando pontos “ambíguos” que possibilitem interpretações divergentes. A classe operária não pode, segundo Marx, simplesmente se apossar da maquinaria estatal tal como ela se apresenta e dela servir-se para levar a cabo seus próprios objetivos revolucionários. Ou seja: “o instrumento político de sua escravização não pode servir como o instrumento político de sua emancipação” (ibid: op.cit).

A Comuna de Paris deu lastro histórico à teoria da transição de Marx. É apenas com a Comuna que Marx tem a oportunidade de vislumbrar a resolução de alguns dos problemas práticos relacionados à transição ao Comunismo. Não por acaso, Marx afirmou: “A Comuna era essencialmente um governo da classe trabalhadora, o produto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a forma política, finalmente descoberta, [para levar a cabo] [4] a emancipação econômica do trabalho” (MARX, 2008c: 406).

A Comuna de Paris foi a primeira experiência de Estado-que-já-não-é-Estado da transição, aquele tipo de Estado que abre mão de seu caráter político e, reestruturado de baixo para cima, deixa de ser Estado, passando a constituir o Estado da transição, a Ditadura do proletariado. Embora Marx não use esse termo para tratar da Comuna, ele é sem dúvida a ela aplicável, como Engels fez questão de dizer, em seu prefácio à edição de 1891 ao Guerra civil na França, de Marx:

Ultimamente o filisteu social-democrata foi tomado de um terror sagrado ao ouvir pronunciar a expressão ditadura do proletariado. Bem, senhores, quereis saber que rosto tem essa ditadura? Olhai para a Comuna de Paris. Era a ditadura do proletariado. (Engels in MARX, 2008c: 355)

Caberia apontar algumas medidas levadas a cabo pela Comuna de Paris, despojando-a de seu caráter propriamente estatal. Marx inicia o terceiro capítulo de A guerra civil na França indagando “Que é a Comuna, essa esfinge que tanto atormenta o espírito burguês?”, e a seguir pontua uma série de medidas políticas e sociais feitas pelos comunardos. Primeiro:

A Comuna foi formada por conselheiros municipais, eleitos por sufrágio universal nos vários bairros [arrondissements] da cidade, responsáveis [por seus atos] e revogáveis em qualquer momento. A maioria dos seus membros eram, obviamente, operários ou representantes reconhecidos da classe operária. (MARX, 2008c: 403)

Já por essa medida a Comuna demonstra uma superação em relação à política burguesa, uma vez que constitui um corpo político que não é representativo-formal, mas sim um corpo de trabalho, simultaneamente executivo e legislativo, onde cada membro é “responsável” por sua função designada, e tem sua função revogável a qualquer momento, se não mais satisfazer aos “anseios do povo”. Além disso, os cargos públicos têm remuneração similar ao de qualquer outro trabalho proletário, o que afasta de antemão os caçadores de cargos públicos ávidos pelos típicos privilégios políticos e econômicos que acompanham tais cargos na sociedade burguesa. E tal processo não se limitou ao executivo e legislativo:

Em vez de continuar a ser o instrumento do governo central, a polícia foi imediatamente despojada de seus atributos políticos e transformada num instrumento da Comuna, responsável e a qualquer momento revogável. O mesmo aconteceu com os funcionários de todos os outros ramos da administração. Dos membros da Comuna [até os escalões inferiores], o serviço público tinha de ser feito em troca de salários de operários. Os direitos adquiridos e os subsídios de representação dos altos dignitários do Estado desapareceram com os próprios dignitários do Estado. As funções públicas deixaram de ser a propriedade privada dos testas-de-ferro do governo central. Não só a administração municipal, mas também toda a iniciativa até então exercida pelo Estado foram entregues nas mãos da Comuna. […] Os funcionários judiciais haviam de ser despojados daquela falsa independência que só tinha servido para mascarar a sua abjeta subserviência a todos os governos sucessivos, aos quais, um após outro, eles tinham prestado e quebrado juramento de fidelidade. Tal como os restantes servidores públicos, [também os] magistrados e juízes haviam de ser eletivos, responsáveis e revogáveis. (ibid: op.cit)

A Comuna também desapropriou as Igrejas e tornou a educação pública e laica. Dessa forma, “não apenas a educação foi tornada acessível a todos, mas também a própria ciência liberta dos grilhões que os preconceitos de classe e a força governamental lhe tinham imposto”. Embora construída nas condições mais adversas, que lhe permitiram durar apenas pouco mais que dois meses antes de ser massacrada pelos exércitos da “ordem” burguesa (tendo seus mais de 30 mil membros ou apoiadores presos, exilados ou barbaramente assassinados), a Comuna conseguiu feitos políticos e sociais inacreditáveis, tendo inclusive esboçado como seria a forma de administração e organização comunal para além de Paris e do Estado francês:

A Comuna de Paris havia obviamente de servir de modelo a todos os grandes centros industriais da França. Uma vez estabelecido o regime comunal em Paris e nos centros secundários, o velho governo centralizado teria que dar lugar, nas províncias também, ao autogoverno dos produtores. Num esboço tosco de organização nacional que a Comuna não teve tempo de desenvolver, estabeleceu-se claramente que a Comuna havia de ser a forma política mesmo dos menores povoados do campo, e que nos distritos rurais o exército permanente havia de ser substituído por uma milícia [popular] [5] com um tempo de serviço extremamente curto. As comunas rurais de todos os distritos administrariam os seus assuntos comuns por uma assembleia de delegados na capital de distrito e essas assembleias distritais, por sua vez, enviariam deputados à Delegação Nacional em Paris, sendo cada delegado revogável em qualquer momento e vinculado pelo mandat imperatif [mandato imperativo] (instruções) dos seus eleitores. As poucas, mas importantes funções que ainda restariam a um governo central não seriam suprimidas, como foi intencionalmente dito de maneira deturpada, mas executadas por agentes comunais, e por conseguinte estritamente responsáveis. A unidade da nação não havia de ser quebrada, mas, ao contrário, organizada pela Constituição comunal e tornada realidade pela destruição do poder do Estado, o qual pretendia ser a encarnação dessa unidade, independe e superior à própria nação, de que não era senão uma excrescência parasitária. (MARX, 2008c: 404 – negrito meu)

Dessa forma, a Comuna de Paris, primeira experiência de tomada do poder político pelo proletariado, mostrou de fato ser possível uma organização mais racional da vida social, onde a divisão hierárquica do trabalho e das funções políticas foi substituída por uma nova configuração social em que as funções públicas são realmente feitas para e pelo povo, num esquema de divisão de funções não hierárquico, mas funcional. João Valente Aguiar, numa série de artigos intitulada Marx e a nação. Um abraço pela frente e uma facada por trás, ancora-se na citação acima para concluir que:

No plano político e num nível mais baixo de abstracção teórica, como o caso da avaliação da Comuna de Paris demonstra, o Estado – e todas as categorias e processos a si associados – continuou sempre a ser a bússola de orientação das expectativas emancipatórias do marxismo ortodoxo. […] poucos foram os que verificaram a incongruência estrutural entre a manutenção de um aparelho de Estado central e hierarquizado e uma organização proletária e democrática de base. […] Com efeito, é bizarra a postura de Marx. Ao mesmo tempo que via no poder de base dos trabalhadores a «forma política finalmente encontrada», Marx apresentava a necessidade de não quebrar a «unidade da nação» sob o auspício da manutenção de certos serviços estatais centrais.” (AGUIAR, parte 5, 2013: 3)

Ora, que o Estado tenha sido sempre (e o autor se refere não apenas aos marxistas vulgares, mas ao próprio Marx) “a bússola de orientação das expectativas emancipatórias do marxismo ortodoxo”, creio que já ficou comprovado por citações que se trata de uma ideia alheia à abordagem de Marx. Quanto ao segundo ponto da citação, referente à suposta defesa de Marx da “manutenção de um aparelho de Estado central e hierarquizado” e concomitante “organização proletária e democrática de base”, também creio que não preciso lançar mão de outras citações, já que toda a reflexão de Marx vai no sentido de criticar a estrutura centralizada e hierárquica do Estado burguês.

Já quanto à “bizarra” posição de Marx no sentido da manutenção da “«unidade da nação» sob o auspício da manutenção de certos serviços estatais centrais”, há que ponderar que a abordagem de Marx caminhou nesse sentido não porque lhe pertencia um suposto “nacionalismo” ou “estatismo”, o que constituiria não uma contradição interna ao pensamento de Marx, como de fato existem muitas, mas sim uma verdadeira prova de esquizofrenia, já que o nacionalismo é absolutamente incongruente com toda a análise crítica da economia política do capital feita por Marx, a qual entre outras coisas atesta que o sistema do capital é um sistema auto-expansivo e totalizante e que, por isso, nenhum sistema sociometabólico alternativo e localizado numa porção regional do planeta poderia perdurar por muito sem se ver frente à tarefa de lutar pelo controle do sociometabolismo até que um dos sistemas antagônicos sobressaísse e englobasse o outro. O internacionalismo, portanto, está pressuposto na própria análise de Marx acerca do que é o sistema a ser superado. Fosse o sistema diferente, talvez fosse possível a coexistência de formações sociais estruturadas em modos de produção radicalmente divergentes, mas como o sistema do capital é o que é, e é incontrolável, então não há opção, ou a revolução é mundial ou o sistema assimila as experiências pós-capitalistas e restaura seu controle total do sociometabolismo.

Além disso, antes de concluir que a postura de Marx é “bizarra” (como de fato ocorreram ocasiões de o ser, como quanto à Índia ou quanto aos eslavos), há de se pensar em pelo menos duas questões: primeiro, que nem toda atribuição ou função cumprida pelo Estado capitalista pode ser superada da noite para o dia, sendo necessário que os trabalhadores organizados assimilem essas funções e tornem-se aptos a executá-las com outros órgãos, não mais estatais, não mais hierarquicamente estruturados, etc., mas que enquanto isso não ocorre, a transição opera necessariamente com um aparato administrativo que dificilmente será reestruturado rapidamente e totalmente, sendo portanto a manutenção de atribuições centralizadas algo aceitável face às gigantescas tarefas da transição e face aos gigantescos empecilhos postos pela contra-revolução e pela força de inércia que o sistema do capital e suas mediações de segunda ordem enraizadas no sociometabolismo interpõem. O próprio caráter “centralizado” desse “Estado que já não é Estado” é questionável, já que a centralização da Comuna assentava em bases radicalmente democráticas, por conta de seus membros serem diretamente eleitos e revogáveis a qualquer momento, etc. Ademais um mínimo de centralização era necessário para coordenar a resistência à contra-revolução que vinha de Versalhes, etc. O que deve ser evitado com atenção redobrada não é toda espécie de centralismo e sim a instituição de um centralismo hierárquico e impositivo, que queira sufocar as iniciativas criativas da classe trabalhadora organizada em outras micro-estruturas regionais, como de fato ocorreu na URSS à época de Stálin e mesmo antes, por exemplo com Makhno. Ora, uma questão subjacente é a da dificuldade inerente à tarefa de instituir uma força popular de defesa militar que não esteja assentada na estrutura hierárquica típica do aparato militar e que seja tão eficaz quanto aquele. A nosso favor temos a coragem revolucionária das massas e o fato de que os exércitos rivais são compostos também por trabalhadores, o que torna a confrontação militar uma disputa não apenas militar mas ideológica.

Segundo, defender que a Comuna não pretendia quebrar com a unidade da nação era taticamente vital, devido à necessidade de apoio material e político dos trabalhadores de outras cidades da “nação” francesa. Quando se trata de defender a Comuna, que mal haveria em valer-se do sentimento nacionalista dos trabalhadores franceses? Manter a bandeira da nação francesa, diferenciando-a do Estado francês, era uma tática, para a estratégia de manter a Comuna viva e expandir sua estrutura radicalmente democrática por toda a França e mundo. Assumir que a Comuna “não tinha nacionalidade” (como de fato toda revolução socialista não tem) seria um tiro no pé.

A Comuna rompeu com a ilusão propagandeada pela burguesia de que a sociedade tornara-se “complexa demais” para poder abdicar da forma representativo-hierárquica de divisão, organização e administração das relações político-sociais. Como bem sintetiza Marx:

Enquanto os órgãos meramente repressivos do velho poder governamental haviam de ser amputados, as suas funções legítimas haviam de ser arrancadas a uma autoridade que usurpava a preeminência sobre a própria sociedade e restituídas aos agentes responsáveis da sociedade. Em vez de decidir, uma vez a cada três ou seis anos, que membro da classe governante havia de representar mal o povo no Parlamento, o sufrágio universal havia de servir o povo, constituído em Comunas, assim como o sufrágio individual serve qualquer outro patrão em busca de operários e administradores para o seu negócio. E é bem sabido que as companhias, como os indivíduos, em matéria de negócio real sabem geralmente como colocar o homem certo no lugar certo e, se alguma vez cometem um erro, como repará-lo prontamente. (MARX, 2008c: 404 – negrito meu)

Ou seja, se não tivesse sido esmagada pelos exércitos da “ordem”, “a Constituição Comunal teria restituído ao corpo social todas as forças até então absorvidas pelo Estado parasita, que se nutre a expensas da sociedade e lhe estorva o livre movimento”. (MARX, 2008c: 405 – grifo meu)

Podemos notar que já a própria descrição que Marx faz da Comuna contém uma série de elementos elucidativos da forma como Marx via, inspirado pela Comuna, a questão da abolição e fenecimento do Estado. Percebemos, por exemplo, como a abolição de determinadas instituições estatais deve se dar de forma concomitante à criação de novas formas de ser capacitadas a cumprir as antigas funções sociais necessárias. Do mesmo modo, até mesmo aquelas instituições puramente repressivas, como é o caso do exército permanente e da polícia, sendo inviável suprimi-las totalmente (e de imediato) devido ao contexto de luta revolucionária em meio a uma Guerra civil e entre nações e, portanto, em meio à existência de forças exteriores nocivas à revolução – que se vê forçada a se defender –, mesmo essas instituições repressivas encontraram seu paralelo comunal na criação de exércitos populares constituídos por membros responsáveis e de mandato de curta duração.

Embora mantendo, sob outras vestes, mesmo aquelas instituições estatais puramente repressivas – que então são apropriadas pelos comunardos parisienses e subvertidas a fim de garantir a própria vitória da revolução – a Comuna fora, segundo Marx, uma revolução contra o Estado. Ou seja:

uma Revolução não contra essa ou aquela forma de poder estatal, seja ela legítima, constitucional, republicana ou imperial. Foi uma revolução contra o Estado mesmo, este aborto sobrenatural da sociedade, uma reassunção, pelo povo e para o povo, de sua própria vida social. Não foi uma revolução feita para transferi-lo de uma fração das classes dominantes para outra, mas para destruir essa horrenda maquinaria da dominação de classe ela mesma. (MARX, 2011: 127)

Ainda no “Primeiro rascunho” do livro Guerra Civil na França Marx afirma e desenvolve a ideia de que o Segundo Império fora “a forma final”, a “última forma possível” da usurpação estatal dos poderes sociais. Há quanto a essa afirmação certa confusão. Alguns afirmam que Marx qualificara o Segundo Império como a última forma histórica de domínio estatal. Essa interpretação incorre no equívoco de que quando Marx qualifica o Segundo Império como a “última forma possível” certos autores ressaltam o substantivo “última” e não dão a devida atenção para o principal da frase, o adjetivo “possível”. A forma imperial era naquele momento histórico a última “carta na manga” da burguesia francesa e alemã, pois seu domínio de classe, que estivera seriamente ameaçado a partir de 1848, só pôde garantir um fôlego a mais interpondo entre as classes principais em luta um poder “aparentemente independente”, o poder estatal imperial. Ou seja: a burguesia francesa, com o Segundo Império, abriu mão de parte de seu poder político direto a fim de salvaguardar seu poderio econômico. [6]

Nesse sentido, Marx prossegue (em relação ao Segundo Império): “a Comuna foi sua direta negação e, assim, o início da Revolução Social no século XIX”. Note que Marx usa o adjetivo “social” e não “política”.

A Comuna – a reabsorção, pela sociedade, pelas próprias massas populares, do poder estatal como suas próprias forças sociais vitais em vez de forças que a controlam e subjugam, constituindo sua própria força em vez da força organizada de sua supressão –, a forma política de sua emancipação social, no lugar da força artificial (apropriada por seus opressores) (sua própria força oposta a elas e organizadas contra elas) da sociedade erguida por seus inimigos para sua opressão. A forma era simples, como o são todas as coisas grandiosas. (MARX, 2011: 129 – negrito meu)

Conforme corretamente sublinha Rafael Silva, em Guerra Civil na França Marx torna muito nítida a antítese entre Estado e Comuna, especialmente quando a forma de governo estatal é o Império. Segundo Silva:

a antítese é clara: o Estado representa a “absorção” ou “usurpação” das forças próprias das massas produtoras por um poder estranho que as subjuga, a separação dos poderes sociais em relação às massas e sua organização como “força oposta a e organizada contra elas” e, por isso, configura-se como a forma política de “sua opressão por seus inimigos”; a Comuna é a “reabsorção” do poder de Estado pelas próprias massas populares, a organização das forças das massas populares como sua própria força, isto é, como um poder que não é separado delas e oposto a elas, mas que, ao contrário, aparece como a expressão direta de sua auto-organização, e, por isso, configura-se como “a forma política da sua emancipação social”. (SILVA, 2007: 48 – negrito meu)

Notas

[1] No original: “zerbrechen”: demolir, despedaçar, quebrar, liquidar, fraturar, destruir.

[2] “O governo da classe trabalhadora é proclamado como uma guerra do trabalho contra os monopolistas dos meios de trabalho, contra o capital” (MARX, 2011: 140)

[3] Segue a sequencia da citação, que é muito elucidativa: “A primeira Revolução Francesa, com sua tarefa de conferir pleno alcance ao livre desenvolvimento da moderna sociedade da classe média, teve de eliminar todos os bastiões locais, territoriais, municipais e provinciais do feudalismo, preparando o solo social para a superestrutura de um poder estatal centralizado, com órgãos onipresentes ramificados segundo o plano de uma divisão do trabalho sistemática e hierárquica”.

[4] Na tradução usada, que preferimos modificar: “com a qual se realiza”. Pensamos que essa versão passa a ideia errônea de que a forma política da Comuna já realiza a emancipação, sendo que não é isso que Marx afirma: a Comuna é apenas um primeiro passo, necessário, rumo à emancipação do trabalho, que para efetivar-se precisa de uma série de outros revolucionamentos orgânicos no sistema sociometabólico. Essa opção aparece na tradução espanhola: “la forma política al fin descubierta para llevar a cabo dentro de ella la emancipación económica del trabajo”.

[5] Também aqui há um problema na versão brasileira, que traduz “milícia popular” por “milícia nacional”, permitindo uma leitura que relacione milícia e governo.

[6] De forma um pouco mais clara no “Segundo Rascunho”: “O Estado burguês moderno toma corpo em dois grandes órgãos, parlamento e governo. Durante o período da República do Partido da Ordem, de 1848 a 1851, a onipotência parlamentar gerou sua própria negação – o segundo Império –, e o imperialismo, com seu parlamento de faz de conta, é o regime que agora floresce em todos os grandes estados militares do continente. A usurpadora ditadura do corpo governamental sobre a própria sociedade, que à primeira vista dá a impressão de elevar-se por sobre todas as classes e humilhá-las, tornou-se na verdade, ao menos no continente europeu, a única forma possível de Estado em que a classe apropriadora pode continuar a dominar a classe produtora”. (MARX, 2011: 169). E mais à frente: “O Império, afirmando apoiar-se sobre a maioria produtora da nação – os camponeses, situados aparentemente fora do espectro da luta de classe entre capital e trabalho (indiferentes e hostis a ambos os poderes sociais em conflito) –, dirigindo o poder de Estado como uma força superior às classes dominantes e dominadas, impondo a ambas as classes um armistício (silenciando a forma política e, portanto, revolucionária da luta de classe), despindo o poder estatal de sua forma direta de despotismo de classe ao frear o poder parlamentar e, portanto, o poder político direto das classes apropriadoras, esse Império era a única forma possível de Estado capaz de garantir alguma sobrevida à velha ordem social”. (ibid: 171).

Referências

AGUIAR, J. V. (2003d). Marx e a nação. Um abraço pela frente e uma facada por trás – IV. A Comuna de Paris: um Estado por cima dos operários? Disponível em: http://passapalavra.info/2013/10/86842
MARX, K. (s/d). Crítica ao Programa de Gotha. In: Marx & Engels, Obras escolhidas, vol.2. SP: Alfa-Ômega.
____. (s/d-b) Carta de Marx a L. Kugelmann, de 12 de abril de 1871. In: Marx & Engels, Obras escolhidas, vol.2. SP: Alfa-Ômega.
____. (2008c). A guerra civil na França. In: A Revolução antes da revolução. SP: Expressão Popular.
____. (2011). A guerra civil na França. SP: Boitempo.
SILVA, R. (2007). Dilemas da transição: um estudo crítico da obra de Lênin de 1917-1923. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Unicamp-SP.

Esta série inclui os seguintes artigos:

1) superação do Estado, o problema
2) Engels e a posse dos meios de produção previamente centralizados no Estado
3) a ditadura do proletariado como “Estado” transicional
4) o grande segredo da Comuna de Paris
5) socialismo passo a passo
6) Marx, a negatividade da política e o aspecto multidimensional e de longo prazo da transição
7) os limites do legado político de Marx
8) superar o Estado, só pela autogestão

6 COMENTÁRIOS

  1. Caro Pablo Polese,
    A Comuna de Paris não é uma ficção, que exista somente pela pena de Marx. Já era tempo de os marxistas — e não me refiro só a você — estudarem a história da Comuna e, em vez de analisarem a Comuna à luz do que Marx escreveu, fazerem o contrário e avaliarem aquelas páginas de Marx à luz dos factos ocorridos em França desde Março até Maio de 1871. Em vários lugares, incluindo num artigo publicado no Passa Palavra http://passapalavra.info/2011/05/39835 , procurei chamar a atenção para esse confronto. Limito-me agora a sublinhar que Marx situou a sua análise da Comuna numa perspectiva nacionalista antes de mais porque se tratava de uma das peças da sua monomania geopolítica — o antieslavismo. Marx, que nos primeiros momentos se interessara pouco pela Associação Internacional dos Trabalhadores, procurou depois concentrá-la na questão polaca (ou polonesa, como se diz no Brasil), transformando-a num instrumento oposto ao pan-eslavismo. Contra esta tentativa de atrelar a Internacional a uma estratégia nacionalista e geopolítica protestou a secção belga, e também a secção francesa a partir do momento em que a encabeçaram Varlin e os seus amigos. Tudo isto está amplamente estudado pelos historiadores.
    Por fim, você escreve que abster-se de usar o «sentimento nacionalista» para defender a Comuna «seria um tiro no pé». Infelizmente, porém, dar um tiro no pé, ou mesmo na cabeça, foi a pretensão de juntar a revolução social ao nacionalismo. É a esta luz que deve ser avaliada a obra e a política daquele que, se não estivesse preso em lugar secreto, seria o chefe natural da Comuna, Blanqui. A Comuna de Paris é um mito aceite unanimemente por toda a esquerda porque durou pouco e não teve tempo para revelar na prática os efeitos das suas tendências contraditórias. Mas duas décadas depois da Comuna o boulangismo foi a primeira expressão sistemática da conjugação do nacionalismo com as pretensões socializantes. E hoje, após tudo o que se passou entre as duas guerras mundiais, temos razão para saber que quando o nacionalismo se funde com o movimento dos trabalhadores, o fascismo não anda longe. Ora, para isto contribuiu poderosamente o funesto namoro dos comunistas aos nacionalistas. Nas três décadas posteriores à segunda guerra mundial a destruição do movimento dos trabalhadores pelo nacionalismo pode ser estudada também nos movimentos de descolonização. Uma revolução social que pretenda mobilizar o sentimento nacionalista condena-se ou ao fracasso ou a converter-se numa contra-revolução.

  2. Caro Pablo,

    sobre o que você chama de esquizofrenia por o Marx integrar na sua obra uma crítica da economia política e um vector nacionalista.

    Se se considerar, como praticamente todos os marxistas o fazem, que a produção teórica reflecte sempre, num determinado grau, o estado das lutas sociais, então é perfeitamente possível contemplar a fusão ambígua de temas operários e dos gestores na produção teórica do movimento operário. Isso foi o que se passou na maioria das lutas operárias do século XIX e que deram formação política fundamental ao Marx. O caso polaco que o João Bernardo lembra, ou o caso irlandês, são elucidativos quanto à importância que o Marx lhes deu. De lembrar que a derrota dos processos revolucionários de 1848 teve um papel decisivo no desdobramento do vector nacionalista já presente no “Manifesto Comunista” e que eu tive a oportunidade de analisar.

    Ora, o que se passou em 1848?

    Em primeiro lugar, o caso mais radical (o do operariado parisiense) redundou num banho de sangue mas também na incapacidade na criação de organizações políticas operárias que pudessem disputar as lutas políticas a Bonaparte. Mesmo o partido republicano da Montanha, que foi apoiado por vários sectores operários sobreviventes, não conseguiu desenvolver uma dimensão autónoma da política do proletariado de então.
    Em segundo lugar, o caso alemão onde na Nova Gazeta Renana e noutras publicações Marx e Engels criticam a burguesia germânica por não ter conseguido fazer uma revolução do tipo de 1789. A análise do caso alemão é tão ou mais importante do que a do caso francês no pensamento do Marx. Isto porque é deste tipo de experiências que o Marx tira a conclusão de que a vitória política definitiva do capitalismo não passa mais pela burguesia proprietária mas do operariado que terá de concluir as tarefas burguesas. Ora, estas tarefas burguesas não são apenas o de conquistar a democracia política mas isso pressupõe uma revolução fundamentalmente orientada para a reconversão (democrática) do aparelho de Estado. É então a partir daqui que o Marx passa a dedicar imensos esforços aos casos polaco e irlandês como exemplos da inserção da luta do operariado pela independência nacional. O que é o mesmo que dizer, orientar o operariado para a construção de um novo Estado nacional, o que necessariamente implica uma dominação de classe e a constituição de uma camada dirigente minoritária que tomará conta dos destinos do novo Estado.

    Por outro lado, ainda sobre a tal esquizofrenia como você lhe chama há a destacar outro ponto. A crítica da economia política de Marx não é um terreno puro e que se contrapõe totalmente à sua teoria política do Estado. Como você pode visualizar no quinto artigo da série “Marx e a nação”, existe a presença de uma posição favorável do Marx à coexistência de gestores e trabalhadores num mesmo plano político. Os dois capítulos do Terceiro Livro de “O Capital” que menciono nesse artigo demonstram isso mesmo: a criação de um campo político entre operários e gestores, tomando estes últimos como parte da classe trabalhadora, (con)fundindo totalmente técnicos assalariados e administradores das empresas. É óbvio que existem imensos casos de sobreposição entre o perfil técnico e de gestão de uma empresa. Mas essa sobreposição não se confunde com a distinção de funções entre o desempenho da produção de mercadorias (onde os trabalhadores mais qualificados são precisamente técnicos, sem poder de controlo sobre a força de trabalho) e o desempenho de tarefas de direcção do processo produtivo. E neste plano existem passagens do Marx que são abertamente favoráveis a uma inserção dos gestores no seio da classe trabalhadora, abrindo um precedente notável do que viria a ser a defesa do Lénine a propósito da cedência do controlo da produção aos especialistas, dentro do qual a política do gestor único de empresa nomeado pelo Partido Bolchevique (pelo Estado) seria o desdobramento prático de algo que o Marx tinha entrevisto, no terceiro livro de “O Capital”, como uma forma de construção do socialismo algumas décadas antes.

    E eu abordo aqui unicamente as questões mais directamente relacionadas com os gestores. Se a isto se integrasse na análise as concepções do Marx sobre o crédito e os mercados financeiros ainda mais vincadas ficariam as contradições inerentes à própria crítica da economia política marxiana.

  3. Caro João Bernardo,
    Creio que tivemos um problema de comunicação aqui, e certamente a culpa foi minha, já que escrevi o texto. Veja, esse terceiro artigo não trata da Comuna, e sim da interpretação de Marx da Comuna. Já li alguns historiadores falando da Comuna, inclusive o Lissagaray e o Jaques Rougerie, mas nesse artigo não faria sentido eu usar ou citar qualquer dos trabalhos que li porque mais importante do que o que a Comuna foi de fato, é o que Marx “pensava” que ela fora. Isso porque o propósito desse terceiro artigo da série é, por um lado, diferenciar a abordagem de Marx da abordagem de Engels (segundo artigo da série) a fim de comprovar que Marx não vislumbrava o Estado sequer como órgão capaz (ou encarregado) de centralizar as forças produtivas para tornar viável a transição. Pretendi mostrar que a Comuna, na interpretação de Marx, era o oposto a qualquer Estado, e era, simultaneamente, o órgão político da transição, ou seja, a concepção de Marx da transição não trabalha com qualquer tipo de atribuição a um Estado, seja ou não um Estado em mãos da classe trabalhadora. A intenção é mostrar que não há qualquer resquício de Estatismo na abordagem de Marx, ao menos em seus escritos sobre a Comuna. Já quanto a algum resquício de Nacionalismo nessa abordagem, de fato reconheci que existem, mas procurei colocá-los como decorrentes da tática e não da estratégia de Marx. Ora, apelar ao nacionalismo como tática, a fim de evitar o tiro no pé do isolamento político e municipal (Paris), era condenar-se, do ponto de vista da estratégia, a um tiro na cabeça? Hoje podemos dizer que sim. Na época poderíamos dizer o mesmo? Ou seja, podemos condenar Marx por tal posicionamento político? Pode até ser que sim, e eu mesmo diria que sim. Mas a meu ver o que não podemos fazer é extrapolar esses apelos marxianos à nação (e Marx contrapunha nação a Estado) feitos no contexto da ofensiva contra-revolucionária de Versalhes, Alemanha, Inglaterra, etc., e apontar tais apelos como se indicassem que Marx era adepto do nacionalismo como base para uma transição socialista. Por isso falei em esquizofrenia, pois frente ao todo da obra de Marx, defender a via nacionalista não seria apenas uma oscilação dentro de uma suposta tensão entre nacionalismo e internacionalismo em sua obra, e sim uma total incongruência e uma total negação de toda sua abordagem crítica da economia política. Mas tudo isso perde importância na medida em que estamos apenas a discutir o que é ou não de Marx. Pois no essencial e mais importante concordamos totalmente João: seja no século XIX ou XXI, a pretensão de juntar a revolução social ao nacionalismo é um tiro na cabeça da transição. O problema é que constatar isso não resolve o problema, pois nada menos que 4 Internacionais foram criadas visando contrarrestar a tendência política ao nacionalismo nas fileiras da classe trabalhadora organizada. E parece-me que o problema é estrutural, já que o capital inevitavelmente opera numa base geográfica dada, com limites territoriais legalmente estabelecidos de forma “estatal”, “regional” e “nacional” (com diferenças culturais, etc e de salário mínimo nacional, por exemplo). E como esse capital geograficamente atuante sabe explorar essas diferenças e aprofunda-as ao desenvolver as geografias de modo desigual, colocando os trabalhadores como inimigos que competem entre si na venda de sua força de trabalho, a solidariedade internacional segue sendo um grande problema a enfrentarmos se quisermos levar a cabo a transição socialista. O poder das ideologias nacionalistas, xenófobas, etc., cresce na contramão da nosso sucesso ou fracasso em fomentar a solidariedade trabalhadora internacional. Falhando nesse fomento, inevitavelmente veremos tentativas de transição apelando para tais sentimentos nacionalistas com vistas a sobreviver à contra-revolução de fora. O pior é que apelar a tais sentimentos já é a contra-revolução atuando por dentro.

    p.s: outro exemplo que pensei, além dos que você citou, e que talvez nos coloque a pensar em outros termos, é o exemplo do apelo ao nacionalismo soviético feito por Stálin com vistas ao exército vermelho resistir à ofensiva nazista. Esqueçamos que se tratava de Stálin e tudo que o stalinismo implica. Supondo que fosse um regime realmente voltado à transição socialista, em apuros por uma contra-revolução nazista. O sentimento nacionalista não deveria ter sido chamado?

  4. Caro João Valente,
    Me parece que o senhor conhece alguns aspectos da obra de Marx que desconheço. As vezes que li Marx falando algo próximo a essa “reconversão (democrática) do aparelho de Estado” a que o senhor se refere, sempre foram no contexto de melhorar as condições de luta da classe trabalhadora em âmbito nacional, e nunca como um fim em si. Em tudo que li de Marx o Estado, tal como o capital, aparecem sempre como irreformáveis, sendo o aparato estatal inerentemente adequado, por sua própria forma, ao sistema do capital, e inadequado para as tarefas da transição socialista. Nas glosas de Marx ao texto “Estatismo e anarquia” de Bakunin Marx chega a dizer que o órgão de repressão e exploração nunca poderá ser o órgão da superação, mas diz que antes da superação do capital se completar a classe trabalhadora “emprega meios de libertação que deixarão de existir depois da libertação”, numa clara referência a alguns dos órgãos do aparato estatal, que é visto então como um meio político dotado de alguns órgãos políticos particulares que em mãos dos trabalhadores passariam a ter algumas tarefas a cumprir na transição, como por exemplo a defesa armada face à contra-revolução, etc. Entretanto tanto essas Glosas de 1874 ao texto de Bakunin quanto o texto Crítica ao Programa de Gotha de 1875 foram redigidos como uma defesa de Marx, por um lado, às acusações de estatista que Bakunin lhe havia feito, por outro lado, ao caráter estatista do Programa de Gotha, que Marx trata de criticar.

    Sobre sua dedução de que o trato de Marx sobre a questão polaca e irlandesa seria o mesmo que “dizer, orientar o operariado para a construção de um novo Estado nacional, o que necessariamente implica uma dominação de classe e a constituição de uma camada dirigente minoritária que tomará conta dos destinos do novo Estado”. Não posso dizer muito. Concordo que a construção de um novo Estado nacional implicaria isso que o senhor diz, entretanto desconheço os textos de Marx sobre a questão polaca e irlandesa, portanto não posso dizer se concordo com sua dedução. Em todo caso, a defesa de Marx de um novo Estado nacional como meio para a transição socialista me soaria surpreendente vindo de Marx em qualquer data, e eu arriscaria dizer que depois da “forma politica finalmente encontrada” de 1871 não há em seus escritos nenhum resquício de tal política nacionalista.
    Sobre a questão dos gestores, acho sua pesquisa e a do JB muito interessantes e só tenho a aprender. Sua pista de que a abordagem de Marx abrira um precedente à prática de Lenin me parece interessantíssima.

  5. Caros,

    Muito bom o texto, Pablo Polese! Mas tenho uma dúvida.

    Parece me que no interior do pensamento de Marx a uma inflexão após o evento da Comuna – pelo que comentou. Em linhas gerais pode-se dizer que:

    “Manifesto do Partido Comunista”:
    *O movimento é de centralizacäo, de agigantamento do poder estatal, o que coincide com algumas citações de Engels (nos seus textos anteriores).
    *O Estado como agente da ditadura do proletariado, ou seja, ao tomar a máquina estatal o proletariado utiliza-se dela para expropriar (estatizar) a propriedade capitalista, e , consequentemente ampliando as funções do estado, sua máquina burocrática e seu aparelho repressor.

    Já na “Guerra Civil na Franca”:
    *o movimento é inverso, de descentralizacäo e reducäo da máquina estatal às funções essenciais (a administracäo do “direito burguês”, etc).
    * Aqui a perspectiva é a de tomar o Estado e desmontá-lo o máximo possível, transferindo as funções estatais aos conselhos

    Essa difença é substancial ou apenas nominal? Pelo seu texto para substancial… Mas, no final das contas, na efetividade do processo histórico acaba sendo “o proletariado organizado”.

    Raymond Aron, contrapondo as visões de Marx, Engels e Lenin, argumenta que Marx oscila entre a visão comunal e a jacobina, e que este é o ponto nevrálgico de controvérsias entre os marxistas conselhistas e os bolchevistas.

    E embora tenha respondido a questão do João Bernardo, ainda reitero o comentário – as vezes, colocam Marx como um “liberal radical anarquizante”, contextualizar o momento histórico da comuna, e os debates e táticas dos grupos que constituiriam a Internacional parece contribuir para precisar melhor o pensamento desses indivíduos – resolução metodológica arquitetada pelo próprio Marx.

    Por hora, se já esclareceu a questão em outros textos desconsidera-a, por gentileza.

    Grata.

  6. Prezada Louise Rafaeli,

    Sua pergunta toca no centro do debate que estou propondo.

    Concordo que haja uma inflexão no interior do pensamento de Marx, entretanto minha interpretação é a de que não há uma ruptura e sim um aprofundamento pós-1871 da visão anti-estatal ou, como vc chamou, conselhista. Defendo que Marx manteve, de 1843 (“Questão Judaica”, “Introdução à crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, “Glosas marginais ao artigo o rei da Prússia e a reforma social”) até sua morte, uma visão “negativa da política”, onde o Estado e demais órgãos políticos aparecem como incapazes de operar os revolucionamentos orgânicos (no chão econômico) no sociometabolismo controlado pelo capital. Decretos políticos e demais subterfúgios da esfera política aparecem então como capazes apenas de destruir e negar os fundamentos formais do domínio de classe da burguesia (propriedade privada, por exemplo), mas não são capazes de operar os aspectos construtivos, positivos, a superação dos fundamentos reais do controle capitalista (as mediações de segunda ordem), ou seja, justamente por serem políticos, operam ainda dentro da esfera da política, da negação, da classe contra classe, e são por isso incapazes de levar a cabo todas as tarefas da transição. A política só tem tarefas a cumprir enquanto a classe burguesa ainda precisar ser esmagada e expelida do sociometabolismo, ou seja, tem tarefas apenas enquanto houver luta de classes, mas como o objetivo da transição é ir para além do capital e das mediações alienadas de segunda ordem, e não para além apenas do Capitalismo e dos capitalistas (isso até a URSS conseguiu, sem com isso superar o capital), então a forma política de luta contra o capital aparece como limitada, como incapaz de levar a transição até onde ela precisa ir para completar a superação do capital. A política é incapaz de criar os órgãos sociometabólicos capazes de se pôr como órgãos de poder popular alternativos ao controle capitalista da produção e reprodução da vida social. A política aparece, portanto, como necessária apenas nas primeiras fases da transição, e o próprio objetivo estratégico de longo prazo impõe que a transição não se centre em órgãos políticos sequer nesse começo, pois o próprio caráter político desses órgãos os torna viciados na forma política de luta política, ou seja, na forma classe contra classe (enquanto a luta comunista significa fim das classes e não substituição do controle de uma classe, a burguesia, por outra, os trabalhadores). Se a política, e em especial, a forma-Estado, tem esse vício embutido na própria forma, então não há de se defender um Estado transicional dos trabalhadores, e sim órgãos não estatais, de poder popular, órgãos de controle sociometabólico capazes de substituir os aparatos de controle capitalista, ou seja, capazes de operar a reapropriação dos poderes socioprodutivos do trabalho, historicamente usurpados pelo capital, nas subsunções formal e real do trabalho ao capital. Por isso, defendo que Marx nunca vislumbrou o Estado (qualquer Estado, mesmo o “proletário”) como órgão da transição, mas me parece que antes da “forma política finalmente descoberta” da Comuna, ele tinha muito cuidado em apontar o caráter dos órgãos de transição. Ele tinha receios, não sabia muito bem como tratar o tema. Acho que isso se deve a que as experiências de 1848 não haviam sido capazes de apontar um caminho possível, uma mediação política possível. A Comuna de Paris foi capaz de mostrar esse caminho possível, dando novo fôlego à teoria da transição. Por essas e outras, pra mim Marx sempre foi um conselhista, e jamais defendeu formas centralizadas e Estatais de transição socialista. Como o pensamento dele estava sujeito às contradições do real, há momentos em que ele acaba saindo desse roteiro norteador, defendendo visões que se aproximam em algum grau de centralismo e até de nacionalismo (como João Valente e João Bernardo têm se esforçado em mostrar, há ambiguidades e contradições internas ao pensamento de Marx), entretanto, pra mim, essas raras exceções são muitas vezes decorrentes de manobras políticas do contexto, e só confirmam a regra anti-estatal, internacionalista e conselhista da teoria da transição em Marx.

    Outra questão latente nessa minha forma de interpretar, é a dos órgãos de luta. Me parece que tal como a forma-Estado tem embutido em si mesma os vícios do capital (hierarquia, etc), do mesmo modo os órgãos clássicos de luta política tem esses vícios embutidos: Partido e Sindicato. A meu ver esses órgãos tem muitas funções na transição, especialmente o Partido, mas a própria estrutura do Partido leva à busca pelo poder e pela manutenção de hierarquias, portanto a autocrítica permanente/democracia substantiva e a revolução permanente, dois valores básicos da transição socialista, não podem ser garantidos pela forma de luta via Partido. Temos aqui um abacaxi gigantesco, pois tal como a política, os órgãos de luta política são simultaneamente necessários (às primeiras fases da transição socialista) e necessariamente devem ser suprimidos por órgãos de poder popular não estatais, não-partidários.

    Tudo isso é apenas minha interpretação, que torno pública a fim de que discutamos seus pontos principais, que me parecem essenciais pra nós, que lutamos pela superação do capital.

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