A detonação não é apenas destrutiva para os indivíduos envolvidos, mas serve como uma ferramenta muito poderosa de controle social. Por Jo Freeman(*)

Este artigo foi escrito para a revista Ms. e publicado na edição de Abril de 1976, páginas 49-51 e 92-98. Ele atraiu mais cartas de leitoras que qualquer outro artigo anteriormente publicado na Ms., quase todas relatando suas próprias experiências de trashing [1]. Alguns desses relatos foram publicados num número posterior da Ms.

Faz muito tempo que me detonaram. Eu fui uma das primeiras no país, talvez a primeira em Chicago, a ter minha reputação, meu comprometimento e o meu próprio eu atacados pelo Movimento de mulheres de um jeito que me deixou em pedaços, incapaz de agir. Levei anos para me recuperar, e mesmo hoje as feridas não cicatrizaram inteiramente. Assim, circulo às margens do Movimento, nutrindo-me dele porque preciso, mas muito amedrontada para mergulhar uma vez mais no seu interior. Não sei nem mesmo do que tenho medo. Continuo dizendo a mim mesma que não há razão para que isso aconteça novamente – se eu for cautelosa – enquanto lá no fundo há um certeza penetrante, irracional, que diz que, se eu der minha cara a tapa, serei uma vez mais um para-raios de hostilidade. Por anos tenho escrito essa lengalenga na minha cabeça, normalmente como um discurso para uma variedade de plateias imaginárias do Movimento. Mas nunca pensei em me expressar publicamente sobre o assunto porque tenho sido uma adepta convicta de não lavar roupa suja do Movimento em público. Estou começando a mudar de ideia.

Em primeiro lugar, tanta roupa suja está sendo exposta publicamente que duvido que o que tenha para revelar junte muita coisa à pilha. Para aquelas que têm sido ativas no Movimento, não é sequer uma revelação. Segundo, por anos tenho observado com crescente pesar o Movimento conscientemente destruir qualquer uma em seu interior que se destaque de alguma forma. Por muitos anos, esperei que essa tendência autodestrutiva definhasse com o tempo e a experiência. Assim, eu simpatizava, apoiava, mas não falava sobre as muitas mulheres cujos talentos foram perdidos para o Movimento porque suas tentativas de usá-los foram recebidas com hostilidade. Conversas com amigas em Boston, Los Angeles e Berkeley que tiveram sua reputação atacada em 1975 convenceram-me de que o Movimento não aprendeu a partir de sua experiência irrefletida. Em vez disso, o assassinato de reputação alcançou proporções epidêmicas. Talvez tirá-lo do armário deixe o ar mais fresco.

O que é “detonação“, essa expressão coloquial que diz tanto, mas explica tão pouco? Não é desacordo; não é conflito; não é oposição. Esses são fenômenos perfeitamente comuns que, quando mutuamente entrelaçados, honesta e não excessivamente, são necessários para manter um organismo ou uma organização saudável e ativa. A detonação é uma forma particularmente cruel de assassinato de reputação que equivale a um estupro psicológico. É manipulador, desonesto e excessivo. É ocasionalmente disfarçado pela retórica do conflito honesto ou acobertado pela negação de que exista qualquer reprovação. Mas ele não é feito para expôr desacordos ou resolver diferenças. É feito para desacreditar e destruir.

Os meios variam. A detonação pode ser feita de forma privada ou num ambiente de grupo; na cara ou pelas costas; através de ostracismo ou por meio de denúncia aberta. A detonadora pode dar-lhe informações falsas sobre o que as outras pensam de você (coisas horríveis); pode contar a suas amigas falsas histórias do que você acha delas; pode interpretar o que quer que você diga ou faça da maneira mais negativa; pode projetar expectativas irreais sobre você de modo que, quando não conseguir atingir essas expectativas, você se transforma num alvo “legítimo” para a raiva; pode negar suas percepções da realidade; ou pode fingir que você absolutamente não existe. A queimação de filme pode até ocorrer de forma velada por meio das novas técnicas grupais de crítica/autocrítica, mediação e terapia. Qualquer que seja o método utilizado, a detonação envolve violação de integridade, declaração de inutilidade e contestação da motivação da própria pessoa. Com efeito, o que é atacado não são ações ou ideias, mas o próprio indivíduo.

Esse ataque é executado fazendo com que você sinta que a sua mera existência é prejudicial ao Movimento e que não há nada que se possa fazer para mudá-lo. Esses sentimentos são reforçados quando você fica isolada das suas amigas, enquanto elas se convencem de que a associação com você é também prejudicial para o Movimento e para elas mesmas. Qualquer apoio a você irá manchá-las. Eventualmente, todas as suas colegas se juntarão num coro acusatório que não pode ser silenciado, e você se verá reduzida a uma mera paródia de quem outrora havia sido.

Três ataques à minha reputação foram necessários para me fazer desistir. Finalmente, no final de 1969, senti-me psicologicamente mutilada ao ponto de saber que não conseguiria continuar. Até então eu interpretava que minhas experiências decorriam de conflitos de personalidade ou de divergências políticas que eu poderia corrigir com tempo e esforço. Mas quanto mais eu tentava, pior as coisas ficavam, até que finalmente fui forçada a encarar a incompreensível realidade de que o problema não era o que eu fazia, mas o que eu era.

Isso era tão sutilmente comunicado que eu nunca encontrava alguém para falar a respeito. Não houve grandes confrontos, mas várias pequenas afrontas. Individualmente consideradas, cada uma dessas afrontas era insignificante; mas, se tomadas em conjunto, eram como mil chicotadas. Eu era gradualmente ostracizada: se um artigo coletivo era escrito, minhas tentativas de contribuir eram ignoradas; se eu escrevesse um artigo, ninguém o leria; quando eu falava em reuniões, todo mundo escutava educadamente e, então, prosseguia com a discussão como se eu não tivesse dito coisa alguma; as datas de reuniões eram alteradas sem que me avisassem; quando era minha vez de coordenar um projeto de trabalho, ninguém ajudava; quando não recebi as correspondências e descobri que meu nome não estava no catálogo de endereços, disseram-me que eu havia olhado no lugar errado. Meu grupo uma vez decidiu fazer uma campanha de arrecadação de dinheiro para enviar pessoas para uma conferência; quando eu disse que queria ir, decidiram que todo mundo iria por conta própria (para ser justa, uma colega posteriormente me ligou para contribuir com $5 para a minha passagem, sob a condição de que eu não contasse a ninguém. Ela foi detonada poucos anos depois).

Minha resposta a isso foi a perplexidade. Senti-me como se estivesse vagando com os olhos vendados num campo cheio de objetos cortantes e buracos profundos enquanto me tranquilizavam, dizendo que podia ver perfeitamente e estava em um campo de grama macia. Era como se eu houvesse entrado involuntariamente numa sociedade nova, operada por regras que eu não conhecia, nem poderia conhecer. Quando tentei fazer com que meu(s) grupo(s) discutissem a respeito daquilo que eu pensava estar acontecendo comigo, eles tanto negaram a minha percepção de realidade, dizendo que nada estava fora do comum, quanto classificaram os incidentes como triviais (individualmente eles eram). Uma mulher, em conversas telefônicas privadas, admitiu que eu estava sendo maltratada. Mas ela nunca me apoiou publicamente e, honestamente, admitiu que era porque temia perder a aprovação do grupo. Também fizeram a caveira dela em outro grupo.

Mês após mês, a mensagem era martelada: Caia fora! O Movimento estava dizendo: Saia! Saia! Um dia me encontrei confessando para minha colega de quarto que achava que eu não existia; que eu era uma invenção da minha própria imaginação. Foi quando eu soube que era hora de sair. Minha saída foi muito tranquila. Contei a duas pessoas e parei de ir ao Centro de Mulheres. A reação das pessoas me convenceu que eu tinha entendido a mensagem corretamente. Ninguém ligou, ninguém mandou nenhuma carta, nem sequer boatos circularam. Metade da minha vida havia sido anulada e ninguém o havia percebido exceto eu mesma. Três meses depois, chegou-me a informação de que eu havia sido denunciada pela União de Libertação das Mulheres de Chicago, fundada depois de eu ser expulsa do Movimento, por permitir-me ter sido citada numa notícia recente sem sua permissão. Isso foi tudo.

O pior disso era que eu realmente não sabia por que eu estava tão profundamente afetada. Sobrevivi à minha criação num subúrbio muito conservador, conformista e machista, onde meu direito à minha própria identidade estava constantemente sob ataque. A necessidade de defender meu direito de ser eu mesma me fez mais dura, não esfrangalhada. Os meus calos foram fortalecidos futuramente pelas minhas experiências em outras organizações políticas e movimentos, onde eu aprendi o uso da retórica e do argumento como armas numa luta política, e como identificar conflitos pessoais mascarados como políticos. Tais conflitos eram geralmente articulados de forma impessoal, como ataques às ideias de alguém; embora talvez não fossem produtivos, eles não eram destrutivos como aqueles que vi mais tarde no movimento feminista. Pode-se repensar as próprias ideias como um resultado de elas serem atacadas. É muito mais difícil repensar a própria personalidade. O assassinato de reputações era usado ocasionalmente, mas não era considerado legítimo, e era, portanto, limitado tanto na extensão como na efetividade. Como as ações das pessoas contam mais que suas personalidades, tais ataques não resultavam tão facilmente no isolamento. Quando eram aplicados, só raramente irritavam.

Mas o movimento feminista conseguiu me afetar. Pela primeira vez na minha vida, me encontrei acreditando em todas as coisas horríveis que falavam sobre mim. Quando fui tratada feito merda, interpretei este tratamento como se quisesse dizer que eu fosse, pessoalmente, uma merda. Minha reação a este tratamento me deixava ainda mais insegura à medida em que a comparava com a minha própria experiência de vida. Tendo sobrevivido até certo ponto ilesa à minha criação, por que deveria sucumbir agora? A resposta demorou anos para chegar. É uma resposta pessoalmente dolorida, pois admito uma vulnerabilidade da qual pensei que houvesse escapado. Sobrevivi à minha juventude porque nunca tinha dado a ninguém ou a nenhum grupo o direito de me julgar. Esse direito, reservei-o a mim mesma. Mas o Movimento me seduziu com sua doce promessa de sororidade. Prometia prover um paraíso contra a devastação de uma sociedade sexista; um lugar onde uma mulher seria compreendida. Era a minha própria necessidade do feminismo e das feministas que me fez vulnerável. Concedi ao Movimento o direito de me julgar porque confiei nele. E quando me julgaram inútil, aceitei o julgamento.

Por pelo menos seis meses, vivi num tipo de desespero paralisante, internalizando completamente o meu fracasso como uma questão pessoal. Em junho de 1970, encontrei-me em Nova Iorque, coincidentemente, com outras feministas de quatro diferentes cidades. Nós nos reunimos numa noite para uma discussão geral sobre o estado do Movimento, mas, ao invés disso, discutimos sobre o que aconteceu conosco. Tínhamos duas coisas em comum: todas tínhamos ampla reputação no Movimento e todas tivemos nossa reputação assassinada. Anselma Dell’Olio leu para nós uma fala sobre “Divisionismo e autodestruição no Movimento das Mulheres”, que ela havia feito recentemente no Congresso para a União das Mulheres como resultado da queimação de filme que ela própria sofreu.

“Eu aprendi… há anos que mulheres estiveram divididas, uma contras as outras, autodestrutivas e cheias de raiva impotente. Pensei que o Movimento poderia mudar isso. Nunca sonhei que veria o dia em que este ódio, mascarado como pseudo-igualitarismo radical, seria usado dentro do Movimento para derrubar irmãs que se destacassem.

“Eu estou me referindo… aos ataques pessoais, tanto os evidentes quanto os insidiosos, aos quais foram submetidas as mulheres no Movimento que lidaram muito dificilmente com qualquer grau de realização, conquista ou feito. Esses ataques tomam diferentes formas. A mais comum e persuasiva é o assassinato de reputação: a tentativa de minar e destruir a crença na integridade do indivíduo sob ataque. Outra forma é o “expurgo”. A última tática é de isolá-la…

“E o que elas atacam? Geralmente duas categorias… Sucesso ou realização de qualquer tipo parecem ser os piores crimes: …faça qualquer coisa…. que outras mulheres acreditem em seu íntimo que também poderiam ter feito – e… você vira alvo. Se, então… você for assertiva, se tiver o que geralmente é descrito como uma ‘personalidade forte’, se… você não se encaixar no estereótipo convencional de uma mulher “feminina”,… está tudo acabado.

“Se você está na primeira categoria (uma empreendedora), você é imediatamente rotulada como uma oportunista em busca de emoção, uma mercenária cruel, que está lá para fazer fama e dinheiro sobre os corpos mortos das irmãs altruístas que tiveram suas habilidades enterradas e sacrificaram suas ambições para a maior glória do Feminismo. Produtividade parece ser o maior crime – mas se você tiver o azar de ser franca e articulada, você também será acusada de ser louca por poder, elitista, fascista e finalmente o pior epíteto de todos: se identifica com os homens. Aaaarrrrggg!”

Ao ouvi-la, um grande sentimento de alívio tomou conta de mim. Era minha experiência que ela estava descrevendo. Se eu era louca, não era mais a única. Nossa conversa continuou até tarde naquela noite. Quando saímos, nós sarcasticamente nos apelidamos de “refugiadas feministas” e concordamos em nos encontrar de novo. Nunca o fizemos. Ao invés disso, cada uma voltou para seu próprio isolamento e lidou com o problema apenas no nível pessoal. O resultado foi que a maioria das mulheres daquela reunião saíram do Movimento, assim como eu fiz. Duas terminaram no hospital por colapsos nervosos. Embora todas tenham continuado a ser feministas dedicadas, nenhuma tem realmente contribuído com seus talentos para o Movimento como elas poderiam ter feito. Embora nós nunca tenhamos nos encontrado novamente, nossas fileiras cresciam à medida em que a doença da autodestruição lentamente engolia o Movimento.

Ao longo dos anos, conversei com muitas mulheres que tiveram suas reputações assassinadas. Como um câncer, os ataques se espalhavam, desde as que tinham reputações até as que eram tão-somente fortes; desde as que eram ativas até as que meramente tinham ideias; desde as que se destacavam como indivíduos até aquelas que falhavam em se adequar rápido o suficiente com as voltas e reviravoltas da mudança de linha. A cada nova história, minha convicção de que a detonação não era um problema individual, causado por ações individuais, crescia; não era um resultado de conflitos políticos entre pessoas com ideias diferentes, era uma doença social.

Essa doença tem sido ignorada há tanto porque é frequentemente mascarada sob a retórica da sororidade. Em meu próprio caso, a ética da sororidade impediu o reconhecimento do meu ostracismo. Os novos valores do Movimento diziam que toda mulher era uma irmã, toda mulher era aceitável. Eu claramente não era. Ainda que ninguém pudesse admitir que eu não era aceitável sem admitir que elas não estavam sendo irmãs. Era mais fácil negar a realidade da minha inaceitabilidade. Junto com outras detonações, a sororidade tem sido usada como faca, ao invés de bainha. Um vago padrão do comportamento fraternal é estabelecido por juízas anônimas que condenam aquelas que não cumprem esses padrões. Enquanto o padrão for vago e utópico, ele não pode nunca ser atingido. Mas pode ser deslocado de acordo com as circunstâncias para excluir as irmãs indesejadas. Assim a memorável máxima de Ti-Grace Atkinson, de que a “sororidade é poderosa: ela assassina irmãs”, é reafirmada repetidas vezes.

A detonação não é apenas destrutiva para os indivíduos envolvidos, mas serve como uma ferramenta muito poderosa de controle social. As qualidades e estilos que são atacados tornam-se exemplos para outras mulheres aprenderem a não seguir – do contrário, o mesmo destino cairá sobre elas. Isso não é uma característica peculiar do Movimento das Mulheres, ou mesmo das mulheres. O uso de pressões sociais para induzir adequações e intolerância é endêmico na sociedade americana. A questão relevante não é por que o Movimento exerce fortes pressões para a adequação a um rígido padrão, mas qual é esse padrão ao qual as mulheres são pressionadas a se adequarem.

Esse padrão é travestido pela retórica da revolução e do feminismo. Mas, por baixo dele, estão algumas ideias muito tradicionais sobre os papéis adequados das mulheres. Tenho observado que dois tipos diferentes de mulheres sofrem esses ataques. A primeira é a descrita por Anselma Dell’Olio – a empreendedora e/ou a mulher assertiva, aquela a quem o epíteto “identificada com os homens” é aplicado de forma comum. Esse tipo de mulher sempre foi rebaixado pela nossa sociedade com epítetos que variam de “pouco feminina” até “vadia castradora”. A principal razão de ter havido tão poucas “grandes mulheres que … [realizaram algo]” não é meramente que a grandeza feminina foi pouco desenvolvida ou não reconhecida, mas que as mulheres que apresentam potencial para o sucesso são punidas tanto por mulheres quanto por homens. O “medo do sucesso” é algo bastante racional quando se sabe que a consequência do sucesso é a hostilidade e não o elogio.

Não apenas o Movimento falhou em superar essa socialização tradicional, como algumas mulheres levaram isso a novos extremos. Fazer alguma coisa significante, ser reconhecida, ter sucesso, implica que se está “aproveitando da opressão de outras mulheres”, ou que se considera melhor que as outras. Apesar de poucas mulheres pensarem isso, muitas também ficam em silêncio enquanto as outras afiam as garras. A luta por “ausência de lideranças” que o Movimento tanto valoriza frequentemente se torna muito mais uma tentativa de destruir aquelas mulheres que mostram qualidades de liderança, do que desenvolver tais qualidades naquelas que não têm. Muitas mulheres que tentaram compartilhar suas habilidades foram detonadas por afirmarem que elas sabem algo que as outras não sabem. O culto do Movimento ao igualitarismo é tão forte que se confundiu com o culto à mesmice. As mulheres que nos lembram que não somos todas as mesmas têm seu filme queimado porque as qualidades que as fazem diferentes são interpretadas como uma afirmação de que não somos todas iguais.

Consequentemente, o Movimento exige coisas erradas das mulheres que conquistaram posições dentro dele. Ao invés de exigir reconhecimento e responsabilidade, pede culpa e arrependimento. As mulheres que se beneficiaram pessoalmente da existência do Movimento de fato devem mais do que gratidão a ele. Mas esta dívida não é paga com espancamento moral. A prática do ataque à reputação apenas desestimula outras mulheres a tentar se libertar de seus tradicionais grilhões.

O outro tipo de mulher que é comumente detonada é um tipo que eu jamais suspeitaria. Os valores do Movimento favorecem mulheres que são muito solidárias e comedidas; aquelas que estão constantemente resolvendo problemas pessoais alheios; as mulheres que desempenham bem um papel maternal. Mas um número surpreendente dessas mulheres já teve sua reputação detonada. Ironicamente, justo a habilidade de desempenhar este papel gera ressentimento e cria uma imagem de poder que suas colegas acham ameaçadora. Algumas mulheres mais velhas rejeitam conscientemente este papel maternal, porém, espera-se que o desempenhem porque elas se encaixariam nele — e são detonadas quando recusam. Outras mulheres que desempenham esse papel voluntariamente geram expectativas que eventualmente não conseguirão atender. Ninguém consegue ser “tudo para todas”; então, quando estas mulheres se veem numa situação em que têm que dizer “não” para conservar um pouco do seu próprio tempo e energia pra si mesmas ou pra cuidar da questão política de um grupo, elas são vistas como rejeitadoras e tratadas com ódio. É claro que mães de verdade conseguem lidar com um pouco de raiva das suas crianças porque mantém um alto grau de controle físico e financeiro sobre elas. Até mulheres nas profissões “cuidadoras”, que ocupam papéis de mães substitutas, têm recursos para controlar a raiva de seus clientes. Mas quando se é uma “mãe” para suas pares, esta não é uma possibilidade. Se as exigências estão fora da realidade, ou se recua, ou fazem sua caveira. 

A detonação contra ambos os grupos tem raízes comuns nos papéis tradicionais. Entre as mulheres existem dois papéis concebidos como permissíveis: a “ajudadora” e a “ajudada”. A maioria das mulheres são treinadas para agir de uma ou outra maneira em diferentes momentos. Apesar da prática de conscientização e de um diagnóstico intenso da nossa própria socialização, muitas de nós ainda não conseguimos nos libertar de desempenhar esses papéis, nem da nossa expectativa de que outras irão desempenhá-los. Aquelas que se desviam desses papéis — as mulheres de ação — são punidas por fazê-lo, assim como aquelas que fracassam em atender as expectativas do grupo.

Apesar de só algumas mulheres se engajarem na detonação, a culpa por permitir que esta prática persista é de nós todas. Uma vez sob ataque, há pouco que uma mulher pode fazer para se defender, porque, por definição, uma mulher que tem sua reputação atacada está sempre errada. Mas há muita coisa que quem está observando pode fazer para impedi-la de ser isolada e, em última instância, destruída. A detonação só funciona bem quando suas vítimas estão sozinhas, porque a essência dele é o isolamento de uma pessoa e a atribuição a ela dos problemas do grupo. O apoio coletivo quebra essa fachada e priva as destruidoras de reputação da sua audiência cativa. Transforma um massacre numa luta. Muitos ataques foram impedidos pela recusa de colegas de se silenciarem por medo de serem os próximos alvos. Outras agressoras foram forçadas a esclarecer suas reclamações até o ponto em que estas reclamações puderam ser tratadas de forma racional.

Existe, é claro, uma linha tênue entre a detonação e a luta política, entre assassinato de reputação e objeções legítimas contra comportamentos indesejáveis. Discernir a diferença requer esforço. Seguem aqui alguns indicadores de caminhos a seguir. A detonação envolve muito uso do verbo “ser” e pouco uso do verbo “fazer”. É o que se é, e não o que se faz, que é objetado, e essas objeções não podem ser facilmente expressas em termos de comportamentos indesejáveis específicos. As detonadoras também tendem a usar nomes e adjetivos de uma forma vaga e genérica para tentar expressar suas objeções a uma pessoa específica. Esses termos carregam uma conotação negativa, mas não lhe dizem realmente o que está errado. Isso é deixado para sua imaginação. Aquelas que estão sofrendo ataques à reputação não podem fazer nada certo. Porque elas são más, suas motivações são más e, portanto, suas ações são sempre más. Não existe retificação de erros passados, porque esses são tratados como sintomas e não como erros.

A prova de fogo, no entanto, ocorre quando alguém tenta defender uma pessoa sob ataque, especialmente quando ela não está lá. Se esta defesa é levada a sério e mostra-se alguma preocupação em ouvir todos os lados e obter todas as evidências necessárias, provavelmente não está ocorrendo detonação. Mas se a sua defesa é dispensada de imediato com um “como você pode defendê-la?”; se você acaba se tornando suspeita ao tentar fazer essa defesa; se ela é de fato indefensável, você deve olhar as acusadoras de perto. Há algo mais acontecendo do que simples discordâncias.

Como a destruição de reputação tornou-se mais frequente, eu fiquei mais intrigada com a questão do porquê. O que há no Movimento das Mulheres que apoia e até mesmo incentiva a autodestruição? Como podemos, por um lado, falar sobre o incentivo às mulheres a desenvolver seu próprio potencial e, por outro, esmagar aquelas entre nós que fazem exatamente isso? Por que condenamos nossa sociedade machista pelo dano que causa às mulheres, para depois condenarmos as mulheres que não parecem tão severamente destruídas pela sociedade? Por que a conscientização não nos conscientizou sobre a detonação?

A resposta óbvia está enraizada na nossa opressão enquanto mulheres, e na autoflagelação grupal que resulta de termos sido criadas para acreditar que as mulheres não valem muito. No entanto, esta resposta é muito fácil; esconde o fato de que a detonação não ocorre de forma aleatória. Nem todas as mulheres ou organizações femininas fazem destruição de reputação, ou pelo menos não o fazem na mesma medida. É muito mais predominante entre aquelas que se consideram radicais do que entre aquelas que não se consideram; muito mais entre aquelas que enfatizam mudanças pessoais do que entre aquelas que enfatizam mudanças institucionais; muito mais entre aquelas que não veem vitórias antes da revolução do que entre aquelas que se satisfazem com vitórias menores; muito mais entre grupos com objetivos vagos do que entre grupos com objetivos concretos.

Duvido que haja uma explicação única para a detonação; é mais provável que se deva a diversas combinações de circunstâncias que nem sempre são visíveis, mesmo para quem as vive. Mas a partir das histórias que ouvi, e dos grupos que observei, o que mais me impressionou é o quanto a detonação é tradicional. Não há nada de novo no desencorajamento das mulheres a agirem fora do esperado com o uso de manipulação psicológica. Esta é uma das coisas que por anos têm impedido as mulheres de crescer; é algo do qual o feminismo deveria nos libertar. No entanto, ao invés de uma cultura alternativa com valores alternativos, criamos meios alternativos para nos inculcar a cultura e os valores tradicionais. Só o nome mudou; os resultados são os mesmos.

Embora as táticas sejam tradicionais, a virulência não é. Nunca vi mulheres se enfurecerem tanto com outras mulheres como acontece no Movimento. Em parte, isso ocorre porque as nossas expectativas sobre outras feministas e sobre o Movimento em geral são muito elevadas e, portanto, difíceis de atender. Nós ainda não aprendemos a ser realistas em nossas demandas sobre nossas irmãs ou sobre nós mesmas. Ocorre também porque outras feministas estão disponíveis como alvos para a raiva.

A raiva é um resultado lógico da opressão. Ela exige uma válvula de escape. Como muitas mulheres são rodeadas por homens a quem, pelo que aprenderam, não é prudente atacar, sua raiva é geralmente voltada para dentro. O Movimento está ensinando as mulheres a parar este processo, mas em muitos casos não forneceu alvos alternativos. Enquanto os homens estão distantes e o “sistema” é muito grande e vago, as “irmãs” estão por perto. Atacar outras feministas é mais fácil e os resultados podem ser vistos mais rapidamente do que quando se ataca instituições sociais amorfas. Pessoas são feridas; elas vão embora. Pode-se sentir a sensação de poder que vem de ter “feito alguma coisa”. A mudança de uma sociedade inteira é um processo frustrante, muito lento, em que os ganhos são incrementais, as recompensas são difusas e os retrocessos são frequentes. Não é uma coincidência que a queimação de filme seja feita com frequência e mais violentamente por aquelas feministas que veem pouco valor em mudanças pequenas e impessoais e, portanto, muitas vezes não tenham condições de agir contra instituições específicas.

A ênfase do Movimento na palavra de ordem “o pessoal é político” tornou mais fácil o florescimento da detonação. Começamos por derivar algumas das nossas ideias políticas da análise de nossas vidas pessoais. Isto legitimou, para muitas, a ideia de que o Movimento poderia nos dizer que tipo de pessoas devemos ser e, por extensão, que tipo de personalidades devemos ter. Como não foram estabelecidos limites para tais exigências, foi difícil impedir abusos. Muitos grupos têm buscado remodelar as vidas e mentes de suas integrantes, e alguns destróem a reputação daquelas que resistiram. A detonação é também uma forma de extravasar a competitividade que permeia nossa sociedade, mas de uma forma que reflete os sentimentos de incompetência que as detonadoras exibem. Em vez de tentar provar que se é melhor do que qualquer outra pessoa, tenta-se provar que outra pessoa é pior. Isso pode proporcionar a mesma sensação de superioridade que a concorrência tradicional faz, mas sem os riscos envolvidos. Na melhor das hipóteses, o objeto de sua ira é exposto à vergonha pública; na pior das hipóteses, a própria posição é assegurada sob a fantasia da justa indignação. Francamente, se vamos ter concorrência no Movimento, eu prefiro a tradicional. Tal competitividade tem os seus custos, mas também existem alguns benefícios coletivos a partir das realizações que as concorrentes fazem ao tentar superar umas às outras. Com a detonação não há beneficiárias. Em última análise, todas perdem.

Apoiar mulheres acusadas de subverter o Movimento ou prejudicar o seu grupo exige coragem, pois nos obriga a dar a cara a tapa. Mas o custo coletivo de permitir que ataques sistemáticos à reputação continuem tão longa e amplamente como temos permitido é enorme. Já perdemos algumas das mentes mais criativas e das mais dedicadas ativistas do Movimento. E o mais importante: temos desencorajado muitas feministas a se sobressaírem, pelo medo de que façam a caveira delas. Não fornecemos um ambiente seguro para que todas possam desenvolver seu potencial individual, ou onde reunamos forças para as batalhas contra as instituições machistas que devemos travar cotidianamente. Um movimento que antes extravasava energia, entusiasmo e criatividade agora se embaraça em questões de sobrevivência básica – a sobrevivência contra o outro. Não é hora de pararmos de olhar para os inimigos internos e começarmos a atacar o inimigo real lá fora?

A autora gostaria de agradecer a Linda, Maxine e Beverly por suas úteis sugestões na revisão deste artigo.

Joreen

O artigo foi ilustrado com algumas das Pinturas Negras de Francisco de Goya; elas não constam no original e são de responsabilidade do Passa Palavra.

NOTAS

(*) Artigo escrito por Jo Freeman, militante feminista estadunidense e autora do clássico A Tirania das Organizações sem Estrutura, sob o pseudônimo Joreen. Traduzido pelo Passa Palavra a partir do original em inglês, disponível no site da autora.

[1] Trashing é um termo coloquial da língua inglesa que significa “destruir”, “detonar”, “assassinar a reputação”, “atacar a reputação” ou “espancar moralmente” uma pessoa. Coloquialmente, poderia ser traduzido como um caso extremo de “fazer a caveira” ou “queimar o filme” de alguém. Daqui em diante, a tradução verteu “trashing” usando estas várias formas, de acordo com o contexto.

30 COMENTÁRIOS

  1. as mulheres isso, as mulheres aquilo.
    “irmãs”, é movimento religioso?
    “sororidade”

    pra mim o problema começa no próprio feminismo liberal, do qual as radfem não se escapam. do qual a própria autora, Jo Freeman, não se escapa, aparentemente. apesar desta fazer uma crítica extremamente necessária.

  2. Muito apropriada a publicação desse atual texto antigo. A última frase me soou especialmente desconcertante:

    “Não é hora de pararmos de olhar para os inimigos internos e começarmos a atacar o inimigo real lá fora?”

    Ora, me parece que é justamente essa justificativa de foco “tático” que obstrui as tentativas de autocrítica interna e resulta na “queimação de filme” de quem “se atreve” a criticar o movimento, especialmente se esse alguém critica de dentro. É a boa e velha desculpa do “contexto” e da “hora errada de dizer certas coisas”, o que é bem típico do stalinismo, mas cabe pra qualquer luta que se apoia no tal “acúmulo de forças” e na lógica de que criticar a si mesmo é “dar munição ao inimigo”. É nessa problemática, que tá contida nos outros dois textos sobre feminismo recentemente publicados aqui (“Sobre as vítimas e nossos desafios” e “Reflexão acerca de nossas lutas pelo feminismo”) que me pareceu desconcertante a frase final, na medida em que o texto vem super coerente na crítica e aí esbarra nesse maldito dilema que a esquerda vive quando se depara com esses desafios de ter um inimigo externo mais ou menos difuso e mais ou menos inatacável diretamente e nessa luta contra esse inimigo se organiza de um modo que permite a extrapolação contra xs camaradas da raiva que a gente nutre contra esse inimigo mais ou menos impalpável. Em vez de pedrada na PM, martelada no prego que se destaca. Nesse sentido a coisa toda aparece como o problema do foco e a necessidade de unificação estratégica em meio às divergências táticas e políticas entre xs camaradas, beleza, mas se xs camaradas tão oprimindo as divergências internas e silenciando as vozes destoantes são elxs camaradas mesmo? Quem acusa o outro de operar uma “escalada contra o feminismo radical, em vez de apoiar as nossas lutas” (como já ouvi gente dizendo sobre o PassaPalavra) quer mesmo que a luta evolua ou está muito contente e confortável em sua posição de militante supermegahiper radical? E se essxs militantes não são camaradas, e se esse pessoal e essas correntes internas à luta sejam reconhecidas como prejudiciais à luta, vamos expurgá-los e nos digladiar entre nós enquanto o inimigo externo só assiste de camarote? O imbróglio é dialético, e a culpa é da forma específica como o capital introjeta na gente a lógica hierárquica da lei do valor, fazendo com que a gente interiorize os fundamentos sociais da exploração e opressões, sendo um trabalho hercúleo (do militante crítico) romper o conformismo e criticar o próprio machismo e racismo e homofobia que puserem em nós desde criança, e que vez ou outra reaparece e “escapa” aqui e ali, mostrando que a questão não é meramente subjetiva e matéria de vontade individual. O pensamento crítico já ensinou que a autogestão da sociedade se prepara na autogestão das lutas, então não seria o caso de lutar desde já em acordo com os ideais que se espera que pautem a sociedade pós-capitalista? Se não queremos machismo, nem racismo, nem opressão sexual, que a lute se construa sem reproduzir isso internamente, não é consenso isso? Então por que tanta divergência sobre a ideia de que não se deve cindir a luta em causas específicas que não se comunicam e não se articulam, e que não se deve silenciar algumas vozes de camaradas por serem essas vozes contrárias à ideologia dominante no coletivo, ou por serem essxs camaradas de uma cor (o branco na luta anti-racista) ou sexo (o homem nas trincheiras feministas) ou orientação sexual X (o hetero na escalada contra o homofobia)? A gente não quer uma sociedade pós-capitalista, pós-racista, pós-machista e pós-heteronormativa? A gente não quer uma forma social futura em que prevaleça a igualdade substantiva entre todxs? Então, antes de negar de antemão a minha crítica (que não é minha e sim duma galera ae…) por ser alguém querendo “ensinar o outro como se luta”, que tal passar a palavra e pensar na crítica como uma mera sugestão ou opinião de um militante como qualquer outro? A meu ver o papo nesse debate todo não é de empatia e sim de igualdade. Então a luta (a luta de agora) não tem só que ter “empatia”, não se trata de mero “apoio” à “causa” e sim de igualdade entre os que lutam ombro a ombro. O que legitima o lutador é estar ele ombro a ombro na luta, não importa a cor da pele ou onde marcaram X na certidão de nascimento dele ou o que faz ele gozar. Se a luta caminhar pro lance do protagonismo dos que são mais diretamente atingidos pela opressão contra a qual se está lutando, beleza, mas que não se use esse ideal do “protagonismo” como uma norma rígida que não serve pra defender os militantes dos inimigos externos e sim pra atacar parte deles e sobrevalorizar essa ou aquela fração interna. Sou branco e homem e até o momento hetero. Vou lutar lado a lado com mulheres e negrxs e homossexuais, queiram ou não essas parcelas ditas “radicais” que querem excluir de antemão algumas vozes militantes pautados na própria lógica do opressor (de diferenciação pela via da biologia e/ou da cultura historicamente construída). E embora branco e homem vou lutar ombro a ombro por essas causas “específicas” não porque eu tenha empatia pela mulher ou pelo negro ou pelas variedades de homossexuais e sim porque todos esses da luta são trabalhadores que o capital já unificou enquanto explorados, portanto porque são, todos, meus iguais. Dizer que são todos meus iguais não é silenciar ou tapar as opressões específicas que eles sofrem e eu não sofro por ser branquelo e machinho, e sim ressaltar que a luta e o inimigo é o mesmo, o causador das opressões: a forma social do capital, a qual estrutura as relações sociais de forma hierárquica e reproduz forçosamente as opressões de raça, gênero e orientação sexual porque tais opressões reforçam a teia hierárquica da lei do valor, a lei social da exploração do tempo de trabalho.

    Fico por aqui, peço desculpas pelo tamanho do comentário, que virou um desabafo por conta dos (quase sempre) trágicos debates cotidianos em que me meti e muitos de nós nos metemos, nas últimas semanas. Fica a esperança de mais fraternidade nas lutas futuras.

  3. Achei o texto bem interessante. Felizmente “acho” que não me encontrei em um espaço com esse tipo de situação ainda.
    Mas reconheço a possibilidade da ocorrência. Então acho um texto bom para reflexão e introspecção de todas nós.

    Em relação ao comentário do “Pablo”, concordo, concordo plenamente. Só ainda fico na dúvida de como se faria o empoderamento do oprimido na presença do opressor.

    Mesmo na luta “ombro a ombro”, a subjugação da mulher se manteria, querendo nós ou não.

    Enxergo os espaços não mistos, a sororidade e a misandria (como conceito – válvula de escape para o ódio, ao que a autora se referiu), como táticas de empoderamento das mulheres, para a partir daí sim, partirem para a luta ombro a ombro.

    Pois a opressão à mulher ocorre na luta classista.

    Como fugir disso? Como estimular o empoderamento da mulher na luta ombro a ombro, se mesmo apenas a presença masculina já cause intimidação à mulher?

  4. Sou homem e mudarei o foco do artigo. Peço desculpas, mas farei disso aqui um relato pessoal.

    Há algum tempo fui escrachado. Não foi pessoal, um dos coletivos de que fazia parte foi acusado de ser machista em algumas cartas públicas. Engraçado como os sentimentos relatados no texto são parecidos com os que sinto. Não consigo voltar para o Movimento (que não é o feminista, mas é essa série de pessoas e coletividades que tentavam descolonizar o cotidiano). Tem horas que acredito que o problema está mesmo em mim e que não há superação possível. Outras penso que se pessoas que eu confiava tanto foram capazes de serem tão intransigentes é porque o “Movimento” tem algo de muito perigoso. Esse discurso feminista radical pode estar ajudando a superar uma série de opressões, mas não sei me colocar nesse mundo que está sendo criado porque nem falar eu posso. Não sou um desses caras que agrediu uma namorada e está sendo escrachado, é tudo muito mais sutil, é o quanto eu represento de dominação com meu exercer masculino de uma liderança não desejada (algo que não sei como superar e que para as feministas ao meu redor não importa se eu supero ou não).

    Pois bem, estou afastado de tudo, não tenho mais o PassaPalavra como leitura regular, não quero saber desses anarquismos, autonomismos, feminismos e todas as tentativas de melhorar o mundo. Sinto uma propensão por tomar uma cerveja, ver o colapso se instaurar no mundo e conseguir salvar o pouco de sanidade que me acompanha.

    Como Regina Duarte: “eu tenho medo”.

  5. O texto e a reflexão autocrítica – tornada pública – são muito pertinentes, e embora de outro país/momento são atualíssimos no contexto brasileiro atual. Para além das lutas feministas, pois temos assistido muitas situações semelhantes dentro de organizações/coletivos do movimento negro, LGBTs, ocupações de Sem-Teto etc. As detonações, etiquetações e expurgos têm se multiplicado como rastilho de pólvora – implodindo muitas coletividades e indivíduos.

    Este artigo nos remete novamente a comentário feito em outro texto publicado pelo PP (http://passapalavra.info/2014/12/101252), cujas informações eu complemento e atualizo abaixo:

    Nos últimos dias ocorreu um violento caso de escracho/detonação/trashing interno no coletivo do site Blogueiras Negras (http://blogueirasnegras.org/). E, pior, ao que tudo indica houve uma injustiça tremenda contra a militante detonada, uma senhora negra, escrachada em um dos grupos de discussão do site, em alguns perfis de blogueiras mais jovens, no seu próprio perfil pessoal de facebook, o que acabou atingindo até seus familiares (a filha jovem que saiu em sua defesa) etc…

    A militante negra escrachada pelas outras militantes – pois estava sendo acusada de “quebrar a sororidade” do coletivo de mulheres negras e ter passado informações internas para um militante negro supostamente machista e agressor – chegou a escrever, no dia do seu aniversário, palavras muito fortes:

    em 05/12/2014, às 9:09, Luzia Souza escreveu – “Amanhã será meu aniversário, não me desejem nada..

    Queria preparar uma defesa pra mim, mas venho aqui e não consigo escrever, mesmo tendo provas de minha inocência. Como me defender de acusações infundadas se a gente é inocente? Eu não tenho postado nada porque se não existe uma doença chamada Síndrome do Pânico de Redes Sociais, eu estou começando com essa doença agora… Eu tenho vindo ver as mensagens, mas não tenho forças de responder, como se tudo que eu tenha feito até agora, não tivesse sentido. Quem eu sou, não tem sentido. Eu sinto-me envergonhada diante do brancos por fazer o que estão fazendo para mim.

    Me perdoem se eu não puder voltar mais. Já suportei muito bem agressões de nazistas convictos, de racistas, mas não posso suportar as acusações horríveis que venho sofrendo de mulheres. Mulheres negras. Preferiria morrer a ter de viver isso, preferiria ser morta nas ruas por ser preta, preferiria ser arrastada no carro da polícia. Preferiria sofrer todos os racismos que todos os negros do mundo viveram, preferiria ter sido escravizada.”

    *

    No mesmo dia foi “comprovada a inocência” da militante escrachada. O militante negro acusado de ser machista e agressor confirmou publicamente que não fora Luzia que teria passado a ele as informações, mas ele próprio teria conseguido acesso às discussões internas do coletivo Blogueiras Negras:

    Fernando escreveu em 5 de Dezembro, às 17:57: “Esse é um pedido de desculpas a Luzia Souza e a todas mulheres que se ofenderam, com a minha atitude.
    Também quero dizer que esse julgamento que estão fazendo da Luh, é totalmente desnecessário, no “AF” ela sempre puniu com rigor todos os tipos de atitudes machistas, inclusive quando eu errei fui expulso no mesmo dia. Nem contestei pois sei que errei.
    Após isso, tem sido falado que a Luzia compartilhou prints de um determinado grupo e me enviou. Venho a público dizer que não foi a Luzia a responsável por esses prints. Ambas as acusações que têm sido feitas contra ela, tanto de ter me protegido quanto de ter compartilhado o print, não são verdadeiras.
    Se acham que foi ela que vazou a informação, estão completamente enganados, estudo computação e consigo informações sem precisar de pessoas.
    E acusá-la sem provas é uma forma clara pra prejudicá-la, em decorrência de brigas além desta.
    Novamente, peço desculpa a todas as mulheres que se sentiram ofendidas pelo meu comentário. Não deveria ter reagido às ofensas e aos xingamentos que foram direcionados a mim dessa forma. Mesmo tendo sido xingado por diversas vezes e ter ouvido afrontas à minha pessoa, reconheço que reagi de forma errada e que não deveria ter me portado de tal forma
    Só peço que deixem ela em paz.” (Ver aqui: https://www.facebook.com/candidofernando/posts/841451189238943?pnref=story)

    *

    Na sequência, Luh Souza publicou um post público:

    CARTA ABERTA E PEDIDO DE RETRATAÇÃO PÚBLICA –
    https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1151980544827806&set=a.271961182829751.86758.100000476151450&type=1

    “Espero, exijo, e acima de tudo porque eu mereço, um pedido de retratação pública, assinado por todas as envolvidas no linchamento virtual a que me expuseram gratuitamente, no site, no grupo, e no novo grupo acabaram de abrir cuja exigência é que para ser membro do grupo é necessário que as mulheres não sejam minhas amigas, numa clara, e evidente, coação ditatorial e psicológica de mulheres sedentas pelo saber e aprendizado, que sequer me conhecem ou podem vir a me conhecer. Cada pessoa tem sua própria vida independente da minha e isso não é justo com elas. Um trabalho tão lindo de empoderamento para as mulheres negras como um todo, que sempre respeitei e honrei, que sempre respeitarei e honrarei, nunca falando em lugar algum algo depreciativo sobre as irmãs, muito pelo contrário, compartilhei e estive sempre a postos para qualquer empreitada a que fosse convocada.
    Exijo que devolvam-me a minha dignidade, minha honra e meu caráter diante da minha família, minha filha, meus companheiros de trabalho, meus amigos, conhecidos e pessoas que jamais tinham ouvido falar sobre mim por esse mundo afora. Devolvo a todas vocês o título de uma das 25 mais (http://blogueirasnegras.org/2013/12/31/25-negras-mais-influentes-da-internet/), e vocês me restituam a mulher que eu lutei a vida inteira pra ser, sem a ajuda de vocês. Não lhes devo absolutamente nada e quero a voltar a ser a simples mulher que sempre fui.
    Em momento algum, assinei quaisquer documentos propondo trocar a minha trajetória de vida, iniciada quando muitas de vocês ainda estavam no ensino primário, por um título de nobreza na internet.
    Por todas as calúnias e difamações levantadas contra mim, me declarei e me declaro inocente até o final da minha vida.
    Devolvam-me a minha trajetória, por favor!
    Luh Souza (Luzia Souza) ”

    *

    Alguns dias depois, após ter recebido algumas manifestações de solidariedade individual, sem porém ter recebido um pedido de desculpas formal e público do coletivo e das pessoas que a detonaram, a senhora negra militante fez a seguinte reflexão em seu perfil pessoal:

    “MILITISMO – nova modalidade que tá acontecendo – paixão extremada ou escalada do ego em tempo recorde. Se juntam em bando e se dizem protetores dos/as fracos/as e excluídos. O nível espuma de ódio no canto da boca é tão grande a ponto de tentar mandar matar quem ele diz defender, fazer a pessoa se auto destruir ou colocar em perigo as minorias que a pessoa diz lutar para proteger.. Ninguém ousa dizer que as verdades são mentiras, elas JAMAIS poderão ser contestadas, mesmo que esteja evidente que a pessoa não tem mentalidade maior que os garotos de primeira série. É preciso calar, amedrontar, esculachar, humilhar apenas um para que todo o rebanho sinta medo. Assim, tá dominado o espaço. Inclusive, silencia e amedrontam as pessoas aliadas à sua própria ideologia só com palavras de elogio. Andam juntos, falam as mesmas palavras, sentem que algo está errado e podem ser a qualquer momento a bola da vez, entretanto não tem coragem de reagir, mas ser morto é só uma questão de tempo, pq matar um soldado também fará cativo os demais. É ai que o espaço de dominação se expande mais. Todos sabem que aquilo está errado, mas preferem se calar ou fingir que não perceberam para não morrer mais à frente. Até que no último suspiro pensarão que o silencio, a conivência e o medo não salva mais ninguém. Começa com amor, tem diálogo, ocupa os espaços, faz a espionagem recrutando soldados com problema de auto estima, afeto e atenção e ai é só implantar a bomba em seus corpos, como se robôs fossem,. e apertar um botão de longe.
    Assim os muçulmanos do mal (há os bons) tem agido no mundo, e não é diferente do que foi o nazismo e o fascismo
    Esse filme é muito antigo mas é bom assistir de novo pra ver se as pessoas acordam.
    A ONDA – http://www.adorocinema.com/filmes/filme-134390/

    *

    Enfim, ao que tudo indica mais uma triste história – dentro da esquerda – bastante sintomática do que este artigo aqui e outros recentes do PP têm procurado tratar. No caso deste, chama atenção o fato de não se tratar de algo novo, nem exclusivo do Brasil atual.

    Histórias, porém, que se multiplicam instantaneamente como as infinitas postagens, curtidas e compartilhamentos em tempo real, dentro e fora da esquerda 2.0.

    E a nossa fragmentação auto-destrutiva só faz crescer…

  6. Algo que merece ser destacado é o fato de uma mulher, apesar de ter sofrido uma situação de opressão intensa, ter encontrado forças para se organizar e realizar uma análise. Análise que é ao mesmo tempo um contra-ataque e uma abertura de novas perspectivas de libertação. Isso é muito importante e de situações como estas, de se viver a contradição até o limite e depois conseguir criticá-la, que vêm as contribuições que mais fazem avançar os movimentos. Só por isso este texto mereceria um lugar especial na formação de movimentos, não só feministas, mas de todos os outros de forma ampla.

    Mas o fato é que a situação descrita pela autora não se limita de forma alguma aos coletivos feministas e muito menos ao meio libertário, embora encontre condições excepcionais de existência neste meio. Situação que não deixa de causar espanto em função da contradição evidente que expõe.

    A releitura deste artigo reforçou em mim algumas convicções.
    Quanto mais uma coletividade se fundamenta em relações preferencialmente emocionais/afetivas (cujo ápice talvez seja o sentimento de “irmandade” ou a irmandade religiosa, no caso da “sororidade”), mais ele tende a criar critérios de pertencimento e/ou adequação que não são acessíveis para todos. A consequência mais imediata desta situação é o deslocamento do debate do âmbito coletivo, de construção e debates, para o do controle de comportamentos individual, de adequação ou inadequação ao tabu de cada grupo.

    Enquanto todos estão alinhados, tudo vai bem. O problema ocorre na hora da dissidência. Neste momento os mais variados artifícios tradicionais de controle moral são acionados para dar cabo das oposições, ainda mais quando não são objetivados em suas conotações opressivas, escondidas por trás do muro da afetividade. Como os critérios são subjetivos, se tornam arma na mão de quem melhor consegue manipular as relações interpessoais. No caso o estado de ânimos do espírito radical, misturado com a desconfiança libertária quanto à personalização, somado a certo papel tradicional esperado para as mulheres pelas próprias militantes do movimento foram responsáveis por formar a consciência indispensável à prática do trashing no caso relatado pelo texto. Vou evitar citar aqui diretamente, mas não seriam poucos os casos de perseguições políticas motivadas por questões afetivas. No limite a história política humana é permeada por vários exemplos disso que digo.

    Diante disso, deixo no ar: será mesmo que a lógica emocional/afetiva é o melhor critério de seleção de quem pode ou não militar em determinada causa? Será que não seria mais oportuno uma explicitação objetiva dos motivos da luta e o angariamento de apoios entre aqueles que se disponham a lutar contra aquela situação objetiva?

  7. O texto é riquíssimo, impossível tocar todos os pontos importantes num comentário. E claramente apresenta dilemas e problemas que perpassam movimentos de caráter autônomo em geral, como por exemplo a “ausência de líderes” se transformar numa apologia da mediocridade, expurgando justamente os melhores quadros.

    Pretendo agora dialogar com o comentário da HITITA,

    HITITA, talvez você não reconheça (ainda) o que o texto expõe porque o ‘trashing’ ainda não chegou (com força) às mulheres. Mas os homens já estão sabendo bem o que é isso na pele. Pelo menos aqueles que querem expressar suas opiniões e não apenas dizer amém a uma onda.

    Quando vc diz que as mulheres se sentem intimidadas diante de homens, isso me causa certa surpresa, pois nunca me pareceu algo generalizado. De toda forma, vc vê como espécie de solução (momentânea pelo menos), a separação, os espaços exclusivos. E isso me faz lembrar uma fala de uma pessoa, comunista, encarcerada durante um regime fascista. Ele disse que na prisão era onde ele se sentia mais livre, pois ali ele não precisava esconder nada, fingir nada, podia dizer o que pensava. Me parece que essa solução de separação é um pouco, ou muito isso, criar um gueto, uma prisão.. no fundo é meio que fugir do problema.

    Outra questão relacionada a isso. Será se é o gênero que gera essa “intimidação”, será ele o principal? Pois existem mulheres que não se intimidam diante de homens, e existem muitos, muitos homens que se intimidam diante de outros homens (e também de mulheres).
    Em meios de esquerda estou cansado de ver pessoas mais jovens e menos experientes intimidadas diante de lideranças mais rodadas, diante de quem tem mais oratória etc. Devem os menos experientes formarem um grupo separado? Me parece absurdo. O caminho para superar isso me parece que passa justamente por estarem juntos…

    Eu vejo muita coisa sendo imputado ao gênero, ou exclusivamente a ele, quando de fato não é.

  8. O ambiente dentro do Movimento feminista é bastante hostil, cheio de rivalidade e divisões tanto q existem várias vertentes dentro do movimento Feminista . Quem participa ativamente dele sabe bem tudo o q se passa e se engana quem acha q aqui vai encontrar mulheres unidas lutando do mesmo lado , não existe isso @ Tanto é q ainda não temos representantes feministas na política .. O patriarcado tem grande vantagem sobre nós pq , como movimento , estamos mais preocupadas em brigar entre nós, do que a procura de avanços . Isso é culpa da nossa socialização que sempre nos ensinou a cnsiderar a outra como nossa rival e isso existe muito dentro do movimento , o q é uma pena ! Enquanto isso o Feminismo avança a passos de formiga, dando um passo a frente e dois atrás .

  9. Para além da discussão específica sobre o feminismo, creio que o comentário do Rodrigo trás uma luz importante:
    “Quanto mais uma coletividade se fundamenta em relações preferencialmente emocionais/afetivas (cujo ápice talvez seja o sentimento de “irmandade” ou a irmandade religiosa, no caso da “sororidade”), mais ele tende a criar critérios de pertencimento e/ou adequação que não são acessíveis para todos”

    diversas partes do texto me trouxeram imediatamente à mente aspectos da democracia grega, não apenas pela prática do ostracismo, reflexo de uma forma primeira de se resolver as tensões entre igualitarismo e personalidades de liderança (cultura versus natureza?); mas também pelo que comenta Rodrigo: a democracia limitada àqueles poucos que preenchem os pre-requisitos, os homens livres não miseráveis.

    Criar mini-democracias que funcionem bem, é um projeto Antigo. Quando voltaremos a falar de democracia radical?, aquela que não conhece os limites da identidade nem da propriedade?

  10. Antes, preciso parabenizar a todos os comentadores, que expressam um alto nível de ideias, ajudando a compreender objetivamente o problema desses grupos. Abaixo colo os desenvolvimentos que tive de dar a um comentário antigo:

    “A AUTONOMIA É FAVORECIDA PELAS LUTAS IDENTITÁRIAS?
    As lutas identitárias (mulheres, negros, consumidores, etnias, jovens e inclusive os agrupamentos militantes…) pretendem existir fora da esfera da produção. Mas qualquer coisa que se dê fora da produção é uma coisa que não veio a ser, isto é, que não se produz, que é como uma forma eterna platônica, uma coisa dada de uma vez para sempre – em suma, é a velha reificação. Logo, toda luta que supõe defender algo fora da produção é, por esta razão, reificante – e este é o caso de todas as lutas identitárias. Considerar tudo em sua produção foi realmente a grande sacada de Marx, em radical contraposição a marxistas e anarquistas, que se agarram a suas identidades “puro-sangue”, suas militâncias e suas doutrinas.

    Assim, por exemplo, a opressão das mulheres só pode ser mesmo combatida na esfera da produção, transformando as condições de existência materiais em que as mulheres são praticamente constrangidas a se sujeitar. A opressão das mulheres jamais terminará enquanto a mulher for afirmada como uma identidade contra outra(s) identidade(s) (isso só leva ao punitivismo, ou seja, à pura irracionalidade, à adesão à violência do poder *), mas apenas se elas se libertam dessa reificação, ao transformarem (junto com todos nós) suas condições de existência de modo a produzirem a si mesmas livremente, o que evidentemente envolve uma luta geral para produzir as condições de existência de uma livre associação universal na qual a individualidade livre possa se desenvolver, para sempre. (O proletariado é definido como aquele a quem a produção é privada – desse modo, quando ele toma a produção, dissolve todas as identidades, inclusive a dele mesmo).

    Humanaesfera, dezembro de 2014

    * Sem dúvida é essencial a solidariedade entre mulheres (ou negros), se acolhendo mutuamente, se reconhecendo e compartilhando os problemas que só elas (ou eles) sofrem e modos de se contrapor a eles. Porém, fechadas em si mesmas, isto é, enquanto lutas identitárias, elas são necessariamente punitivistas e como tais meramente reivindicam o reforço do aparato repressivo do Estado, quando não a repressão direta ganguista. Por exemplo, na prática o que o feminismo indentitário propõe para transformar a sociedade? Mais repressão. A repressão é a única praxis social possível das lutas identitárias. Não estou dizendo que elas poderiam exigir outra coisa fora a repressão, mas sim que não se pode esperar das lutas identitárias, enquanto tais, a menor possibilidade de ir além do status quo, no qual a repressão (recompensas e punições) é a única praxis possível.

    As mulheres são a esmagadora maioria dos que ganham um salário mínimo ou menos no Brasil. E são elas que são a maioria dos que continuam ganhando a mesma coisa pelo resto de suas vidas… Como tratar disso? Há duas maneiras. Uma é pela via identitária e consiste simplesmente em protestar por novas leis e por fortalecer ainda mais a repressão para implementá-las, “empoderando” ainda mais a classe dominante. A outra é pela solidariedade que surge pela confiança mútua entre homens e mulheres, negros e brancos, que é o único modo de romper o poder da classe dominante e seu aparato repressivo, confiança mútua fundada justo na dissolução de privilégios (de sexo, raça, etnia…), confiança na solidariedade dos outros se alguém sofrer essas violências identitárias. Obviamente esta é uma perspectiva de classe, de autonomia do proletariado. (Aliás, “privilégio” vem de “privus legis” – lei privada. )

    É claro que no contexto “dado” de desconfiança e competição generalizada em que sobrevivemos, nesta guerra de todos contra todos em que o apelo a uma violência ainda mais ameaçadora (gangue, gerente, polícia e/ou Estado) é sempre a única “garantia”, os identitaristas sempre argumentarão que é uma “ingenuidade hipócrita” esperar encontrar solidariedade e confiança mútua entre os proletários, ou esperar que eles recusem suas migalhas de privilégios (“meritocracia”). Os identitaristas tem razão, pois diante do sofrimento da violência identitária, não há tempo para esperar a solidariedade ainda hipotética de classe, não restando saída exceto apelar à classe dominante (ao poder) como único recurso disponível para reduzir o sofrimento.

    Porém, esse contexto, esse status quo, é insuportável e absurdo. Verdadeira hipocrisia é aceitá-lo. É preciso buscar tornar materialmente sem sentido o apelo à “violência mais ameaçadora” (gangue, gerente, polícia e/ou Estado). E, para isso, não se trata de defender “fatos”, mas de afirmar uma posição (que não é uma “militância” ou “trabalho de base”, que sempre desembocam em ganguismo, mas, pelo contrário, relações de igual para igual no cotidiano, na rua, no trabalho, no ônibus): favorecer a solidariedade, a confiança mútua, a recusa à privilégios, propor “a cada um conforme suas necessidades” contra a competição (minando a correspondente “meritocracia”, método de dominação daqueles que detém a “violência mais ameaçadora”, ou seja, a classe dominante), ou seja, favorecer tudo que contribua para a autonomia do proletariado, e o “desapoderameno” da classe dominante… ”

    http://humanaesfera.blogspot.com.br/2014/12/breve-opiniao-sobre-lutas-identitarias.html

  11. Humanaesfera tocou no ponto nevrálgico da questão: ”

    As lutas identitárias (mulheres, negros, consumidores, etnias, jovens e inclusive os agrupamentos militantes…) pretendem existir fora da esfera da produção. Mas qualquer coisa que se dê fora da produção é uma coisa que não veio a ser, isto é, que não se produz, que é como uma forma eterna platônica, uma coisa dada de uma vez para sempre – em suma, é a velha reificação. Logo, toda luta que supõe defender algo fora da produção é, por esta razão, reificante – e este é o caso de todas as lutas identitárias (…)”

    O capital é revolucionário porque não se limita às suas relações sociais e de produção específicas ou típicas, sendo capaz de se apropriar, manipular, integrar ou subordinar outras relações não-capitalistas conforme seus interesses, estando sempre se metamorfoseando, sem perder, contudo sua essência.

    Assim, da mesma forma que as relações de produção não-capitalistas não podem ser compreendidas, na atualidade, fora do capitalismo, os conflitos identitários, que de fato existem, devem ser analisados à luz da luta de classes. Ocorre, porém, que muitas vezes buscam-se as causas destes conflitos no sentido equivocado. Ao invés de se buscar as causas nas “verticalidades”, buscam-se, tão somente, nas horizontalidades, depositando tempo e energia nestas lutas horizontais que só tendem a enfraquecer os próprios grupos em disputa e a preservar da luta e fortalecer os que estão nos ápices das verticalidades.

    Trabalhadores mulheres, negros, indíginas, gays, lésbicas, etc, sofrem pesados ataques, mas os trabalhadores homens, brancos, héteros, etc, mesmo quando agentes de agressões, não deixam também de ser vítimas deste sistema que se fundamenta no individualismo de cada um por si e a mercadoria para todos. E por falar em mercadorias, alma do nosso sistema, quantas são as vezes que as lutas multiculturais tomam-na por inimiga? E quantas são as lutas que tomam por inimigo nosso algoz histórico, o “tripalium”?

    Sem perceber, vamos sendo conduzidos a acreditar que o “inimigo mora ao lado” quando, na verdade, ele está bem longe, distante e protegido em seu palácio a desfrutar dos tesouros produzidos com nosso suor e lágrimas…

  12. “Na história recente, o primeiro momento de interesse da esquerda pela repressão à criminalidade é marcado por reivindicações de extensão da reação punitiva a condutas tradicionalmente imunes à intervenção do sistema penal,
    surgindo fundamentalmente com a atuação de movimentos
    populares, portadores de aspirações de grupos sociais
    específicos, como os movimentos feministas, que, notadamente
    a partir dos anos 70, incluíram em suas plataformas de luta a busca de punições exemplares para autores de atos violentos contra mulheres,febre repressora que logo se estendendo
    aos movimentos ecológicos, igualmente reivindicantes da intervenão do sistema penal no combate aos atentados ao meio ambiente,acaba por atingir os mais amplos setores da esquerda”.

    Não tem muito a ver com os tópicos do texto em questão, mas com outros neste site. Esse trecho acima é o início do artigo “A esquerda punitiva”, de Maria Lúcia Karam.

    https://pt.scribd.com/doc/74572563/Maria-Lucia-Karam-A-esquerda-punitiva

  13. Falsa antinomia: pensar e agir “classista”, afirmando – simultaneamente – a tese “aclassista” da necessária autossupressão comunista do proletariado.

  14. Um dos melhores textos que já li publicado no site. Excelente reflexão da Jo Freeman.

  15. Infelizmente isso tem reproduzido na esquerda como um todo. Não se refere somente ao feminismo.
    Aonde a organização pelo afeto, substitui a crítica e autocrítica em termos orgânicos, isto é sobre o que deve ser feito, qual os planos da organização, etc. Estes maus dos quais fala Freeman imperam.
    Tenho visto cada vez mais os grupos da esquerda discutindo problemas relacionais, como fulano isso… Fulano aquilo… Individualizando os conflitos, e buscando erigir indivíduos socialmente perfeitos e não contraditórios, o que por óbivoi não existe, sendo assim, uma manipulação. A busca por uma solução de conflitos que beneficie as organizações fica em segundo plano, estas acabam paralisadas em discussões egolatras, onde quem como colocou Rodrigo, adula e alicia mais gente, “vence” (o que é o maior absurdo, como se alguém (s) tive-se que perder e outro (s) ganhar em uma mesma organização).
    Infelizmente vejo que este ranso vem especialmente dos meios acadêmicos, onde as pessoas militam em torno de suas vaidades e buscam realização pessoal, tendo tempo suficiente inclusive para articular e agenciar gente para este tipo de intriga.
    Quanto ao defeito de praticar e ter “sucesso”, isso é mais um dos elementos presentes na desqualificação, fazem aqueles que tem um bom desempenho militante (isto é cumprem bem os propósitos da organização) se culpar, pois na mente destes ele não esta sendo horizontal, etc, etc.

  16. Texto mto bom. Jo Freeman, como sempre mandando bem a décadas e fazendo um diagnostico preciso do Movimento. Valeu pelo texto e pela qualidade do debate. Como alguém que presenciou a detonação mtas vezes, esse texto abriu muita coisa e to com menos medo. É mto louco quando vc vê sendo combatido o que vc é, e é mto dificil lidar com isso. Vc simplesmente não consegue viver em paz com vc mesmo. Dominação pelo medo é foda, mas quando vc consegue ver algo além dessa viseira que o medo te coloca vc fica muito mais forte.

  17. Muito importante essa reflexão ter vindo de alguém que esteve/está tão por dentro do movimento. O ocorrido pode até ter uma data já um pouco antiga, mas pelo que presencio é algo muito atual. Sempre repudiei escracho, mesmo eu tendo uma posição feminista. Nunca consegui participar de forma ativa de um movimento feminista por motivos bem apresentados pela autora, o que vejo nos meios militantes feministas ou não, são essas posições quase sempre severas e pejorativas de militantes que se dizem feministas, para com as outras militantes, que se sentem atacadas e acabam desistindo da luta.
    Na universidade em que estudo é muito claro o desdém de certas feministas para com mulheres libertárias que não se intitulam de movimentos feministas qualquer que seja, é bem parecido com o que a autora diz “Atacar outras feministas é mais fácil e os resultados podem ser vistos mais rapidamente do que quando se ataca instituições sociais amorfas”, por presenciar esse fato dentro da universidade, acredito que a detonação não seja apenas dentro do feminismo, mas, também as mulheres do movimento contra as mulheres libertárias que estão fora dele, são essas ditas feministas que tem o discurso de sororidade, mas que acabam atacando as outras mulheres por motivo qualquer invetado por elas para espalhar a reputação – que a autora se refere – como um câncer resultando no afastamento das afetadas e no isolamento dentro da universidade e consequentemente no afastamento da militância.

  18. Tenho notado este texto começando a ser lido, discutido e circular mais entre jovens militantes feministas nos últimos dias…

    Por um lado, uma excelente notícia que esta reflexão auto-crítica se espraie e inspire novos processos de desconstrução / reconstrução entre elas. Excelente!

    Por outro lado, ainda é impressionante notar que algumas dessas jovens feministas radicais que estão agora, inclusive, compartilhando o texto do PP e elogiando a auto-crítica da Jo Freeman (sobre os efeitos deletérios que a prática do trashing tem para o movimento feminista como um todo), não percebam que a prática de detonação de algumas delas em relação a alguns militantes do sexo masculino, sobretudo brancos, cumpre um papel deletério muito semelhante – para os movimentos sociais como um todo.

    É como se estivessem começando a atinar que o trashing é muito ruim para os movimentos feministas, pois as desagregam, reproduz violências/estratégias de controle, e as enfraquecem; mas ainda resistissem em perceber que a detonação e os linchamentos (virtuais ou morais) em relação a companheiros (homens e brancos) acabam tendo o mesmo efeito destrutivo para os movimentos e a esquerda em geral: desagregam, reproduzem violências/injustiças/estratégias sutis de controle/disputa, e enfraquecem a todxs.

    Vamos acompanhar como este novo processo de reflexão autocrítica coletiva se desenrola, torcendo para que as discussões avancem o máximo possível fortalecendo nossos coletivos todos (a começar pelas organizações feministas, mas para além delas).

  19. Assustador que um texto que se destine a reflexão INTERNA das feministas atraia comentários de HOMENS se dizendo vitimados. É rir para não chorar. No feminismo, os homens são o “inimigo lá fora” e o texto fala sobre como as mulheres devem se juntar contra a dominação masculina. É horrendo que conceitos como sororidade e trashing sejam coisas que os homens queiram se apropriar. É como um milionário pedir solidariedade e apoio dos movimentos sem terra, o opressor não pode pedir sororidade dentro de um movimento QUE NÃO É DELE. As conversas entre mulheres feministas SÃO ENTRE ELAS, as reflexões DELAS, e não devem ser usadas por homens para tentar pautar o movimento. No feminismo, sororidade é pra mulher, não pro opressor. E não venham chorar dizendo que não são opressores: todo homem é em uma supremacia masculina.

  20. E ainda vêm chorar que o homens brancos estão sofrendo linchamento na esquerda haha. Isso tem cheiro de defesa de assediador.

  21. você vem com seu pseudônimo imperialista dizer que a bola é tua e ninguém pode jogar?
    e ainda rebaixa a mulher dizendo que os homens são a prova viva de sua superioridade…

  22. Talvez desagrade algumas pessoas, mas o fato é que este não é um texto de “reflexão INTERNA das feministas”. Pelo contrário, é uma reflexão PÚBLICA de uma militante – publicada originalmente em uma revista na década de 1970, mais recentemente disponibilizada no site da autora e, finalmente, traduzida ao português aqui.
    Quer dizer, é uma discussão do movimento social sendo colocada abertamente, para além de suas fronteiras anteriores. Lamento o que gostariam as(?) comentadoras “Sem mainsplaining” e “Mainsplaining não”, mas foi a própria Jo Freeman quem fez deste um debate aberto, de mulheres e homens, negros e brancos, jovens e velhos, ianquees e tupiniquins, gordos e magros.
    Aliás, a autora explica exatamente isso nos parágrafos iniciais do artigo! E, como fica mais claro ao longo do texto, são justamente atividades como essa (elaborar publicamente a reflexão crítica sobre o movimento) que tornam uma militante alvo de “detonação”/trashing.
    Ora, e por que? A quem interessa encerrar o debate dentro do próprio movimento, como um problema interno, a ponto de atacar tão baixo a dissidência? Interessa exatamente às burocracias internas do movimento, para quem o que mais incomoda é que os problemas sejam levados para fora. E foi Jo Freeman quem fez uma das análises mais contundentes sobre burocratização do movimento na época: “A Tirania das Organizações Sem Estrutura” (curioso, aliás, que esse artigo seja tão discutido no Brasil, enquanto este aqui só tenha sido traduzido agora, não?).
    Em “Trashing”, Jo Freeman continua a analisar as dinâmicas da burocracia no movimento feminista, apontando suas táticas mais cruéis. Mas acontece que, assim como a “Tirania das Organizações Sem Estrutura” não é um problema apenas do movimento feminista estadunidense dos anos 1970 (e sim do movimento social em geral), o “Trashing” também não acontece só entre mulheres e mulheres dentro de uma organização feminista. Mesmo com outros nomes, baseado em outras ideologias (que podem usar como pretexto raça, nacionalidade, renda, religião, sexualidade, ou qualquer outra identidade que convir), o trashing está aí sendo sempre usado como arma das burocracias e das disputas de poder no interior das organizações. Quer melhor exemplo disso que no Brasil se tem chamado de “escracho”?
    O resultado disso é a fragmentação interna das organizações que deveriam servir como ferramentas da classe trabalhadora em seu combate, é o linchamento e banimento de pessoas que poderiam lutar nas mesmas fileiras, enfim, é um motor da derrota que vem dentro.
    E mais maluco é ver que tem gente que leu este artigo, acredita concordar com ele, e já na seção dos comentários põe em prática os artifícios que estão sendo criticados. Jo Freeman coloca que: “É o que se é, e não o que se faz, que é objetado, e essas objeções não podem ser facilmente expressas em termos de comportamentos indesejáveis específicos. (…) Não existe retificação de erros passados, porque esses são tratados como sintomas e não como erros.”, e aqui nos comentários alguém diz que: “os homens são o “inimigo lá fora” (…) E não venham chorar dizendo que não são opressores: todo homem é em uma supremacia masculina.”

    No mais, espero que o debate siga, e deixo a recomendação de um outro texto que casa com este – trata do tema da política de “identidades” -, que li aqui mais ou menos na mesma época deste. Também dos EUA (se a gente sofre por aqui, imagina ser de esquerda por lá, deve ser o paraíso do multiculturalismo):
    “Teoria dos privilégios: uma política da derrota” Por Will: http://passapalavra.info/2014/12/101505

  23. Totalmente impressionante os comentários acima reclamando da “apropriação” desse texto por “homens”. Como bem indicou o Worker, por que será que não reclamam o mesmo do “Tirania das Organizações em Estrutura” que também foi escrito a partir da experiência do movimento feminista que Jo Freeman militava?
    É tão infantil quanto seria um anarquista reclamar que marxistas estão lendo Bakunin ou marxistas reclamarem que anarquistas estão lendo Marx.

    Nesses comentários temos o exemplo escancarado de como o identitarismo necessariamente exclui, é reacionário, não possui nada de progressista, a semelhança dos nacionalismos, por exemplo.

    Enquanto os zapatistas dizem “tudo para todos, nada para nós”, esse identitarismo que vimos acima em comentários diz “tudo para nós, nada para os outros”. Se não tens a nacionalidade nossa, se não tens o sexo nosso, se não falas a nossa língua, e não tens a nossa cor da pele, não mereces…

  24. Bem, dos anos 60 e 70 para cá tivemos alguns avanços no Brasil como o reconhecimento da ideologia feminista na Constituição de 1988, isto é, que as mulheres tenham os mesmos direitos que os homens à liberdade, ao respeito e à dignidade. Porém, nosso avanço como protagonistas em cargos políticos para validarmos esse avanço foi pequeno.

  25. O mais impressionante, Leo, é que as/os feministas que defendem o segregacionismo sexual não percebem, como você bem colocou, que se trata de algo muito semelhante ao nacionalismo, só que numa versão micro: enquanto o nacionalismo se preocupa com (macro)identidades, e com a criação de espaços que sirvam à sua afirmação, procura-se hoje criar espaços que sirvam ao empoderamento feminino, à afirmação de uma (micro)identidade.

  26. Discordo Manolo.

    Thrashing, na explicação da Jo Freeman nesse texto (ou seja, na concepção que ela utiliza) não se limita a escracho, no sentido político usual da palavra no Brasil. O thrashing, diz a Freeman, pode ser feito pelas costas… Acho que escracho é um instrumento de trashing, mas o trashing não se reduz ao escracho… entram as fofoquinhas, o falar mal pela frente e por trás etc.

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