Por Pierre Dardot e Christian Laval
Raramente na História um presidente da República [da França] foi tão odiado como hoje é Emmanuel Macron. Seu discurso televisionado no dia 10 de dezembro, realizado a seu pedido com pompa e circunstância, e as migalhas que ele, nesta ocasião, distribuiu com “compaixão” aos pobres — sem reavaliar de forma alguma as medidas mais injustas incentivadas ou decididas por ele mesmo, primeiro como conselheiro de [François] Hollande, depois como ministro da economia e, por fim, como presidente — em nada mudarão este fato. A explicação dessa rejeição maciça é bem conhecida: o desprezo de classe que ele demonstrou, tanto em suas ações quanto em suas palavras, volta-se violentamente contra ele mesmo, com toda a força de uma população em cólera, e não há nada tão merecido. Com a insurreição social dos Gilets Jaunes[i] o véu é retirado pelo menos por um momento. O “novo mundo” é o antigo piorado: desde novembro passado essa é a principal mensagem enviada pelas pessoas vestidas com seus coletes amarelos. Em 2017, Macron e a sua empresa “En Marche”[ii] aproveitaram o profundo desprezo das classes popular e média contra os governantes — que até então não se cansavam de piorar as condições de trabalho e a vida cotidiana delas — para ganhar, contra todas as expectativas, a corrida presidencial. Nessa conquista do topo das instituições, Macron não hesitou em usar cinicamente o registro populista do “demissionismo”[iii] e da tábula rasa para prevalecer, ele que nunca foi nada além de um “candidato da oligarquia”, e em particular da sua corporação de elite, a Inspetoria de Finanças[1][iv]. A manobra foi grosseira, mas funcionou por inércia. Macron venceu, com ideias minoritárias, devido a um duplo voto de rejeição: no primeiro turno contra os partidos neoliberais-autoritários (os gêmeos do Partido Socialista e dos Republicanos[v]) e no segundo turno contra a candidata do partido neofascista francês. Com a renovação, desde a primavera de 2017, os eleitores tiveram direito a um agravamento e a uma aceleração sem precedentes de tudo aquilo que haviam rejeitado anteriormente. Espantados, foram atingidos por uma onda de medidas que, uma após a outra, enfraqueceram o poder de compra e o poder de ação das classes popular e média. E isso em favor das classes mais privilegiadas e das grandes empresas. Pesquisas recentes sobre este ponto não se enganam: nas condenações às políticas macronianas, o recorte de classe aparece à plena luz do dia. A restauração do ISF [impôt de solidarité sur la fortune — Imposto francês sobre as grandes fortunas], o aumento do SMIC [salaire minimum interprofessionnel de croissance — salário mínimo francês] e o restabelecimento da indexação das aposentadorias à inflação são solicitações encontradas entre as principais reivindicações dos Gilets Jaunes, que vão muito além da supressão do aumento do imposto sobre o combustível e a moratória sobre o custo da eletricidade e do gás, e dizem muito sobre o significado social do movimento. Somente a propaganda desavergonhada do governo sobre as Ligas de 1934[vi], o “sedicioso” e o “faccioso”, complacentemente retransmitida pela mídia subserviente e por algumas “personalidades midiáticas” ou por alguns líderes sindicais desonestos, fez alguns acreditarem que o movimento era intrinsecamente fascista. Deve ser dito e repetido aqui com força: se a extrema-direita tentou assimilar essa cólera popular, e se às vezes foi bem-sucedida, foi apenas devido à falência da esquerda política e dos sindicatos em sua função de defesa social dos interesses da maioria. Os Gilets Jaunes, queiramos ou não, alcançaram o que trinta anos de lutas sociais não conseguiram fazer: colocar no centro do debate a questão da justiça social. Melhor, eles impuseram, e não poderia ser de forma mais clara, a questão fundamental para toda a humanidade: o vínculo entre justiça social e justiça ecológica.
Uma revolta antineoliberal
Apenas podemos compreender essa revolta social colocando-a em relação com o tipo de transformação que o poder atual pretende reforçar através do ajuste fiscal e da brutalidade dos regulamentos. A “revolução” macroniana não é nada além da implementação, de uma forma radical e precipitada, de uma concepção dominante da sociedade baseada na competição, no desempenho, na rentabilidade e no “escoamento” da riqueza de cima para baixo. Prolongando uma política constante de isenções fiscais do capital e das empresas, Macron continuou e ampliou a transferência dos encargos fiscal e social para as famílias, especialmente as mais modestas, aumentando, em nome da “competitividade”, os impostos mais desiguais que recaem sobre o consumo. Em outras palavras, é escolhendo o caminho mais puramente neoliberal que ele tem procurado transformar a França, desejando assim, para esta “revolução” que lhe serviu de programa, se fazer de bom aluno para o patronato, para os comissários europeus e para os “investidores internacionais”, tudo ao mesmo tempo. Macron não foi o primeiro e sem dúvida não será o último, mas ele queria se destacar, sendo melhor do que Sarkozy e Hollande juntos.
Sem dúvida, Macron provavelmente não tem as costas largas o suficiente e nem todos os requisitos necessários para transformar os “gauleses refratários”, os “iletrados” e os “zés ninguéns” em adeptos da “nação startup” e apoiadores da queda do custo do trabalho. Gerir o Estado e administrar o governo como um grande patrão faria em uma multinacional — de acordo com as novas normas de uma alta gestão pública convertida aos ideais capitalistas — não era suficiente. A centralização e a verticalidade da Quinta República, a repressão policial em todas as direções, a arregimentação, até a aniquilação, de uma maioria parlamentar composta por neófitos insossos e oportunistas reconhecidos, esses têm sido até hoje os meios institucionalmente poderosos, mas ainda assim insuficientes para fazer com que as pessoas aceitem a degradação de suas condições de vida e a redução de seus meios de ação, tanto no nível local quanto no nível dos locais de trabalho. A vida real prevaleceu sobre as ilusões de uma oligarquia cega pela sua “verdade” e que tinha acreditado que sua hora tinha chegado pela eleição milagrosa de um presidente infantilmente embebido da onipotência política que as instituições fundamentalmente antidemocráticas lhe deram. A insurreição social dos Gilets Jaunes, interrompendo a máquina neoliberal de Macron, mostrou os limites disso que se deve chamar de bonapartismo gerencial.
Uma última manobra?
Essa prática autoritária do governo fez com que o neoliberalismo chegasse a um ponto de ruptura. Sem dúvida, os atuais governantes, apoiados pelo patronato, estão tentando uma última manobra cuja natureza já podemos adivinhar, e que consiste em utilizar a crise social e política para reforçar a neoliberalização da sociedade de maneira mais sutil do que a “blitzkrieg” [guerra-relâmpago] da primeira temporada de Macron. Nós já conhecemos os principais argumentos. O primeiro, com o apoio sem nenhum escrúpulo deontológico de todos os canais de televisão e rádio, é o habitual chamado à ordem diante da “violência” atribuída unilateralmente aos manifestantes, naturalmente cúmplices dos jovens delinquentes que se entregam ao saque ao final das manifestações. Assustar e ao mesmo tempo solicitar a ajuda de todas as forças “responsáveis” não é apenas exonerar o governo de suas próprias responsabilidades, mas também esconder todas as violações das liberdades mais fundamentais como a de se manifestar (duas mil prisões arbitrárias), e justificar os métodos violentos usados pela força policial contra os manifestantes (especialmente o uso perigoso de flash balls e de granadas ditas de dispersão). A partir deste ponto de vista, a humilhação coletiva imposta aos estudantes secundaristas de Mantes-la-Jolie recorda os piores métodos de colonialismo, na continuidade do “tratamento” da revolta de 2005, e faz as palavras de Ségolène Royal particularmente revoltantes. Já o segundo argumento consiste em colar nos manifestantes tudo o que, em suas reivindicações díspares, vai no sentido de uma redução do gasto público. Essa é a tática já escolhida por Geoffroy Roux de Bezieux, porta-voz da MEDEF [Mouvement des entreprises de France, maior federação patronal francesa] sem hesitar em se vangloriar da eficácia dos cortes de impostos de Trump! Fazer dessa grande mobilização social um movimento neopoujadista[vii] de pequenas empresas esmagadas por impostos e encargos sociais, impulsionado pela “sobrecarga” fiscal, mais do que pela injustiça social, tem a vantagem de fazer acreditar que o único meio de aumentar o poder de compra consiste em reduzir a parte socializada da renda e em diminuir a oferta de serviços públicos após uma redução nos impostos (porque não está em questão, no atual contexto, reduzir as despesas militares e policiais). A menos que, de uma maneira mais sarkoziana, e este parece ser o caminho escolhido por Macron, isto sirva para incentivar as horas extras livres de impostos, um sonho da MEDEF. Evita-se, evidentemente, tocar nos privilégios fiscais dos mais ricos, na liberdade concedida à evasão de riqueza, nos escândalos do CICE e do CIR, dispositivos que, sem contrapartida, controle ou constrangimento, consistem em transferir dezenas de bilhões para empresas que não precisam. Essa manobra exigirá a nomeação de bodes expiatórios, evidentemente. Por que não mirar, não os “ricos”, como provavelmente a maioria dos Gilets Jaunes gostaria, mas os servidores públicos da base, mais numerosos, mais bem pagos, mas não produtivos o suficiente? Por que não lhes pedir alguns sacrifícios extras em nome da solidariedade com os mais pobres? Sabemos que entre “os corpos intermediários” sindicais há alguns que já têm a caneta na mão para ratificar os retrocessos sociais mais flagrantes. Não se trata, menos ainda, e isto não é o mais escandaloso do discurso presidencial, de colocar no centro do debate a “questão da imigração”, mesmo do Islã, embora este não seja, de todo o coração, o discurso dos Gilets Jaunes.
As duas vias
No entanto, nada aconteceu após a intervenção televisionada de Macron do dia 10 de dezembro. Nada diz que a raiva voltará rapidamente para a cama. Seria bastante surpreendente se o poder fosse abalado. Dois outros caminhos logo se abrirão à sociedade francesa à medida em que também se abram para todas as sociedades do mundo. A via nacionalista, protecionista, hiperautoritária, antiecológica, de Trump, Bannon, Salvini, Le Pen, Bolsonaro, Orban ou Erdogan, que prosperam por todo o mundo explorando as frustrações e ressentimentos gerados pelo neoliberalismo. Longe de ser uma alternativa, esse caminho é uma nova versão histórica, radicalmente antidemocrática, em um momento em que as consequências sociais, políticas e ambientais pautam a questão da mudança substantiva do sistema econômico e político. Esse caminho serve para nos fazer acreditar que a restauração de um Estado-nação governado com mão de ferro, dotado de todos os seus atributos de soberania interna e externa, capaz de fechar as suas fronteiras aos imigrantes, de impor sobre a população as leis mais duras das finanças e do mercado e de recusar todos os acordos internacionais sobre o clima, é a única maneira de melhorar a situação social da grande maioria da população. Trump é hoje o campeão versátil desta linha e ele é muito auxiliado, neste papel, por Macron.
O caminho democrático, ecológico e igualitário, que se afirmou há décadas em todas as lutas sociais e de resistência ao neoliberalismo, no movimento de justiça global [altermundismo], no movimento das praças, em muitos laboratórios do comum, é o único capaz de evitar o colapso dos ecossistemas e a desintegração e fragmentação das sociedades. Sua única falha é que ainda não tem uma expressão majoritária e uma nova forma política. É que este caminho, de início, sofre a traição da esquerda governamental, especialmente a “social-democrata”, e é hoje tragicamente enfraquecido por dirigentes de organizações mais preocupados com seus próprios interesses de boutique do que com sua responsabilidade histórica.
A questão mais atual é, portanto, saber se o levante dos Gilets Jaunes permitirá ou não a linha democrática, ecológica e igualitária superar a linha identitária, nacionalista e de conotações fascistas que ganhou na Itália e agora no Brasil.
A recusa da representação política e a auto-organização do movimento
Tem sido observado frequentemente que o movimento reúne indivíduos de diferentes classes, de diferentes idades, de diferentes opiniões. Alguns desvios de tipo racista, misógino ou francamente fascista ocorreram, e ainda podem acontecer aqui e ali, ou até mesmo se desenvolver. Saques e quebras de lojas por gangues de jovens ocorreram em alguns bairros da capital e nos centros de outras cidades, que serviram de álibi para desacreditar o movimento social. Esta ainda não é a lógica profunda do movimento, que é diverso, plural e muitas vezes animado na base pelas mulheres. Se um iluminado isolado convocou um general ao poder, ele não é, de modo algum, o representante legítimo de um movimento que recusa precisamente qualquer usurpação da representação. A lógica atual e profunda do movimento não é a de contar com um líder encarnando o povo, desagradando teóricos do populismo para os quais é o representante que faz o povo e lhe dá unidade.
Não se trata mais de renovar a “representação nacional” após a dissolução, desagradando aos líderes da France insoumise ou do Rassemblement national[viii] que buscam canalizar o movimento para o campo parlamentar. Todos sabem, ou deveriam saber, que neste jogo é o partido neofascista que ganhará o prêmio. Sem prejulgar os resultados do movimento dos Gilets Jaunes, a primeira lição que podemos identificar é a capacidade instituinte que eles têm mostrado, recusando antecipadamente qualquer assimilação e somente confiando em sua própria força coletiva para se fazer ouvir e para formular suas reivindicações sem o cálculo tático do aparelho, a partir das únicas condições insuportáveis vividas por indivíduos reais e até então invisíveis. O que foi largamente apresentado pelas antenas e pelos estúdios de TV como a principal fraqueza do movimento, sua “incapacidade” de se fazer representar, ainda é a sua característica mais marcante, de que se deve compreender o escopo: não é somente uma “incapacidade” da qual se deve falar, é uma recusa, em princípio, de qualquer representação. E essa recusa é plenamente justificada. Há aí uma consequência de uma profunda crise de legitimidade dos governos, dos políticos eleitos, da mídia e até mesmo dos sindicatos, crise provocada e exacerbada pela radicalização neoliberal das oligarquias, quanto a isso há poucas dúvidas. Mas há outro aspecto, que raramente é comentado e que, no entanto, é a contrapartida positiva dessa recusa de qualquer representação. É que diante desse recesso de uma democracia representativa que não mais representa a sociedade, a resposta mais espontânea dos Gilets Jaunes tem sido a auto-organização das ações, das barreiras, dos bloqueios e das manifestações, até a elaboração conjunta, durante as reuniões e as assembleias, de reivindicações coletivas. Esta é uma formidável lição para os partidos e organizações sindicais, cujo resposta tradicional é supervisionar as massas e jogar de cima para baixo as demandas, as consignas e as palavras de ordem. Sem dúvida não é mais o Nuit Debout[ix], mas o ponto comum com as ocupações das praças é o desejo de tomar as questões coletivas em suas próprias mãos. O apelo dos Gilets Jaunes da Commercy é exemplar do espírito de democracia direta que anima os comitês de base. Vale a pena citar grandes trechos:
Aqui em Commercy, em Meuse, funcionamos desde o início com assembleias populares diárias, onde cada pessoa participa igualmente. Organizamos bloqueios da cidade, estações de serviço e barreiras com filtros. Durante o processo construímos uma cabana na praça central. Nós nos encontramos lá todos os dias para nos organizar, decidir sobre as próximas ações, dialogar com as pessoas e dar as boas-vindas àqueles que se juntam ao movimento. Também organizamos “sopas solidárias” para viver belos momentos juntos e nos conhecermos. Em plena igualdade. Mas agora o governo e algumas partes do movimento propõem nomear representantes por região! Ou seja, algumas pessoas se tornariam os únicos “interlocutores” das autoridades públicas e resumiriam nossa diversidade. Mas nós não queremos “representantes” que acabem falando por nós! (…) Não é para entender melhor nossa raiva e nossas demandas que o governo quer “representantes”: é para nos enquadrar e nos enterrar! Tal como acontece com a liderança do sindicato, ele procura intermediários, pessoas com quem poderia negociar. Quem ele poderá pressionar para aplacar a erupção. Pessoas que ele poderá em seguida cooptar e colocar para dividir o movimento e para enterrá-lo.
Mas fazem isso sem contar com a força e inteligência do nosso movimento. Sem contar que estamos pensando, nos organizando, melhorando nossas ações e deixando-os assustados, enquanto amplificamos o movimento! E acima de tudo, não costumam mencionar que há uma coisa muito importante, que em toda parte o movimento dos Gilets Jaunes reivindica de várias formas, muito além do poder de compra! Esta coisa é o poder do povo, pelo povo, para o povo. É um novo sistema onde “aqueles que não são nada”, como dizem com desprezo, recuperam o poder sobre todos os que se empanturram, sobre os governantes e sobre os poderes do dinheiro. É a igualdade. É a justiça. É a liberdade. Veja, é o que nós queremos! E começa da base!
Se nomearmos “representantes” e “porta-vozes” isso acabará por nos deixar passivos. Pior: vamos reproduzir rapidamente o sistema e funcionar de cima para baixo assim como os crápulas que nos dirigem. Estes autoproclamados “representantes do povo”, que estão enchendo seus bolsos, que fazem leis que apodrecem a vida e que servem aos interesses dos ultra-ricos! Não coloque o dedo na engrenagem de representação e da assimilação. Este não é o momento de confiar nossa palavra a um pequeno punhado, mesmo que eles pareçam honestos. Que eles nos escutem a todos ou que não escutem a ninguém!
Desde Commercy, portanto, pedimos a criação em toda a França de comitês populares, que funcionam em assembleias gerais regulares. Nos lugares onde o discurso é livre, onde nos atrevemos a nos expressar, nos exercitar, nos ajudar. Se deve haver delegados, é ao nível de cada comitê popular local dos Gilets Jaunes, o mais próximo da palavra do povo. Com mandatos imperativos, revogáveis e rotativos. Com transparência. Com confiança.
Qualquer um que tenha visto os autores deste apelo se revezando na frente do microfone para evitar qualquer captação das falas por um “representante” compreende instantaneamente a profundidade da demanda democrática que anima esse movimento. Mais uma vez, é muito mais que desconfiança, é uma rejeição da substituição pela qual uma minoria se arroga o direito de falar e de agir no lugar da maioria. Devemos saudar a grande clarividência dessa declaração: a partir do dia 6 de dezembro, os “representantes” sindicais, com a notável exceção da [União Sindical] Solidaires, se apressaram para vir em auxílio de um Macron totalmente isolado e tonto, o que não deixou de provocar uma reação de revolta dentro da própria CGT [Confédération Générale du Travail, uma das maiores confederações sindicais da França]. Os famosos “corpos intermediários” estão totalmente alinhados com a lógica da representação e é por isso que eles só podem ajudar Macron com vistas a recuperar o controle, longe de serem capazes de encarnar um resultado positivo da crise do regime. É claro que nada garante que as possibilidades abertas por essa democracia em ação se realizarão. A única coisa que importa neste momento é que vale a pena lutar por essa conquista. Deixemos para os neoblanquistas da “insurreição vindoura” e os outros celebrantes da “violência pura” seus desprezos pela invenção democrática. Os desordeiros que se enxertam nas manifestações e que não participam das decisões coletivas contribuem igualmente para despossuir o movimento de sua democracia interna. A questão é saber se o espírito profundamente democrático do movimento será profundo o suficiente para se perpetuar e imunizar a sociedade das tentações fascistas que poderiam se desenvolver em caso de seu fracasso e decadência. E essa questão por si só obviamente engaja a nossa responsabilidade, toda nossa responsabilidade.
O quietismo político é um erro
Um estranho raciocínio revela o profundo embaraço de uma parte da assim chamada esquerda “radical” diante desse movimento singular e sem precedentes, que frustra todas as categorias de seu léxico político convencional. Consiste em argumentar que tal movimento “arrisca” o caminho errado, reacionário ou fascista, na medida em que não apresenta todas as garantias necessárias para nos tranquilizar sobre seu futuro político. É essa avaliação de risco que comanda uma atitude de cautela, quando não uma recusa em se comprometer com aqueles que não atendem aos critérios que nos permitem reconhecer que estamos lidando com o “povo”; na verdade, aqueles que trazem consigo os valores autênticos da esquerda identificam-se com seus objetivos e suas lutas, e não correm o risco de serem arrastados pela encosta do fascismo.
Esse raciocínio exige duas observações. A primeira diz respeito ao uso da palavra “povo”[x]. Obviamente, ele está investido aqui com um significado muito ideal: ele é “o” povo no singular, com quem, em comparação, as pessoas reais, necessariamente impuras e variadas, fazem pálida figura, e são chamadas a se adequarem a esse ideal para merecerem esse nome de prestígio. Se não tiver sucesso, ele justifica por essa falha que alguém se desvia dele e o deixa para si mesmo. Infelizmente, esse povo ideal não existe, exceto no céu quase platônico do esquerdismo inalterável. Não é mais do que “o” povo ouvido como “comunidade de cidadãos”, tão caro à chamada tradição “republicana” e ritualmente ressuscitado a cada grande eleição, ao mesmo tempo em que é a mistificação do “interesse geral”, que não é nada além de “um” povo construído sob medida por meio das grandes instituições políticas existentes para o maior benefício da oligarquia.
Deve ficar claro: as pessoas reais nunca são o povo ideal. Deixem que os burocratas e outros vanguardistas notórios sonhem com o povo ideal. No rescaldo da revolta popular de 17 de junho de 1953 em Berlim Oriental, Brecht já estava perguntando: “Não seria mais simples então o governo dissolver o povo e eleger outro?”[2] Exceto quando se trata da não menos extravagante demanda de “mudança de povo!”, o que certamente protege contra toda decepção, deve-se resolver a heterogeneidade e a impureza do povo real. Todo o resto é apenas diversão. Devemos renunciar à distinção entre “povo social” e “povo político”? O povo social é definido pela oposição à elite ou à oligarquia, pela pobreza e miséria, mas é nada menos que homogênea e unificada, tanto assim que é atravessado por tensões e contradições, como vemos precisamente hoje. O verdadeiro povo político não são as pessoas que votam nas eleições, nem as pessoas sociologicamente definidas pela pobreza ou miséria, é o povo que age, o povo-ator que inventa na ação novas formas de auto-organização.
Esse povo nunca é “o” todo, ainda é apenas uma parte, mas é essa parte que abre novas possibilidades ao “todo”, isto é, a toda a sociedade. É essa parte que está em movimento hoje, e isso é uma determinação suficiente. O “povo da esquerda” é apenas uma falsa invenção dos antigos partidos cuja única função é remobilizar sua base eleitoral na aproximação de certas consultas, ou quando são colocadas em dificuldades. Mais geralmente, existem apenas “pessoas”, cuja irrupção é imprevisível e cada vez singular, e o Todo-Um é apenas uma ilusão mortal. A coincidência das pessoas sociais e do povo político em uma “grande noite” de fantasia nada mais é do que um mito de que a esquerda crítica deve se desfazer de uma vez por todas.
A segunda observação refere-se à conclusão prática que este argumento pretende justificar. Por mais surpreendente que possa parecer, tal raciocínio não é isento de certa semelhança com um argumento muito antigo, conhecido pela filosofia grega como o “argumento preguiçoso” ou “inerte”. Cícero explica isso em seu Tratado sobre o destino, afirmando que, se o deixarmos, permaneceríamos toda a nossa vida em completa inação. Em essência, ele diz: se você está doente e seu destino é se curar, você se curará, chame você o médico ou não; mas se o seu destino não é se curar, quer você chame o médico ou não, você não vai se curar. Mas o seu destino é curar-se ou não curar-se. É, portanto, em vão que você chame o médico[3]. Vemos como esse argumento merece o nome de argumento preguiçoso: justifica a abstenção de qualquer ação e inclina-se ao quietismo (que vem de quies, que significa repouso em latim). Protestamos contra tal abordagem, argumentando que aqueles que advertem contra o perigo da deriva da direita do movimento se recusam a invocar o destino ou a fatalidade e limitam-se a especular em torno de riscos, isto é, de possibilidades simples. Mas a questão toda é precisamente qual atitude adotar em relação ao que, no momento, são meras “possibilidades”.
A virtude da abordagem proposta é destacar a atitude quietista que deriva dessa suposição remota de possibilidades. Raciocinamos como se a realização de uma possibilidade em vez de outra fosse completamente independente de nossa própria ação. Dizemos a nós mesmos sem ousarmos confessar: se a pior das possibilidades for realizada, perceber-se-á que intervimos ou não para tentar evitá-lo. É aqui que encontramos o “sofisma preguiçoso”. Nós nos colocamos na posição de alguém que se livra antecipadamente de sua própria responsabilidade. A premissa em que essa atitude se baseia é a seguinte: qualquer que seja a possibilidade que eventualmente aconteça, mesmo que seja a pior, não temos nada a ver com isso. Ou essa possibilidade acontecerá, ou não acontecerá, mas em ambos os casos é inútil intervir. Se por acaso a possibilidade acontecer, rejeitamos antecipadamente a responsabilidade pelas inadequações e ambiguidades do movimento.
Abster-se de intervir na prática não é simplesmente observar de fora o curso de uma evolução, é, defendamos ou não, favorecer a realização da possibilidade mais perturbadora e ameaçadora, a que foi especificamente encarregada de justificar a recusa em agir. É mais fácil dizer “eu te disse” do que nós mesmos contribuirmos diretamente para tornar essa possibilidade negativa uma realidade. Hoje, especialmente, é aconselhável alertar contra tal atitude: o quietismo político é o jogo do adversário, e é por isso que é imperdoável. A urgência manda agir no movimento tal como está, com os Gilets Jeunes, tomando-os pelo que são, e não pelo que gostaríamos que fossem, apoiando resolutamente tudo o que vai na direção da auto-organização e democracia. Insistimos: nada está dado ainda. O presente é novo, o futuro está aberto e nossa ação é importante, aqui e agora. Ato V.
Pierre Dardot (n. 1952) é filósofo e pesquisador no laboratório Sophiapol da Universidade Paris-Ouest Nanterre-La Défense, especialista no pensamento de Marx e Hegel. Christian Laval (n. 1953) é um pesquisador francês da história da filosofia e da sociologia na Universidade Paris Nanterre. Seus trabalhos centram-se em três grandes temas: a história do utilitarismo, a história da sociologia clássica e a evolução dos sistemas de ensino. Este artigo foi traduzido pelo Passa Palavra a partir do original disponível aqui.
Notas dos autores
[1] Laurent Mauduit, «Emmanuel Macron, le candidat de l’oligarchie», 11 jul. 2016.
[2] Bertolt Brecht, «La solution», in Anthologie bilingue de la poésie allemande, 1993, La Pléiade, p. 1101.
[3] Cicéron, Traité du Destin, Les Stoïciens, 1978, La Pléiade, p. 484.
Notas da tradução
[i] Gilets Jaunes pode ser traduzido por “coletes amarelos”. O movimento ganhou tal apelido devido à vestimenta que todo motorista francês deve levar em seus veículos a ser utilizada em caso de acidente. Os manifestantes passaram a vestir coletes amarelos em todas as manifestações desde então.
[ii] En Marche! é o movimento/partido social-liberal, de centro, fundado em 2016 e hoje encabeçado por Stanislas Guerini, ao qual é filiado Emmanuel Macron.
[iii] “Demissionismo” foi a única tradução aproximada para o neologismo francês dégagisme. Trata-se de uma referência ao verbo dégager, que pode ser traduzido como “render o posto/substituir” ou “demitir”, nos dois casos dando a entender a liberação de alguém dos ônus de determinada função. Ainda que “demitir” não contenha os muitos significados e sutilezas de “dégager”, foi a melhor tradução possível para este neologismo político.
[iv] A Inspection Générale des Finances é um dos órgãos da alta administração pública francesa com maior poder e prestígio. É também a origem de Emmanuel Macron.
[v] Republicanos é um partido político liberal-conservador francês situado ora no centro-direita, ora na direita (a depender da conjuntura). Seu fundador é Nicolas Sarkozy, e seu atual presidente é Laurent Wauquiez.
[vi] Referência às ligas de extrema-direita atuantes na crise de 6 de fevereiro de 1934, quando grupos de direita, associações de ex-combatentes e ligas de extrema-direita como a Ação Francesa de Charles Maurras, a Solidariedade Francesa de François Coty, o Facho de Georges Valois, a Liga das Juventudes Patrióticas de Pierre Taittinger, os Militantes do Rei de Maurice Pujo e outras protagonizaram tumultos na praça da Concórdia que resultaram na morte de 15 a 37 pessoas (a depender da fonte), em 2 mil feridos e, depois de novas manifestações nos dias 7, 9 e 12 de fevereiro, na queda do segundo governo Daladier. Os eventos alertaram a esquerda para o perigo fascista na França, e consolidaram entre a extrema-direita francesa os métodos violentos e paramilitares.
[vii] O poujadismo vem do nome de Pierre Poujade e é um movimento político e sindical francês surgido em 1953 na região de Occitânia, sudoeste do país, e que desapareceu em 1958. Ele se caracteriza pela defesa dos pequenos comércios e dos artesãos.
[viii] France insoumise (“França insubmissa”) é um partido francês fundado em 2016, situado entre a esquerda e a extrema-esquerda (a depender da conjuntura), sendo Jean-Luc Mélenchon a principal figura pública. Rassemblement national (“Reunião nacional”) é um partido francês de extrema-direita atualmente presidido por Marine Le Pen.
[ix] Sobre o movimento Nuit Debout (“Noite em claro”) o Passa Palavra publicou em 2016 a série Nuit Debout: na primavera de 2016, um movimento inesperado, cuja leitura recomendamos.
[x] Os autores exploram a dualidade semântica da palavra francesa peuple, que significa tanto “povo” quanto “pessoas”. Embora a palavra “povo” também possa ser entendida com a mesma dualidade, seu significado como “ajuntamento de pessoas” é muito menos marcado na língua portuguesa que na língua francesa, e seu significado como “coletividade dos indivíduos sujeitos a um Estado-nação” é bem mais destacado. Por isto optamos por desfazer o jogo semântico dos autores a bem da melhor compreensão do texto, traduzindo peuple ora como “povo”, ora como “pessoas”, a depender do contexto.
Daquilo que é possível entender pelas informações que conseguimos acessar sobre os coletes amarelos daqui do Brasil, esse com certeza parece um movimento muito importante. E complexo, ambíguo, simultaneamente potente e perigoso, talvez como foi a paralisação dos caminhoneiros. Simpatizo com os autores desse texto quando fazem um certo apelo à militância para que se envolva no movimento. Parece o correto a se fazer mesmo. Por outro lado, começo a ficar desconfiado quando vejo se proliferarem textos que, como este, apresentam uma visão muito otimista e positiva do processo. Não seria isso um sintoma de uma domesticação da luta em curso? Será que os coletes não estão correndo o risco de perder alguma dimensão subversiva que traziam e que incomodava inclusive a esquerda aspirante a gestora? – e que, nesse sentido, o envolvimento dessa militância de esquerda para “disputar” represente, na prática, uma proposta de cooptação “por dentro”? Por exemplo: soa estranho os autores falarem de fortalecer uma linha “ecológica” entre os coletes amarelos quando a reivindicação inicial era justamente contra a taxa ambiental no combustível. Não havia algo importante nisso que agora está sendo abandonado, recusado?
Pegando esse trecho do Gilets Jaunes da Commercy
“Se nomearmos “representantes” e “porta-vozes” isso acabará por nos deixar passivos. Pior: vamos reproduzir rapidamente o sistema e funcionar de cima para baixo assim como os crápulas que nos dirigem. Estes autoproclamados “representantes do povo”, que estão enchendo seus bolsos, que fazem leis que apodrecem a vida e que servem aos interesses dos ultra-ricos! Não coloque o dedo na engrenagem de representação e da assimilação. Este não é o momento de confiar nossa palavra a um pequeno punhado, mesmo que eles pareçam honestos. Que eles nos escutem a todos ou que não escutem a ninguém!”
Esse hábito de não eleger democraticamente algum porta-voz do movimento sempre resultará na construção de um representante escolhido ao gosto das mídias e das classes dominantes… Como diabos um porta voz escolhido pelas assembléias locais viraria da noite pro dia uma engrenagem da democracia representativa? Parece que o trauma do burocratismo gerou um irmão gêmeo igualmente problemático: a total falta de compreensão de que 1) lideranças não necessáriamente são figuras centralizadoras; elas muitas vezes cumprem papel de mobilizar organizar e repassar importantes acúmulos para os que estão começando do zero; 2) se o movimento não escolhe um representante, a classe dominante vai escolher um abobado aleatório pra vomitar asneira reacionária.
Sub Comandante Marcos nessas horas seria um centralizador pra essa lógica ensimesmada.
Dois problemas: que o movimento possa ser cooptado pela esquerda, não significa que ele queira/poderá ser. Na verdade, muito mais provável é que ele seja cooptado pela direita, uma vez que o discurso ecológico, identitário, etc, se tornou incorporado pelo neoliberalismo e, principalmente o ecológico, nada mais faz que encarecer os produtos consumidos pela população e aumentar impostos em geral, algo que o próprio governo Macron e o de seus antecessores, não deveria fazer com uma França que vê sua desigualdade crescer (https://publications.banque-france.fr/en/evolution-wealth-inequality-france-1800-2014).
Quando ao fato do movimento não ter porta-voz, é realmente problemático. Em primeiro lugar, se Macron fosse minimamente habilidoso, já teria se disposto a conversar com o porta-voz do movimento e este diria que não há um, então ele poderia ter escolhido um porta-voz para dialogar, e deixado o resto do movimento falar contra este porta-voz. Essa sequência teria sido um belo começo para deslegitimar o movimento e um motivo para Macron dizer que é um movimento que se recusa a conversar; justificaria a polícia, pelo menos.
Macron, contudo, é um tecnocrata, e como todo, não consegue pensar em nada disso, nem perceber a importância de um bom assessor político que não seja um tecnocrata.
Acho difícil que o movimento consiga consolidar as concessões que Macron fez e fará; assim como demonstra uma fraqueza discursiva em não ter porta-voz, porque a falta de um discurso coeso limita o movimento à sua “potência” política, e não o permite se transformar em ator político (com identidade definida). Essa difusão pode ter suas vantagens, mas claramente faz do movimento algo temporário e muito cooptável pelos outros atores políticos.
As pessoas precisam lembrar que não é o Estado que fará (e nem deve) o esforço para “compreender” o movimento, suas pautas e dinâmicas. O Estado não fará nada mais do que deve fazer; tentar restaurar a ordem social com o mínimo de concessões possíveis. E o que é um movimento num país de bem-estar social europeu de primeiro mundo frente ao Estado? A parte fraca.
Uso os mesmo argumentos de combate ao “argumento preguiçoso” para votar e me opor a campanha do “voto nulo”. Sabendo que o voto em candidatos nas eleições representativas do Estado capitalista é de certa forma “quase” nulo, eu acabo por considerar que há um saldo positivo e negativo sempre. Aprofundando, não me sirvo do argumento da chamada “democracia direta”, pois esta acaba em nos tornar representativos de nós mesmo, assim como a autogestão sob o capital acaba por ser um auto-exploração, numa sobreposição da forma mercadoria ao conteúdo classista.