Por Companhia Antropofágica

Notas e ruídos da sinfonia racista: cenas inverossímeis do real

Quem tomasse contato com um relato fidedigno acerca do ocorrido no palco do Teatro Sérgio Cardoso, na cerimônia de entrega dos troféus aos melhores da APCA (Associação Paulista de Críticos Teatrais) de 2023, na última terça-feira, 02 de julho, poderia facilmente dizer: isso não pode ter sido assim, é muito caricato… a realidade, contudo, já há algum tempo, tem desbancado a ficção, por seu caráter absurdamente explícito e explicitamente absurdo. Por isso, e infelizmente, proliferam narrativas as mais estapafúrdias, mas tendem a emplacar somente aquelas que corroboram com o status quo, veiculadas pela grande mídia, e que confirmam o senso comum (hegemônico), independentemente da sua veracidade. Neste caso, a narrativa ideológica de que estamos diante de um grande “mal-entendido”, de “uma coisa tão boba”, já que “não haveria motivo para (…) constranger ninguém”, para citar as palavras de um dos envolvidos. Em suma, a de que a “acusação de racismo” seria “inaceitável”, uma vez que não haveria espaço para racistas em um evento que “defende direitos iguais para todos”, como consta em um “comunicado” feito pelos organizadores da premiação.

Nós, da Companhia Antropofágica, nos sentimos na obrigação de vir a público opor a essa versão dos fatos — oficial e falsa — uma outra, nossa. Não se trata de uma narrativa alternativa, mas antes de uma crítica sobre nossa condição cotidiana, enquanto país, no que diz respeito à maneira como pessoas racializadas são tratadas. Ela se fará em dois momentos distintos, complementares e necessários, em cuja dialética apostamos. Primeiro, um relato reflexivo ao qual se segue um ensaio.

Parte 1

“Ao chegar ao Teatro, nos reunimos para ver o texto de agradecimento que leríamos juntos ao receber o prêmio. Um dos integrantes nos explicou o protocolo do evento que havia sido enviado pela produção do prêmio por e-mail: “vamos receber a estatueta no palco e devolver na coxia”.

O teatro foi a última categoria a receber a premiação, e nós fomos o último grupo a fazer os agradecimentos. Subimos todos, no espírito de coletividade, 32 pessoas no palco, da Antropofágica.

Eu estava atrás, ao lado direito, perto da coxia. Um integrante da Antropofágica estava ao meu lado com uma das duas ou três estatuetas que estavam passando de mão em mão. Pedi a estatueta para tirar uma foto. Tirei três fotos, e a bateria do meu celular acabou. Eu tinha um carregador na minha bolsa. Devolvi a estatueta, tirei a bolsa do ombro, abri-a, pluguei o carregador no celular, coloquei o celular na bolsa, fechei e devolvi a bolsa ao ombro.

Um momento depois, alguém me chamou do lado do palco — não reconheci quem era. Ele me explicou que era preciso devolver a estatueta, que era cênica. Respondi a ele que eu já sabia disso, e que ele deveria ver com quem estava a estatueta, pois não estava comigo. Imediatamente ele apontou para alguém que estava atrás dele e disse: “ele me disse que você colocou o prêmio na bolsa”.

O que eu poderia responder? Isso já havia sido dito… Se ele duvidava, só havia uma resposta possível, abrir minha bolsa e mostrar a ele que meu gesto foi de guardar o celular e não a estatueta.

Ele empalideceu e me pediu mil desculpas. Eu fiquei constrangido por ter sido interpelado no palco, durante a entrega da premiação, e de estar me movimentando num momento em que deveria estar em silêncio respeitoso à fala dos outros colegas que agradeciam pelo prêmio, disse apenas a ele que não, eu não desculpava. Não tenho obrigação. Me recolhi e fiquei quieto, de costas para o sujeito, me controlando para não ficar triste ou com raiva, para não estragar a alegria dos meus amigos.

Um integrante da Antropofágica que viu tudo falou ali na hora com outros integrantes sobre o que acontecera, e o grupo decidiu se pronunciar ali mesmo. Lemos o texto que estava preparado, de nosso agradecimento. Devolvemos o prêmio, conforme o protocolo. Procurei o homem que me havia interpelado e não o encontrei em lugar nenhum. Ele sumira.”

Parte 2

Não faz muito tempo uma furadeira foi confundida com uma arma; pouco tempo depois foi a vez de um guarda-chuva ser tomado por fuzil; recentemente, um pedaço de madeira e até mesmo um saco de pipoca ludibriaram as forças policiais — todos esses equívocos culminaram na morte de pessoas negras; naqueles já julgados pelo poder público, os assassinos foram inocentados. A lista dos ditos “ruídos” é tão extensa que seria o caso de se perguntar se tais erros de interpretação não são a regra, mais do que a exceção.

Cumpre, nesse sentido, explicitar o óbvio: houve, sim, um mal-entendido. Sempre há… Mas ele, ao contrário do que se poderia pensar, não desmente supostas atitudes racistas; ao contrário, as revela. Em um país em que o mito da miscigenação foi durante tanto tempo a forma pela qual as relações raciais foram entendidas, é somente naquilo que escapa à razão, naquilo que dribla as boas intenções, que podemos encontrar a realidade que tanto se tenta esconder. Para sondar o insondável, para chegar ao recalcado, precisamos de um olhar mais sensível, atento aos detalhes e disposto a fazer perguntas, mais do que a dar respostas. Mas precisamos também de fatos, não de suas versões distorcidas e interessadas.

Por que a abordagem se deu durante a entrega do prêmio, e não depois dela?

Não passou pela cabeça dos bem-informados que privar um ator de ouvir os agradecimentos de seus colegas, em nome de um suposto mal-entendido, seria, por si só, já um constrangimento?

Qual era o objetivo dos bem-intencionados ao não se satisfazerem com a resposta, dada pelo ator e omitida até agora, de que o prêmio não estaria com ele, se não forçá-lo a uma revista disfarçada e aparentemente voluntária?

Qual o sentido de compartilhar a informação de que alguém teria visto o troféu sendo colocado dentro da bolsa, se não forçá-lo a uma revista disfarçada e aparentemente voluntária?

Por que um homem negro, no momento em que recebe um prêmio, abriria sua bolsa voluntariamente?

Se tantas pessoas estavam mal-informadas em relação à natureza dos troféus, por que não informar a todos os presentes?

Por que o homem que interpelou o ator e disse querer se desculpar não ficou para elucidar, ali na hora, o suposto “mal-entendido”?

Não nos interessa, neste caso, cancelar ou linchar ninguém, nem pessoalizar os acontecimentos. Mas precisamos encarar a realidade: há várias recorrências em todos esses mal-entendidos, a primeira delas é certamente a imagem do negro como suspeito padrão, como aquele ser perigoso, sempre propenso a toda sorte de contravenção, aquele, ao fim e ao cabo, que precisa ser vigiado e cuja palavra não é confiável. Essa é uma imagem preconceituosa e racista, impregnada no inconsciente deste país e responsável pelas inúmeras violências a que estão sujeitos os mais vulneráveis no Brasil. Do enquadro em um espaço “sem seguranças” até o genocídio policial, a gramática é semelhante; diante da incerteza em relação a pessoas negras, não se deve hesitar: atira primeiro, pergunta quem é depois. Primeiro revista, depois se desculpa pela desconfiança. Os ditos mal-entendidos tendem, desse modo, a se resolver sempre em prejuízo das vítimas, e não de seus algozes.

O fato de esse episódio ter se dado justamente em um espaço plural, cuja defesa aberta e necessária da diversidade se faz não só com palavras politicamente corretas, mas também com o reconhecimento genuíno daqueles que merecem estar representados nesse espaço, só prova o quanto estamos diante de uma questão estrutural.

Diante disso, escrevemos esta carta como um ato antirracista; mais um entre tantos outros que vimos e recebemos de maneira solidária nos últimos três dias — e os quais gostaríamos de publicamente agradecer. Que não se restrinja à condenação de um ou outro indivíduo, mas que seja condenação inexorável do racismo estrutural. Que possamos propor, junto a outras coletividades, a outros movimentos sociais, a outros grupos de teatro, ações em que o racismo possa ser banido, junto com suas outras expressões congêneres. Convidamos, por fim, a todos aqueles que queiram se juntar a nós a fazer esta carta circular.

Saudações Antropofágicas

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