Por Passa Palavra
O contexto
A 7 de Setembro, o primeiro-ministro de Portugal, Pedro Passos Coelho, dirige-se ao país em direto [ao vivo], antes de um jogo da seleção nacional de futebol. Nesta intervenção, anuncia o aumento de 7% do valor da taxa social única (TSU) a pagar pelos trabalhadores do privado e a diminuição em 5% do montante imposto às empresas. Uma medida que se vem juntar ao vasto pacote de austeridade que se acumula desde a primeira intervenção da Troika (FMI, Banco Central Europeu, Comissão Europeia) em 2010.
Ainda durante o governo do Partido Socialista (PS), a aplicação da receita austeritária pautou-se pelo congelamento de admissões e progressões de carreira para a função pública, aumento de impostos sobre o consumo, cortes no vencimento dos funcionários públicos superiores a 1500 euros, congelamento de pensões e aumento das taxas moderadoras nos hospitais.
Em meados de 2011, face aos constantes «avisos à navegação» realizados por autoridades económico-financeiras – da Troika às agências de rating –, a nova coligação governamental (Partido Social Democrata e Partido Popular) quebra a promessa eleitoral de não aumentar os impostos, aprovando um imposto extraordinário sobre os rendimentos equivalente a 50% do subsídio de Natal. Dias depois, é anunciado o corte dos subsídios de férias e de Natal dos trabalhadores do Estado. Paralelamente, verificam-se aumentos nos transportes públicos na ordem dos 15%, bem como no gás e na eletricidade.
No meio desta vaga de medidas, o governo altera a legislação laboral, facilitando os despedimentos, quer por via do alargamento do princípio de «inadaptação» do trabalhador ao seu posto quer através da diminuição das indemnizações por despedimento sem justa causa. A receita, no entanto, não surtiu efeitos. O fato da austeridade constituir um paradigma de governo económico transnacional levou a que a esperança no aumento das exportações não passasse disso mesmo. A exponencial subida dos preços e dos índices de desemprego acabou assim por conduzir à redução do poder de compra, à falência de pequenos negócios e, consequentemente, a um agravamento do desemprego [1]. Numa roda livre que se reproduz incessantemente e que não poupou aquela que, supostamente, seria a «menina dos olhos» dos partidos do centro: a mítica «classe média».
A natureza ideológica do termo «classe média» revela-se no caso português. O débil tecido produtivo nacional fez dos custos, não do produto, a sua vantagem competitiva, obtendo lucros fáceis a partir de salários baixos e dos mais variados «contorcionismos» fiscais. A injeção de fundos estruturais a partir de 1986, ano em que Portugal passa a integrar a Comunidade Económica Europeia (CEE), permitiu, no entanto, que uma importante parte da população portuguesa viesse a usufruir de casa própria, automóvel e férias uma vez ao ano. Um conjunto de regalias que detinha uma relevante componente simbólica, assinalando um status superior.
Entretanto, e apesar das ajudas financeiras, as estruturas produtivas pouco reformularam os seus pressupostos de funcionamento e a sua área de atividade. A sua modernização limitou-se apenas ao recurso às novas modalidades contratuais, mais «flexíveis», continuando assim a apostar no fator custo.
O fim do sonho da «classe média» iniciou-se, precisamente, em finais da década de 90, ao descobrir que os investimentos realizados nos seus filhos não haviam obtido os resultados esperados. Embora distante dos níveis da Europa mais «desenvolvida», e ainda com uma percentagem de abandono escolar bastante elevada, Portugal assistiu nos últimos anos à massificação do ensino secundário e superior. Porém, à saída da escola e da universidade, o jovem qualificado encontrou, na melhor das hipóteses, o emprego precário no centro comercial ou no call-center, algo apresentado como «sempre melhor do que estar desempregado». A «classe média» confrontava-se assim com a sua esterilidade. Uma frustração que, aliada aos constantes aumentos de preços, aos vários impostos inventados, ao crédito a pagar e, finalmente, à perda do emprego, levou a que, cabisbaixa, descobrisse os pés de barros sobre os quais assenta.
A manifestação
A comunicação das mudanças ao nível do pagamento da TSU originou um enorme surto de críticas, inclusive à direita. De notáveis do PSD, como Manuela Ferreira Leite, a presidentes de grupos económicos, como Belmiro de Azevedo, a oposição à medida foi geral, dadas as consequências restritivas sobre um poder de compra, por si só, já enfraquecido. A manifestação “Que se Lixe a Troika! Queremos as Nossas Vidas” acabou assim por adquirir uma dimensão inusitada. Com um discurso mais ambicioso do que as convocatórias anteriores, a manifestação partiu da iniciativa de um grupo de signatários individuais, quase todos eles ou figuras públicas de esquerda ou líderes de pequenas organizações. A decorrer em paralelo com manifestações em Espanha, a iniciativa espalhou-se a 40 cidades portuguesas e a alguns consulados portugueses no estrangeiro, tendo constituído talvez a maior manifestação das últimas décadas.
Em Lisboa, centenas de milhares de pessoas saíram da Praça José Fontana em direção à Praça de Espanha, num trajeto que procurava exprimir solidariedade com as mobilizações no país vizinho. Cerca de duas horas depois, na Avenida República, verificaram-se os primeiros momentos de tensão, com frutas, petardos [traques] e garrafas atiradas contra a sede da representação da Troika. Um indivíduo foi detido por polícias à paisana. Chegado ao fim do trajeto, milhares de pessoas, em geral mais jovens, decidiram continuar a manifestação, dirigindo-se para a Assembleia da República. A praça frontal do parlamento depressa se revelou demasiado pequena para a multidão que, durante mais de uma hora, foi chegando ao local. Foi aqui que se registaram os momentos de maior confronto entre manifestantes e autoridades policiais. Durante cerca de duas horas, garrafas, pedras e frutas foram lançadas de cada vez que as autoridades aumentavam os seus efetivos nas escadarias. Estas, por sua vez, realizaram pequenas cargas policiais, tendo, no final, detido quatro pessoas.
A atuação da polícia constituiu, aliás, uma das novidades desta manifestação. Ao contrário dos acontecimentos verificados na greve geral de 22 de Março [2], as forças policiais optaram por uma atuação mais estratégica: igualmente focada na demonstração de força, a sua ação revelou-se, contudo, menos centrada na violência desproporcional e mais concentrada na identificação de ameaças e no recurso a agentes à paisana na produção de detenções.
E agora?
Perante a mobilização de centenas de milhares de pessoas em todo o país, o caminho mais fácil é certamente declarar vitória. De bestas passivas, os portugueses ascenderam, repentinamente, a ativistas bestiais. O uso do essencialismo, por crença ou estratégia, parece-nos, contudo, pouco útil, dado o seu cariz a-histórico e, desde logo, não estratégico.
Uma manifestação que consegue encher as ruas de várias cidades do país, proporcionando momentos de alguma radicalidade [3], constituirá sempre um dado importante. No entanto, existem problemas estruturais, dificilmente resolúveis num só dia. Em primeiro lugar, conforme as pistas que aqui já foram dadas, a manifestação não deixou de revelar a falta de um horizonte político. Uma grande parte das pancartas e cartazes empunhados por manifestantes continua a ser preenchida por desabafos ou por simples recusas – do «Estou farto…», ao «Basta», passando pelo «Não à…”, as quais assinalam a inexistência de um projeto político mínimo. Sem este, qualquer crítica a apontar a partidos políticos e sindicatos, por mais certeira que seja, corre o risco de assumir uma posição meramente defensiva, facilmente manipulável por populismos e/ou poderes carismáticos. Em segundo lugar, não só a Grândola Vila Morena [hino da Revolução dos Cravos] foi menos cantada do que A Portuguesa [hino nacional], como a bandeira nacional foi, de longe, o símbolo mais visto em toda a manifestação [4]. Deste ponto de vista, o fato das políticas de austeridade resultarem de um processo de ingerência externa, alegadamente dedicado à diminuição da dívida pública, parece ter primazia sobre o cariz internacional do mesmo, com igual tipo de diagnóstico e de intervenção a ser realizado noutros países, como Grécia, Espanha ou Irlanda.
15 de Setembro constituiu, certamente, a prova de que ninguém anda a dormir. Porém, ele próprio indicia o quão longo e tortuoso será o caminho a percorrer.
Notas
[1] Ver o artigo “Crise na zona euro: ai, ai Portugal”, de João Bernardo , publicado no Passa Palavra.
[2] Ver o artigo “22 de Março de 2012: um dia para recordar”, de Ricardo Noronha, publicado no Passa Palavra.
[3] No Porto, algumas montras de bancos e seguradoras foram danificadas. Em Aveiro, um jovem de 28 anos imolou-se pelo fogo, apresentando várias queimaduras.
[4] Ver o artigo “O nacionalismo, a esquerda anti-capitalista e o euro”, de João Valente Aguiar , publicado no Passa Palavra.