Respostas de Alexandre Alves Costa [AAC] (arquitecto), Eduarda Dionísio [ED] (escritora), Jorge Silva Melo [JSM] (actor, encenador e cineasta), Luis Miguel Cintra [LMC] (actor e encenador), Pedro Mexia [PM] (poeta), Ricardo Noronha [RN] (historiador) e Rui Pereira [RP] (jornalista e professor).

(1) Como é que a imagem do 1º de Maio se tem projectado na cultura e nas artes?

AAC – Desgosta-me o seguidismo de mercado das expressões actuais que vão assumindo os que actualmente se dizem na tradição histórica das lutas dos trabalhadores e que na forma e no conteúdo, de facto, as vão paulatinamente traindo. Reivindico o meu direito a manter no meu glossário a apagada palavra Revolução e a não engrossar o civilizado desfile das hipócritas palavras de ordem da reforma do sistema, no primeiro de maio das avenidas novas.

Kasimir Malevitch, O Ceifeiro
Kasimir Malevitch, O Ceifeiro

ED – Há vários Primeiros de Maio. Felizmente todos pagãos, apesar de o 1º de Maio também ser dia de S. José (Operário)…
Reduzindo-os à nossa curta experiência (de ocidentais, portanto sem as manifs oficiais e militares de Leste) e à nossa memória (nascidos em meados do século XX e com quase metade da vida passada em ditadura), fiquemos por dois: o contado – dos piqueniques (convívio com comidas e bebidas, passeio no campo, flores silvestres, corte possível nas rotinas, alegria…) – e o vivido – da manif-comemoração de luta com mortes no século XIX do outro lado do Atlântico, demonstração de força de quem não tem o poder, ameaça espectacular e verbal aos que dele abusam. Por cá, coisa proibida e finalmente permitida e legislada na véspera do 1º de Maio de 1974, aliás só «autorizado» poucas horas antes de se ter saído para a rua…
Com o passar dos tempos, o 1º de Maio da manif-comemoração foi tentando, aliás, integrar elementos do 1º de Maio dos piqueniques, usando para tal as «alamedas» e os estádios típicos do Estado Novo (de Duarte Pacheco, da FNAT, da Cidade Universitária dos Plenários…) a fazerem de campo na cidade…
Experiência só tenho desta segunda modalidade. E não é boa, nem estimulante, tirando a do primeiro 1º de Maio, apesar de me lembrar bem da censura que houve ao discurso do Santos Júnior da TAP…
A memória do 1º de Maio de 75 (que já só vi pela televisão…) guardá-la-ei sempre como anúncio e símbolo das nossas derrotas seguintes. A seguir, a instauração de dois primeiros de Maio «populares», dos quais as duas centrais sindicais vigentes são «proprietárias», cada qual à sua maneira, é para mim a imagem do beco-sem-saída do sindicalismo, pelo menos na nossa terra, da vitória dos «amarelos» e da nenhuma vontade de, quando ainda era tempo, evitar a divisão sindical, que nasceu, diga-se em abono da verdade, da imposição-legalização-legislação da «unicidade sindical» e que preencheu os tristes desígnios não só da direita, mas também da esquerda mais visível.
Tirando o primeiro 1º de maio (em liberdade) nunca me senti «representada» nem no desfile, nem nas palavras de ordem, nem nos discursos. Mesmo quando fui dirigente sindical. Mas aí sabia que «faixa» segurar. Depois já nem «faixa» tinha…
Lembro-me de, num ano, já não sei qual, o grupo onde eu ia, já não sei qual também, só gritar a segunda parte da fatídica palavra de ordem «CGTP – Unidade sindical». Ou seja, só dizíamos: «Unidade sindical». Era para nós uma «forma de luta»…
A minha presença nestes primeiros-de-maio-manif-comemoração foi sempre intermitente, conforme muita coisa. Portanto, sou um(a) daqueles/as a quem não se deveria perguntar coisas sobre o 1º de Maio… Ainda por cima, gosto pouco de «efemérides» e de «comemorações»… Mesmo que do lado «bom»… Qual 1º de Maio? O das manifs com história nascidas dum acontecimento histórico exemplar? Não sei. Nunca pensei nisso. Já não vou a tempo de pensar.

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1º de Maio de 1919, em Moscovo

JSM – Não, não, não, do 1º de Maio não conheço eco nas artes chamadas nobres, não. Talvez no cinema italiano (…)

LMC – Não sei. Mas raras vezes os movimentos revolucionários dos trabalhadores coincidem com as revoluções culturais e artísticas que costumam ir à frente. A grande excepção a isso foi o que aconteceu nas artes durante a revolução soviética nos primeiros anos de entusiasmo. Porque a revolução artística se entusiasmou pela revolução. A política pós revolucionária é que, como quase sempre acontece, não terá entendido a revolução cultural e quis prendê-la em propaganda.

PM – O 1º de Maio é um momento decisivo da cultura operária, na medida em que se tornou na única data transversal, celebrada tanto em regimes socialistas como em sistemas capitalistas. Os primeiros vêem no Maio um exemplo das reivindicações operárias e da repressão capitalista; e os segundos foram aos poucos cooptando o sindicalismo como resolução negociada dos conflitos laborais e classistas.

RN – Penso que a imagem do 1º de Maio tem tido pouca ou nenhuma projecção na cultura e nas artes, tal como, em geral, temas ligados ao conflito social ou às «questões do trabalho». Há, aqui e ali, pessoas que se dedicam a actividades no campo da cultura e das artes e que, por via da sua militância política, procuram debruçar-se sobre temas desse género, mas o tipo de produção que daí resulta assume frequentemente a forma de um ornamento simpático, de uma prova de boa vontade, de compromisso político, e pouco mais. É extremamente raro deparar-me com uma produção artística que se debruce sobre temas políticos para os questionar de forma crítica e para acrescentar algo de novo e significativo aos debates sobre o nosso tempo. A arte que procura exprimir um ponto de vista político radical tem, em meu entender, falhado em transportar para a política o tipo de liberdade questionadora que julgo ser inseparável do gesto artístico. Admito que possa estar a ser injusto para com esta ou aquela proposta estética que consegue ser política sem ser panfletária ou remeter para uma qualquer referência histórica evidente. Mas estou a falar sobretudo de um panorama geral e não a proceder a um inventário sistemático – até porque não me sinto em condições de o fazer.

RP – Não teria sentido tomar aqui os termos da discussão sobre o “conteúdo social” da arte, sobre a relação entre forma e conteúdo. Falamos destes assuntos nos tempos em que qualquer multinacional pode adoptar a efígie de Guevara como sua imagem de marca, se lhe convier. E esse é o nosso tempo. As representações artísticas de um símbolo fazem parte de grandes redes de significação, instalando-se no imaginário. A evocação dos massacres de Chicago, as paradas militares brejnevianas na Praça Vermelha ou os desfiles da Alameda, são entrelaçamentos de significado, forças de enunciação que correspondem sempre a enunciações de forças. A pluralidade da sua representação existe na medida (integrada) dessas forças, na medida em que não ameace o sistema contra o qual se diz. Mas, o facto de dizer-se (e não de somenos, o facto de dizer-se artisticamente) é já fazer-se.

(2) Quais são para si as obra artísticas que melhor exprimem o significado, o espírito, o fenómeno social do 1º de Maio?

AAC – Não será certamente a grande arte burguesa, liberal e generosa com direito a presença (merecida) nos museus. É a que sustenta a própria luta, precária e circunstancial, com suportes frágeis ou nas paredes da cidade. Lembro a Revolução de Outubro, a Guerra Civil de Espanha ou o Maio de 68, como momentos de expressão maior.

Mário Dionísio, Dia de Maio ou 1º de Maio, 1990.
Mário Dionísio, Dia de Maio ou 1º de Maio, 1990.

ED – Não sei. Recorrendo à prata da casa: lembro-me vagamente de, quando escrevia livros, ter metido num desses livros um 1º de Maio, já muito «em liberdade», nos anos 80, em que mataram pessoas, no Porto; lembro-me bem de um quadro do Mário Dionísio, de 1990, que aparece com dois nomes nos catálogos: ora Dia de Maio ora 1º de Maio e que aqui fica, muito mal fotografado e sem qualquer trabalhador dentro: E já não me lembro bem de uma história que julgo ter lido na revista Colóquio em que um artista conta que foi em conversa, na manif. do 1º de Maio de 74, que apareceu a ideia dum mural colectivo, que foi parar àquele que havia de se fazer no 10 de Junho seguinte, e que entretanto também já desapareceu. Conta como a ideia nascida no meio da manif foi adulterada, que não era aquilo que os que o imaginaram tinham na cabeça. O mural acabou por ser um enorme painel dividido em 48 quadradinhos assinados por artistas que já eram ou passaram a ser de renome… Só para dizer que, por cá, as artes se têm «projectado» mais facilmente nos 10-de-junho vários e seus seguimentos nacionais-comemorativos (e também noutras datas «populares» de Junho…) do que nos primeiros de maio.

JSM – (…) os Taviani, talvez. Há, é claro, o Renoir de La Vie Est À Nous, mas era uma encomenda do PCF. Mas aquela alegria, as papoulas, o ar livre, o peito enfrentando o ar novo da primavera, a classe operária, os trabalhadores, a ultrapassagem das direcções partidárias, essa vida exigente, nada disso a burguesia – que detém as artes e tudo rapou, rap inclusive – deixou. Há umas (belissimas) páginas nos romances da Eduarda Dionísio ( no Retrato do Amigo…? Ou é nas Tentações?). Mas aquilo que vivi pela Alameda fora, no Maio de 1974, ao sol, a descer junto ao cinema Império e a ver levantarem-se os cartazes dos filmes (e era o Potemkin de Eisenstein finalmente estreado em Portugal – e o Jaime de António Reis), nada disso passou ao mundo. Há este quadro do Nikias Skapinakis mas é sobre o 25 de Abril (na Grécia e em Portugal), quadro que exige mais do mundo, libertação ainda maior, mulheres. Mas não é o 1º de Maio. Só o José Mário, “eu vim de longe / de muito longe”, essa cantiga que me faz chorar sempre, sempre.

Quadro de Nikias Skapinakis, sobre o 25 de Abril (em Portugal e na Grécia)
Quadro de Nikias Skapinakis, sobre o 25 de Abril (em Portugal e na Grécia)

LMC – O 1º de Maio originalmente foi um dia de trabalho (e de violência) na luta revolucionária numa época em que existia uma classe operária que em tudo se distinguia dos ideais pequeno-burgueses. A luta pelas oito horas de trabalho exprimia a existência de uma verdadeira classe operária com força revolucionária. Hoje o 1º de Maio ainda tem para mim sentido como homenagem a essa força. Mas não pode ter o conteúdo revolucionário de então, dado que os sindicatos cada vez mais correspondem aos actuais desejos de conforto e bem-estar capitalista em que se transformou a ideologia das classes trabalhadoras (cada vez menos operárias) e perderam qualquer conteúdo revolucionário. Não sei que artistas neles se podem reconhecer. Nem, pelas mesmas razões, que actividade artística os sindicatos reconhecem como expressão do significado ou do espírito da festa que ainda organizam. O 1º de Maio de 1974 em Portugal foi outra coisa única que durou um instante: a festa do fim da ditadura.

PM – Dentro do espírito do Maio, algumas das imagens mais fortes serão talvez as de alguns filmes do Maio de 68 sobre as greves, nomeadamente a greve da Renault, e o Tout va bien (1972), de Godard. Alguns deles levantam um problema nunca resolvido: a compatibilidade entre uma agenda social clássica e uma agenda essencialmente comportamental.

RN – Estava em Milão, em 2004, no Mayday, a parada dos e das precári@s. Havia centenas de carrinhas alegóricas e carros de som com música e palavras de ordem, vários tipos de intervenção artística e de apropriação do espaço público. A dada altura, do camião do COBAS (Sindicatos autónomos de base italianos), começou a soar, ensurdecedora, a música techno Born Slippy, produzida pelos Dj’s Underworld. É um som absolutamente digital, minimal e repetitivo, com uma voz que canta furiosa alguma coisa acerca de ambientes decadentes, hedonismo, sedução e cinismo. Faz parte da banda sonora do filme Trainspotting e é um tema de culto nas pistas de dança. Começou a juntar-se cada vez mais gente em torno do camião, que se tornou um espaço de rave. Ao mesmo tempo, um elemento do COBAS pegou no microfone e começou a improvisar um discurso político feito de frases curtas que soavam poderosas. Repetia «vogliamo tutto» (queremos tudo), uma palavra de ordem das lutas operárias na FIAT em 1969, e dizia que estava furioso, mas tranquilo. Enquanto o camião seguia, devagar, rodeado de pessoas hipnotizadas que dançavam ao ritmo da música, um pequeno grupo separou-se da manifestação e escreveu na fachada de um qualquer fast-food – «A precariedade ainda vos há-de sair cara». Por isso mesmo, a mais improvável de todas as músicas passou a simbolizar, para mim, todas as subversões possíveis. E o 1º de Maio nunca mais foi o mesmo depois de o ter passado com cem mil pessoas em luta e em festa nas ruas de uma grande metrópole capitalista.

RP – Darei, intencionalmente, uma resposta muito restringida à minha própria experiência, pessoal. Tenho 46 anos (11-12 em 1974-75), gente de família que passara pelas mãos da PIDE, e o Maio associa-se para mim -porventura para muitos da minha geração-, àqueles 3 minutos e 13 segundos de voz do Zeca, que começam com o “Maio maduro Maio…” e acabam quando “…a turba rompeu”. A arte tem essa imensa capacidade de síntese que consiste em ligar a História e o Mundo à nossa experiência íntima.

(3) Passados os séculos XIX e XX, pode dizer-se que subsistem uma cultura e uma arte próprias da classe operária e dos trabalhadores?

1830590AAC – A verdadeira cultura e arte próprias da classe operária e dos trabalhadores correspondem à saída da representação da dor e da miséria para a representação da luta e da vitória esperada e que se quer certa.

ED – Não sei. Acho que (quase) não, se pensarmos na Europa-EUA. É bom lembrar que a que houve (e qual foi? quais foram?) nunca foi muito «visível», que mercado (nas coisas da cultura e das artes) sempre houve e agora muito mais – ou só. Mas também sei que há «geografia», apesar da «globalização»: a América Latina não é a Europa. E a África também não. E por aí fora. Há muita coisa que desconheço. E de vez em quando há surpresas grandes e que dão vontade. Vou quase todos os anos a uma festa numa aldeia do norte da Itália, organizada por uma associação nascida há 40 anos da vontade de camponeses, depois operários e pequenos funcionários municipais, e que já não o são, e que nessa altura saíram do (defunto) PCI, participando no 68-69 italiano de todas as maneiras, e que nunca mais entraram em partidos, e que nunca abandonaram os seus temas, nem a intervenção, acrescentando-lhes outros, por exemplo a água. Juntam 1000 pessoas por ano para falar, comer, beber e cantar e tocar (só recentemente com microfone e amplificação). Sabem que camponeses já não há, que operários há cada vez menos e que são diferentes daqueles que eles eram. Sabem que há classes, evidentemente, mas que não são as mesmas nem têm os mesmos nomes. De há muitos anos para cá nunca vão a manifs no 1º de Maio. Mas festejam-no, festejam uma ideia. Fazem piqueniques em casa de «camaradas», onde falam, comem, bebem e cantam… Também já lá estive. Ali, sim, dá gosto cantar a Internacional – em línguas várias. Ali, a Internacional não substitui o «Parabéns a você» nas festas de aniversário.

LMC – Sim, mas confunde-se com a da pequena-burguesia e infelizmente é a cultura mais pobre e artística e ideologicamente mais reaccionária: a televisão e a que o mercado inventa. É difícil numa sociedade capitalista que formata as consciências, subsistir alguma criatividade nas classes com menos defesas para resistir a essa massificação. A próxima revolução há-de vir de outro lado.

PM – A «arte da classe operária» sempre foi um conceito problemático, pois o que em geral se produzia era arte de tema operário feita por burgueses. Hoje em dia, mantém-se essa dificuldade, mas acresce a diluição de conceitos como o «operariado» e a própria diluição dos gostos numa zona cinzenta de gostos de «classe única», que inclui a televisão, a cultura das celebridades, os tablóides e o «entretenimento».

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Ferdinand Léger, Os Construtores em fundo azul, cerca de 1951

RN – Sem dúvida que sim. Toda a cultura pop não é senão um espaço de tensão entre os desejos sublimados do proletariado e a necessidade imperiosa de os anular e, simultaneamente, os realizar enquanto mercadoria. Evidentemente que não se vive hoje, como há cem anos atrás, completamente à margem da sociedade burguesa e da sua cultura, em bairros operários e colectividades operárias. Há cada vez menos realidades sociais situadas entre a burguesia e o proletariado. A hibridez, a contaminação e a ambiguidade são os sinais mais evidentes da cultura do capitalismo tardio. Mas é precisamente porque o proletariado de hoje não tem uma cultura especificamente sua, uma identidade demarcada relativamente às outras classes sociais, que se pode afirmar, sem correr grandes riscos, que o antagonismo entre trabalho e capital é ainda mais marcante do que noutros tempos. Não há nenhum ponto de refúgio ou identidade específica, nenhum património ou mundo próprio, que se possa defender. E nesse sentido, as condições para uma ataque generalizado apresentam-se mais favoráveis do que nunca.

RP – Falamos de coisas diferentes quando falamos de “cultura” e de formalizações artísticas. A arte é uma parte do que poderíamos chamar cultura. Por outro lado, apesar de a sua expressão poder ser socialmente distribuída, por mais massiva, até, que essa distribuição possa ser, a sua recepção é sempre singular, pessoal: pessoa-a-pessoa. O mesmo é válido para a sua produção, sendo certo, claro, que as coordenadas artísticas conservam relações diversificadas com a realidade social em que existem mesmo quando, frequentemente, existem para rejeitar tal realidade. Ainda que os homens se relacionem socialmente por via da arte, mesmo sendo, noutra óptica, o campo artístico, por definição, um campo estruturado, com as suas regras, os seus interditos, as suas prescrições, os seus valores ou ainda os seus mercados, que se articula com outros campos de forma complexa, não creio que se possa falar de uma “cultura e/ou arte de classe”. Concretamente em relação às classes operárias e de trabalhadores, os estudos clássicos de Richard Hoggart demonstraram (é certo que ainda antes do advento massivo da televisão, mas penso que não invalidados por esse fenómeno) que as classes trabalhadoras (e as outras) fazem uma “leitura oblíqua” das produções culturais-ideológicas predominantes. Isto é, as pessoas captam, de cada objecto artístico a que acedem, aquilo que nele podem, desejam ou lhes interessa captar. E ignoram ou deploram o resto. Outro assunto muito diferente é o da efectiva capacidade libertadora e questionadora da arte, mas aí voltamos à dimensão pessoal. A arte, que é uma das artes de fazer sentido, só faz sentido enquanto respiração boca-a-boca.

(4) Em sua opinião, porque é que não se comemora o Dia do Patrão ou o Dia do Capital?

AAC – Numa sociedade como a nossa, o dia do patrão e o dia do capital são todos os dias, comemorados na festa quotidiana da face dupla do dólar da opulência e da fome, dos gordos vencimentos dos vencedores e dos magros salários dos vencidos, das luvas da corrupção ao pé descalço da segurança social, do verde da esperança de ser cada vez mais rico ao vermelho da desesperança e da luta de quem nada tem a perder, dos dias de festa que são todos ao único conquistado pelos deserdados da terra…. o primeiro de Maio.

ED – É a única pergunta a que posso responder. Se todos os dias do ano fossem dos trabalhadores (e dos desempregados e dos sem emprego e à espera de emprego, e dos reformados e dos sem abrigo e dos sem papéis, e também dalguns que não querem trabalhar …) também nunca se teria comemorado o Dia do Trabalhador, que (estranhamente para mim) assim se continua a chamar… Todos os dias do ano, mesmo sem muitos «trabalhadores activos» são dos patrões e do capital. Portanto, não precisam de um «Dia» para o dizer aos vitoriosos, que são eles próprios…

JSM – Que o Capital não tenha festa é falso: chamam-lhe é (ainda) Natal. E acendem as luzes perpetuando, com Jesus, a “família, a propriedade e o estado”, essas górgonas do Capitalismo com sinos a repicar, jingle bells.

LMC – Já estivemos mais longe de ver os operários se organizarem para o festejar. Mais vale isso se calhar que estar desempregado. Mas já há anos me diziam que o mais eficaz capitalismo é o da a empresa em que o patrão não se vê e os trabalhadores se julgam patrões. O patrão cada vez tem menos cara e tem por corpo o mundo inteiro. Não pode ir ao piquenique. E os computadores não perdem tempo em feriados.

PM – No nosso imaginário, o «patrão» é geralmente uma figura de cartoon: estúpido, cúpido, gordo e de charuto. Mesmo em países capitalistas persiste uma ideia negativa do capitalista, especialmente agravada em momentos de crise, como o actual. Ninguém celebra o Dia do Patrão pela mesma razão que ninguém celebra o Dia da Fidelidade Conjugal: ou não é de todo coisa que se celebre ou é uma coisa que não se comemora em público.

RN – Todos os dias se comemora o dia do patrão e do capital. Todos os dias em que se acorda para ir trabalhar e se dorme porque se está cansado de trabalhar. Nem sequer a medíocre burguesia dos nossos dias se atreveria a defender a ideia de que há algo a comemorar na sua dominação. A burguesia minimamente consciente dos seus interesses de classe esforça-se aliás para manter o mais oculta possível a sua celebração quotidiana. O bom champagne bebe-se longe das câmaras de televisão. Até porque, para sorrir para elas já foram contratad@s centenas de figurantes com que nos entreter.

RP – Será porque o Capital já tem todos os outros dias (contados)? Mas, uma outra pergunta ainda mais útil seria saber porque é que os trabalhadores, com todo o calendário à disposição, guardaram só um dia para eles, deixando todos os outros serem dias de trabalho?

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