Entramos nos bairros proibidos sem medo e com a nossa mente aberta. Ouvimos com atenção mas sem medo de contribuir. Encontramos ali, naquele lugar ignorado pela política, os nossos verdadeiros camaradas. Por um anarquista de Londres

Este texto é endereçado a todos os portugueses que se considerem de esquerda, que liguem a política, e que se importem com a existência e bem-estar de algo que chamamos de comunidade e de sociedade. Pretende ser uma crítica breve e directa dos eventos que se passaram recentemente no bairro da Bela Vista, em Setúbal (Abril e Maio de 2009), e da maneira como as reacções a esses eventos demonstram o falhanço da política em Portugal e, noutra escala, da sociedade portuguesa em geral. Admito que praticamente todo este texto se poderia estender bem para lá do território português, mas tentei focar-me em Portugal e tentar não perder a acuidade da crítica em si.

bela-vista-3Antes de mais, é preciso falar da Bela Vista. A situação, só por si, é absurda. Um país onde os comunistas (de várias estirpes) têm forte expressão nas urnas e onde a hegemonia bi-partidária se diz socialista, e no entanto, é um dos poucos países ditos desenvolvidos que tolera no seu território a existência de bairros de lata e bairros sociais em que o tijolo das casas não invalida semelhante estatuto em todos os outros aspectos. Além de inconcebível, esta situação também é trágica, não só porque envolve o sofrimento de seres humanos mas também porque ilustra de maneira exemplar a falta de solidariedade do resto da sociedade. Não somos inocentes, sabemos que a Bela Vista ou qualquer outro bairro social em Portugal é irrelevante para o Estado. Por um lado, não produz votos – os excluídos não votam, são mais sábios que nós nesse aspecto. Sabem perfeitamente que ninguém quer saber deles tirando eles próprios, e eles nunca apareceram num boletim de voto e nunca aparecerão a não ser que reneguem as suas origens, e nesse caso o voto seria fútil. Por outro lado, eles não constituem ameaça ao Estado. Sem consciência política, os excluídos não vêem a sua luta como a luta de todos; não têm a união nem a força (política, económica, militar, etc.) para efectuar qualquer acto revolucionário que ameace verdadeiramente o Estado. Sendo assim, são invisíveis, valendo apenas pela sua influência nos votos do resto da sociedade – se cometem crimes que prejudicam os contribuintes, então é preciso reprimi-los como mostra de força; se as suas condições de vida degradantes ofendem os burgueses mais caridosos, então é preciso, por exemplo, dar-lhes casas menos sujas e aumentar em qualquer insignificância as suas esmolas mensais.

Uma criança foi executada pela polícia. As circunstâncias são irrelevantes – nada justifica a morte de um ser humano tirando defesa pessoal perante ameaça igual. O código penal português não sanciona a pena de morte em nenhum caso, logo a pistola de um polícia devia ser sempre a segunda a aparecer em qualquer situação. Não foi isso que se passou, nem de perto nem de longe, e portanto não podemos usar outro termo que não execução. Uma criança é executada pela polícia e a comunidade da Bela Vista insurge-se atacando quem os atacou, usando fogo contra fogo.

bela-vista-6A resposta dos políticos é ao mesmo tempo previsível e chocante.

A direita faz o que lhe compete, expondo novamente as suas demagogias odiosas anti-imigração, racistas e exigindo com ultraje impotente a repressão destes bárbaros. O centro analisa a situação e rapidamente formula uma resposta que, apesar de não agradar nem a gregos nem a troianos, também não lhes desagrada, e age da maneira que a situação exige, isto é, não faz nada porque de facto não lhe interessa fazer nada. A esquerda tem talvez a mais chocante das respostas. Ao invés de agir (e, de facto, um partido dito de esquerda controla a Câmara de Setúbal), apenas considera a situação como mais uma oportunidade de tentar desestabilizar o governo e assim caçar votos. Sendo assim, faz críticas ao governo e comenta o que se passa quando está por perto um microfone da rádio ou uma câmara de televisão, de maneira a criar um bonito retrato da sua indignação.

Estas respostas são hipócritas e insignificantes, mas têm a virtude de ilustrar perfeitamente o que está podre com a política em Portugal. Da direita e do centro não esperávamos diferente, mas a esquerda choca. Para a esquerda uma acção consiste sempre em algo que:

1. está focado na procura de votos;
2. ameaça o partido no poder em termos de eleições, mas não ameaça o Estado em si.

Ocorrem portanto manifestações organizadas pela esquerda em que se fazem uns pedidos quaisquer ao governo, pedidos esses que a própria esquerda sabe intimamente que não irão ser satisfeitos. Cria-se um jogo simbiótico entre a esquerda e o governo. A esquerda precisa de organizar manifestações, proclamar discursos inflamatórios e mais uma série de iniciativas para satisfazer os seus apoiantes e votantes. Mas, sejam quais forem estas iniciativas, elas nunca podem realmente anteceder ou lançar as sementes duma revolução. Basta ver alguns dos pedidos que a esquerda faz. Alguns são insignificantes para a esmagadora maioria dos portugueses, tal como acabar com as touradas (sem acabar com os matadouros) ou legalizar os casamentos homossexuais, e portanto acatar estes pedidos não traria impacto nenhum de fundo à sociedade. Outros pedidos são irrealizáveis num país neoliberal da União Europeia, por exemplo, a nacionalização de ramos de empresas multinacionais de maneira a manter postos de trabalho em Portugal. Ficam-se assim por pedidos vazios, sem qualquer expectativa de cumprimento. O governo aceita as manifestações como mostra de que está aberto a ouvir críticas, absorvendo e discutindo as mesmas enquanto estas fazem parte da actualidade política, mas eventualmente pondo-as num segundo plano quando algo de novo surge no panorama. No final de contas, tanto os protestantes quanto o governo sabem a verdadeira natureza vã destes pedidos. Joga-se de maneira cíclica e cretina, mão após mão, um jogo onde nada muda. Os políticos de ambos os lados fazem carreiras e tornam-se aquilo que se pode chamar de políticos profissionais, uma classe que por si só é uma negação total do espírito democrático que a sociedade pós-25 de Abril afirma como um dos seus pilares. O espírito revolucionário, esse não passa de um slogan publicitário para recrutar jovens idealistas (passe o pleonasmo) que serão gradualmente transformados pelo partido em conformistas e reformistas acomodados na futilidade deste jogo político.

Mas o que é que isto tudo, toda esta conversa sobre política, esquerda, direita, revolução, reforma, e por aí afora tem a ver com quem resiste na Bela Vista? Nada, absolutamente nada.

bela-vista-1O que é que alguns residentes da Bela Vista fizeram como protesto à execução do seu amigo? Incendiaram carros e atacaram uma esquadra da polícia. Agiram contra o Estado com plena consciência da sua insignificância no processo político actual. Agiram sem os constrangimentos e compromissos da esquerda que se organiza em partidos e que luta por votos. Naquele momento reconheceram nos seus próprios termos a luta imanente na nossa sociedade. Reconheceram que a sua luta para sair do bairro é uma luta sem esperança, bloqueada por uma diferença irreconciliável de classe, educação e poder económico, e fizeram a única coisa que podiam fazer – agir. Na verdade agiram como qualquer organização verdadeiramente revolucionária, e porque não? Eles têm uma organização (paralela ao resto da sociedade) e um ódio e desrespeito pela autoridade invejável por qualquer verdadeiro revolucionário de esquerda. E tudo isto sem precisarem de líderes, da intervenção de políticos, de manifestos, de lerem textos como este e de serem membros dum partido. Eles têm muito a nos ensinar, nós que queremos derrubar o capitalismo, criar uma nova sociedade sem classes, sem exploração, sem ser preciso mendigar postos de trabalho e tudo o mais que é nosso por direito.

Mas nós também temos algo a ensinar-lhes.

Terem sido abandonados e ignorados pela sociedade é o seu maior triunfo e o seu maior defeito. Como tal, podemos mostrar-lhes o contexto histórico da sua luta, como outros já foram excluídos no passado e como tentaram organizar-se para lutar contra essa situação. Podemos falar-lhes que até os que têm emprego nesta sociedade são explorados (embora de maneira diferente e mais subtil) e de como a dita classe média portuguesa, a que alguns deles aspiram pertencer, de médio só tem a mediocridade. Podemos criar laços que cruzam classes, raças e as geografias fascistas das nossas cidades. Podemos fazer tanto ao lado destas pessoas que todos ignoram e no entanto não fazemos nada. Não sabemos como lhes falar sem citar Marx, sem lhes dar formulários de inscrição no partido ou sem lhes vender um jornal. Mas podemos aprender, criando campos comuns de luta, com métodos que usam a simbiose das nossas experiências e qualidades.

Unidos pela alienação, exploração e necessidade de revolução , entramos nos bairros proibidos sem medo e com a nossa mente aberta. Ouvimos com atenção mas sem medo de contribuir. Encontramos ali, naquele lugar ignorado pela política, os nossos verdadeiros camaradas.

5 COMENTÁRIOS

  1. Caro companheiro anarquista em Londres, temo que o seu texto apenas venha acrescentar confusão à questão. Desde logo, e apesar do que promete a sua conclusão, você não «entra» nem «entrou» na Bela Vista e escreve a partir do que imagina serem os habitantes do bairro. Mais ainda pretende ter coisas a ensinar-lhes e, apesar das cautelas, reproduz assim o ABC do marxismo-leninismo. Repare como você os descreve como pessoas a quem é necessário «mostrar» e «explicar», valorizando a sua revolta mas defendendo simultaneamente a sua impotência sem a mediação teórica do «anarquismo».
    De resto o seu texto ignora que o jovem baleado estava a bordo de um carro roubado, no Algarve, em fuga da polícia depois de ter procurado roubar uma caixa Multibanco. Não se trata evidentemente de relativizar as coisas ou de legitimar as balas policiais, mas em rigor não se tratou de uma execução. Os motins começaram, não por causa da morte em si, mas por causa das intimidações levadas a cabo pela polícia no dia do funeral.
    Aquilo que você escreve sobre o programa da «esquerda» é particularmente idiota. Acabar com as touradas e legalizar os casamentos entre homossexuais não perdem nem ganham relevância pelo facto de você os achar «minoritários» no seio da sociedade portuguesa. Estranho «anarquismo» o seu…
    As nacionalizações divergiam nos programas do BE e do PCP. Os primeiros propunham a nacionalização das empresas que detêm monopólios essenciais, como eletricidade, as telecomunicações e os combustíveis (concretamente, as antigas empresas públicas EDP,PT e GALP). Os segundos defendiam a nacionalização da banca comercial, que é formalmente portuguesa (mesmo no caso do Santander Totta). Ninguém propôs nacionalizar filiais de empresas multinacionais, nem sequer no caso da Quimonda.
    Informe-se antes de escrever e, já agora, evite a sociologia vulgar no que diz respeito à caracterização dos bairros sociais. O seu tom moralista na condenação da apatia generalizada também é absolutamente desnecessário. Por quem se toma?

  2. Ricardo,
    Obrigado pelos comentários porque, eu concordando ou nao com eles, significa que pelo menos leu o teste e prestou-se a comentá-lo.
    Quanto a entrar ou nao na Bela Vista é impossível dizer se eu já entrei ou nao, visto que nao me conhece. De facto já entrei, mais que uma vez, e também convivi com habitantes ou ex-habitantes da Bela Vista no passado. Concedo que isso foi antes do sucedido, mas as coisas mudaram assim tanto? Estar em Londres é relativamente recente para mim e nao faz parte do que escrevi de maneira nenhuma.
    Em nenhuma parte do artigo uso a palavra “explicar” e o que advogo é somente “aprender, criando campos comuns de luta, com métodos que usam a simbiose das nossas experiências e qualidades.” Se isto é ser moralista ou nao é outra questao, mas nao consigo identificar essa atitude neste texto.
    Creio que o meu texto fala apenas de comunicar, aprender, partilhar, lutar em conjunto. Nao detecto nele a tal atitude vanguardista, leninista que me acusas. Será que qualquer tipo de uniao é sempre com um dos lados forcando a sua visao sobre a do outro? Advogo exactamente a paridade, ou será que temos forcosamente de nos sujeitarmos ‘a luta dentro da nossa classe social, aceitando assim as restricoes impostas pelo estado que detestamos? Será que podes aceitar Ricardo, que exista comunicacao e uma procura de lutas comuns entre quem mora na Bela Vista e quem mora noutro lado qualquer? Recentemente em Franca foi exactamente essa separacao que causou a falta de apoio, e o contínuo desenrolar, das revoltas. Nao podemos render-nos as separacoes e estratificacoes que vem de quem nos governa nao so atraves do parlamento e politica mas tambem atraves dos media e das nossas representacoes culturais. Se apenas ficar alguma coisa do texto, prefiro que seja isto.

    De resto, apenas me tomo por mais um que por aqui anda e este artigo entraria obviamente numa categoria de opiniao do que de reportagem. Se eu nao posso exprimir a minha opiniao, quem tem mais direito que eu? Aceito que os meus comentários sobre as nacionalizacoes nao foram completamente exactos, mas o propósito com que os referi continua válido. Obviamente que como anarquista sou contra a proibicao do casamento entre homossexuais mas, exactamente como digo no artigo, a nossa energia gasta-se nestas “causinhas” e nao se olha para o que realmente está mal: que alguém tem o poder de nos ditar como quem podemos casar ou nao. É possível retorquir que insistir numa “causinha” vai trazer ao público as contradiccoes do estado, mas nao é essa uma táctica do ABC-trotskista?

    De qualquer maneira, obrigado.

  3. Pois…
    Mas repara que o teu artigo falava como se fosses à Bela Vista recorrentemente e estivesses em contacto permanente com habitantes de lá. Usaste o Presente e não o Passado para descrever as tuas relações com o bairro e seus habitantes. Se mudaram ou não? Bom, desde então houve qualquer coisa como um motim e aparentemente escrevias sobre ele. Algo mudou mas tu não estás em condições de o identificar.
    Repara no teu enunciado: “eles não constituem ameaça ao Estado. Sem consciência política, os excluídos não vêem a sua luta como a luta de todos; não têm a união nem a força (política, económica, militar, etc.) para efectuar qualquer acto revolucionário que ameace verdadeiramente o Estado.”
    «Eles» não têm a consciência política que tu transportas no bolso, não entendem o carácter da sua luta, não têm união nem força para um acto revolucionário que «verdadeiramente» ameace o Estado. Depreende-se daqui que «necessitam» que tudo isto lhes seja trazido por alguém de fora, portador da consciência, organizador da revolta difusa, estado-maior da insurreição. O leninismo não está apenas na minha imaginação, é o corolário lógico do teu raciocínio: se estas pessoas têm razões para se revoltar mas, deixadas entregues a si próprias, são incapazes de ameaçar «verdadeiramente» o Estado, falta uma espécie de direcção anarquista da luta, portadora da verdadeira consciência e do sentido estratégico necessário.
    Bem vejo que o teu texto afirma uma coisa e o seu contrário: Por um lado…, por outro lado… Temos a aprender mas também a ensinar.
    Mas a pedagogia de que te sentes capaz está bem explícita: “podemos mostrar-lhes”, “podemos falar-lhes como” , etc…
    Eu concordo que é possível e desejável criar laços e ligações, partilhar experiências, etc…
    Mas isso só é possível se abandonarmos previamente o pressuposto de que sabemos objectivamente aquilo de que eles sentem falta. Para ser ainda mais explícito – se temos realmente algo a oferecer para aquela luta, que sejam os envolvidos a identificá-lo e não nós a presumi-lo. Se queremos aprender com eles, não devemos dar por adquirido que nós é que sabemos o que temos a ensinar-lhes.
    saudações

  4. Esta interessante discussão me lembrou uma frase do revolucionário anarquista Mikhail Bakunin:

    “O que pode portanto, fazer a propaganda? Trazendo uma expressão geral mais justa, uma forma mais feliz e nova aos próprios instintos do proletariado, pode algumas vezes facilitar e precipitar seu desenvolvimento, sobretudo do ponto de vista de uma transformação em consciência e em vontade refletida das próprias massas. Ela pode dar-lhes a consciência do que elas têm, do que sentem, do que já querem instintivamente, mas nunca lhes poderá dar o que elas não possuem, nem despertar em seu seio paixões que, de acordo com sua própria história, são lhes estranhas”.

    Penso que as preocupações do Ricardo Noronha são pertinentes, mas que ele “exagera na dose”… Mas infelizmente não estou em condições de escrever mais.

    Abraços!

  5. Ricardo Noronha,

    Vais desculpar o reparo ao reparo que fizeste ao texto mas de facto não foi acertado. Mesmo a correcção posterior que tiveste o cuidado de fazer.

    O facto de se constatar que na Bela Vista não existe consciência política, nem existe força para ameaçar o Estado não implica que quem o diga pretenda constituir-se em vanguarda dessas pessoas. Isto, que como dizes é o ABC do leninismo, simplesmente não está presente no texto. É bem expresso que há muito a ensinar de parte a parte e que a luta deve ser lado a lado.

    Também não entendo a crítica por se falar daquelas pessoas como “eles”. Mas nós que aqui estamos a debater na Internet, com os nossos estudos e a nossa disponibilidade, somos os excluídos, de facto, da sociedade? Uma coisa é não pretender liderar e procurar pontos de encontro nas lutas a serem travadas de forma horizontal. Outra, é confundir o “nós” que não somos poder, com o “nós” que estamos à margem da sociedade.

    E onde é que é dito que eles não entendem o carácter da sua luta? Eu li exactamente o contrário:

    “Naquele momento reconheceram nos seus próprios termos a luta imanente na nossa sociedade. Reconheceram que a sua luta para sair do bairro é uma luta sem esperança, bloqueada por uma diferença irreconciliável de classe, educação e poder económico, e fizeram a única coisa que podiam fazer – agir.”

    A questão não é que essas pessoas deixadas a si próprias não são capazes de ameaçar o Estado e por isso necessitarem de uma direcção qualquer. É apontado especificamente no texto o que falta e que pode ser útil na sua luta: conhecimento histórico e pontes para a identificação com os problemas de outras camadas da sociedade. A propaganda é uma prática histórica do anarquismo e de tendências marxistas libertárias e não vejo onde se possa confundir com leninismo.

    Quanto à observação das lutas menores (touradas e luta LGBT) estou de acordo e penso que o texto não ganhou nada com essa referência.

    abçs a todos

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