O teatro é um espaço de decisões, a grande metáfora da decisão. É um espaço paradoxal, destituído de qualquer esperança. É o presente. Por Hugo Calhim Cristóvão
Só faz sentido a questão dos antecedentes teóricos do actual trabalho do actor se colocada no sentido de um reviver da tradição, e do seu espírito. Nesse aspecto o teatro é como o esoterismo: o que sobra é incompreensível para um olhar leigo, para o olhar que não pressente já o que procurar. A verdadeira transmissão é feita oralmente, ou por contaminação, e mesmo essa implica à partida estar disposto a capturar no ar o que merece ser capturado.
Em todas as transmissões o primeiro elemento é a paixão, o fogo, a curiosidade insaciável. Sem esse elemento os teóricos são um carvão negro que não dará calor ou luz. E o actor perde-se numa complexa teia de ilusões, que bem ou mal tecidas, jamais conduzirão ao desbravar do que está vivo. Perde-se em autópsias.
No teatro, paradoxalmente, a forma de abrir o véu começa por acreditar no eterno retorno, no tempo mítico, numa eterna reminiscência das coisas, aqui e agora.
O actor sofre processos de transmutação, segundo modelos arcaicos, em que qualquer contemporaneidade não passa o mais das vezes de uma roupagem externa. Movemo-nos sempre dentro da história, e fora da história, ao mesmo tempo, pesquisando a possibilidade de uma constante primeira vez, de uma constante frescura.
Diz-se que o teatro é uma arte, fala-se em emoções estéticas, abrimos mão de termos cujo fito não é mais do que propagar o lugar comum. O teatro não será uma estética, antes uma ética. Uma ética de metamorfose que combina o lúdico e o sagrado, o temporal e o atemporal.
Devemos escolher bem cedo se o que fazemos é ficção ou realidade. A ficção não assume, no fundo, um carácter de necessidade. Trata-se apenas de um luxo. O que é um luxo descai sempre para segundo plano quando a vida se torna perigosa, inclemente. Há sempre quem se apegue aos seus pequenos luxos em todas as circunstâncias.
Quando vem a tragédia há sempre quem queira fugir ou ignorar, quem em desespero se refugie em pequenas idiossincrasias estéticas, aquelas que nos reforçam as crenças de sermos quem achamos ser. Esse esteticismo desliza para padrões, normas e morais, preceitos ciclicamente renováveis. Quando se fala em vanguarda, fala-se quase sempre no desejo de descobrirmos o nosso luxo particular. Propagandeá-lo é vendermo-nos. Absurdos marcados pelo tédio.
Aqui devemos manter o pé ligeiramente fora da história do discurso. Ética implica decisão, e o teatro é um espaço de decisões, a grande metáfora da decisão. É um espaço paradoxal, destituído de qualquer esperança. É o presente.
Cada vez que nos entranhamos pelos subterrâneos da actividade teatral damos de caras com uma reminiscência antiga, a que sem pudores e pruridos eu apelidaria de mágica.
Falamos então de ficção ou falamos de realidade? Falamos de um universo escapista de sonhos sonhados em ilusão, num pequeno mundo perfeito e controlável, embora raramente, ou falamos de realidade, de uma porta que subitamente se abre? Abrimo-la? Fechamo-la? Damos pequenas espreitadelas medrosas e, com pomposas linguagens, elucidamos falsamente a manada?
Grande parte de nós limita-se, no máximo, a postar-se a essa porta de armadura, cadeira de veludo e óculos de sol, de costas voltadas para ela, com um rito de exuberância e seriedade a afastar o temor. Do lado de cá dessa porta sempre há o público, os outros, e os espelhos. Do outro lado, solidão e assombro.
Como todas as grandes analogias, esta é uma analogia de morte. Do desconhecido e do fim. Desperdiça-se a vida quando não se enfrenta de perto essa morte do actor. O actor não é mais do que um ser humano com absoluta fome de experiência, determinado a usar-se na procura de um conhecimento outro. Alguém que se testa sob o signo da oposição e do confronto. Do desafio.
Claro que há quem o ignore, quem recuse, quem não se transgrida. Existem sempre os arautos paradigmáticos da restrição e do comedimento, do correcto bem falar da modernidade, das razões segundas. De tudo o que diverte da necessidade de decidir aqui e agora, da partida.
A generosidade e a intensidade da paixão sob uma ética de metamorfose, sob o constrangimento feroz do presente e da acção, sob a repetição exaustiva e renovada, são o principio e o fim da técnica do actor. Nada mais do que isso, e nada menos do que isso, é necessário para começar.
Quem não o entende, não percebe nada. Que se afaste, diria eu cheio de expectativa.
Nada há senão estratégias, e passo a descrever uma, a criação de uma assembleia interior a que chamarei o “Congresso”. Trata-se de listar todos os nomes que na história do teatro, e da dança alguns, nos parecem relevantes e úteis. Eu daria uma ênfase particular aos práticos. Uma lista que deverá conter no máximo 25 nomes, por razões funcionais.
Durante uma semana estes nomes serão repetidos internamente, duas vezes por dia uma hora de cada vez, em posição de meditação numa cadeira, corpo muito ligeiramente inclinado para frente (uma eterna pulsação para se levantar que nunca chega a concretizar-se) coluna vertebral alinhada num eixo vertical imaginário terra céu. Olhos fechados, mas se abertos focados num ponto a 45 graus para cima, imóveis. A repetição interna do nome, proponho 48 vezes cada um, deve acompanhar ou o ciclo da inspiração – expiração, ou uma sílaba por batida do coração. Não deve existir nenhuma tentativa de produção de imagens ou de visualização, apenas a tediosa repetição do nome, como um chamamento inaudível.
Um pequeno diário deve ser criado para registar dificuldades e acontecimentos. Convém que o praticante possua os livros chave de cada um dos nomes envolvidos e ocasionalmente olhe para esses livros folheando desinteressadamente as páginas. Que os atire ao ar e tente equilibrá-los a todos numa só mão, ou em cima da cabeça. Queimá-los, algumas páginas de cada vez é também uma opção válida. Ao fim de uma semana, todos esses livros, que se supõe já anteriormente lidos, devem ser deitados fora ou oferecidos. Para os mais tímidos emprestá-los é uma hipótese alternativa, de preferência a quem não perceba nada de teatro. Recomendo emprestá-los a produtores, autores dramáticos na moda, cenógrafos, sonoplastas, encenadores inaptos, literatos e afins.
Na segunda semana, deve-se exercer um esforço constante de visualização, apoiado em fotografias ou outros materiais, durante a repetição ou chamamento. O ponto de concentração, plagiando neste termo Viola Spolin, é forçoso que seja a manutenção de uma imagem na mente, correspondente ao nome. Não exactamente uma imagem fiel, dado isso não existir. Mantém-se o pequeno diário.
Com os seus conhecidos, o actor praticante deve subtilmente ir encarnando dentro de si as vozes que por esta altura já o devem incomodar, guardando segredo dos processos que explora, imaginando que a sua boca, ao falar, se situa ou no umbigo ou nos órgãos sexuais. Caso fale com encenadores, faça-se munir de uma cruz, de alho, de um martelo, e de inteligência superior, o tipo de inteligência superior que só é permeável a manifestações simples de sinceridade. Entretanto, e ao mesmo tempo, seja o mais frágil que puder.
Na terceira semana assimile na imaginação, em simbiose, o seu próprio corpo físico ao corpo do homem ou da mulher que possuíram o nome, enquanto o repete, a repetição sempre exaustivamente constante, olhos agora preferencialmente sempre fechados. Não foi dito até agora mas um dos nomes deve ser o seu, na ordem que desejar, embora eu recomende que seja impreterivelmente ou no princípio ou no fim da lista. Prepare-se com humildade para a experiência curiosa de assimilar na imaginação o seu corpo com o seu corpo. Mantém-se o pequeno diário.
Na quarta semana, abra os olhos, e veja à sua frente, sentado numa cadeira em tudo igual à sua, em posição corporal em tudo igual à sua, olhando para si nos olhos, o possuidor do nome que repete e do corpo que assimila. Para a sua sanidade mental aconselho a que crie por esta altura um gesto ou uma acção que, independentemente do trabalho específico no Congresso, marque para si o princípio e o fim da sessão, de forma inapelável. Isto fica ao seu critério. Estude nas tradições teatrais e não só, as formas estereotipadas de começar e acabar, e decida. Se não o fizer, perderá o controle. Estude com amor e atenção a biografia de, por exemplo, Artaud. De um modo ou de outro, prepare-se para sofrer.
Caso se sinta a perder o controle, não cometa jamais o erro de se achar forte ou racional. O inconsciente é antigo e goza com as nossas idiossincrasias de poder. É preferível fazer amor com o diabo do que ser violado/a por ele. Caso, mesmo assim, encontre prazer na ideia de ser violentamente possuído ou possuída pelo sonho, caso esteja tão preso ou presa numa teia de racionalidade para ser essa a sua única saída honrada, deixe-se violar sem pudores. Ostente as suas feridas como quem ostenta um precioso prémio e procure o seu consolo no vício de rir ruidosamente. Mantenha sempre o pequeno diário como uma subtil concessão à continuidade do tempo e da sua ilusão construída, a identidade.
Passou-se um mês. Comece a incluir no diário, se não o fez antes, descrições de quaisquer acções físicas que o sonho lhe revele, bem como observações de movimento, e apenas de movimento, que no seu dia se revelem como não comuns. Não force a memória do supostamente extraordinário, force antes a lembrança daquilo que para si é estranhamente comovente, para lá de qualquer sentido ideológico ou meramente social. Explore a observação tanto daquilo que lhe é repugnante como daquilo que lhe agrada.
Na quinta semana, inclua uma pequena variação, que podemos denominar de fole. Pense no ferreiro que com o seu fole aumenta ou diminui a intensidade do fogo. Com a expiração abra os olhos, com a inspiração feche-os. Ao contrário do que é vulgar achar-se é na inspiração que o corpo se abandona. Com a expiração faça sair de si o corpo do nome que repete, e que está assimilado ao seu, para a sua frente olhando para si nos olhos, com a inspiração e os olhos fechados volte a incorporá-lo em si, cultivando a sensação que à sua frente, por detrás dos seus olhos fechados, se encontra você mesmo olhando para si, olhando para você e vendo o corpo do indivíduo cujo nome você repete. Seja claro na formulação deste desejo de ida e volta. Mantenha acima de tudo a concentração e a repetição exaustiva.
Neste ponto, antes de avançar para as sexta, sétima e oitava semanas, gostaria de divagar para uns assuntos alheios e relatar aleatoriamente alguns pontos que por si podem ter muito pouco em comum, tanto com este texto como entre si. Vou deixar correr um pouco o meu espírito. Não. De modo algum. Não há nada a relatar. Continuemos sem fait-divers. Sujemo-nos mais um pouco porque não há nada pior do que a obsessão pela limpeza, a sabedoria é suor, tem odores intensos que se propagam pelo ar como as feromonas de insectos no cio. Começo a ter uma irreprimível vontade de continuar este texto em vernáculo, mas resisto. É preciso manter um certo decoro, pontuado por expirações excessivamente sonoras.
Portanto, ia iniciar a descrição da sexta semana, em que algo muda. Pegue nos nomes da sua lista, um a um, e submeta-os ao seguinte processo cortante e recombinatório, exemplificado num nome ao acaso que esperemos que não faça parte da sua listagem, metódica e consciente: Florindo Ladislau Hermenegildo. Censure as letras que se repetem e temos florindasuhermeg. Recombine de modo a criar aquilo que em certos meios se chama um nome bárbaro de evocação e temos, entre múltiplas hipóteses, Sermeg Roin Dafluh. Para Konstantin Stanislavsky isto dá konstailvy e Vkonta Syvil. Vkonta Syvil portanto ficará. E não, não se preocupe com a minha saúde mental, preocupe-se antes e deveras com a sua saúde social.
Depois de ter assim escalpelizado cada um dos seus nomes, decore o resultado com o fervor de uma criança a papaguear ritmicamente a tabuada e serão essas, essas palavras prenhes de sonoridade e vazias de significação imediata que repetirá internamente para si próprio. Faça-o com os olhos abertos e vendo com a sua imaginação você mesmo à sua frente, de preferência nu, ou nua. E escrutine-se. Assuma completamente na visualização o corpo imaginário das entidades que antes tinham um nome reconhecível, como sendo a parte de si que a si se olha e escrutina. Faça-se impiedosamente passar pelo crivo dessa visão que não sendo originalmente a sua agora também já o deverá ser. Atravesse o abismo que permite à imaginação metamorfosear-se em presença. Não se esqueça de tudo apontar no pequeno diário e, principalmente, abra e encerre a sessão com um gesto definido em que possa crer.
Divirta-se, junto dos seus amigos e se assim o desejar, a discorrer demoradamente, com o máximo da seriedade e empenho berrado, acerca das geniais teorias do máximo expoente do teatro aborígene australiano por si recentemente descoberto, Sermeg Roin Dafluh, companheiro inseparável do grande director teatral da Mongólia, o perspicaz Vkonta Syvil.
Mas nunca se denuncie.
Nunca, nunca, mas nunca de nunca, se denuncie. Aconselho-lhe isto com um murmúrio, com um suave sussurro. Depende deste factor essencial a correcta germinação do segredo em si, segredo esse que é demasiado real mau grado o cariz humorístico que a mim me caiba neste momento demonstrar. Limito-me a piscar-lhe o olho com a cumplicidade do afecto, para que não nos tornemos ambos excessivamente pesados.
Na sétima semana una numa única frase todos os novos nomes por si forjados, não os repetindo agora um a um mas espraiando-os numa longa frase rudemente similar a uma encantação. Exponha esta frase internamente ao mundo com os olhos sempre cerrados durante a hora de trabalho. Preste, se já se esqueceu deste pormenor, especial atenção ao alinhamento da sua coluna vertebral. Cultive a certeza sensorial de que todo o espaço em redor de si está povoado da presença dos seres sobre os quais trabalha. Cultive fortemente a impressão de que, caso abrisse os olhos, os veria fisicamente manifestados à sua frente e atrás de si, aos seus lados, acima e embaixo. Mas não abra os olhos. Seja nisto ingénuo/a como uma criança que fecha os olhos na expectativa de ver o mundo desaparecer.
Na oitava semana, e porque tudo deve terminar numa certa altura, nada faça a não ser, após os preparativos iniciais, deitar-se no chão na posição da estrela, rosto para o tecto com os braços e as pernas abertos e estendidos ocupando a maior porção de espaço que for capaz. Regresse cada vez mais à percepção física do coração e da respiração e deixe-se vaguear, deixe-se sonhar. Deve procurar o padrão respiratório associado ao sono profundo, mas não se deve deixar adormecer. Seja passivamente preciso/a. Durante esta semana leia várias vezes o seu diário mas não escreva mais nada, ou comece um novo. Queime, ofereça, ou esqueça o anterior. Enterrá-lo é, desde tempos imensamente recuados, uma opção aceitável, e frutuosa. Se quiser, e se não os tiver destruído, que é a mais aconselhável das opções, recupere de volta os seus livros.
Neste seu primeiro esboço forçosamente grosso o Congresso terminou. As variações e os pequenos pormenores decisivos são inúmeros e devem ser individualmente supridos, neste caso particular deste texto, e do seu contexto. Grande parte deles e da sua natureza devem já ser por si ligeiramente entrevistos.
Caso isso não aconteça ocupe então o tempo precioso que lhe resta a dedicar-se a uma actividade perfeitamente inútil. Faça “teatro”. Faça muito “teatro”. Faça cada vez mais e mais e mais e mais e mais “teatro”. Imite o brutal mugido de um touro bravo e vá dar de cornos contra a porta gritando veementes olés pontuados com dores de fuça. Quem sabe se um dia a sua cabeça abrirá.
Ilustrações: esculturas de Alberto Giacometti