Por Passa Palavra
Nos próximos dias ocorrerão dois importantes debates que têm tudo para dar relevantes contribuições à reflexão sobre um tema central para a teoria e para a prática da chamada “esquerda” brasileira. “Esquerda” aqui, bem entendida, em sentido amplo do termo: que remete a toda uma tradição histórica dos oprimidos e das oprimidas, não necessariamente auto-denominadas como sendo pessoas “de esquerda”. Autodenominação afinal que, nos últimos tempos, como tantas outras denominações, pouco ou quase nada têm ajudado a discernir verdadeiramente quem é quem.
Pois então: o primeiro dos debates ocorrerá neste sábado (13/03), a partir das 14hs no Memorial da Resistência da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Mais um da série “Sábados Resistentes”, desta vez com a seguinte temática: “As reformas de base do pré-1964 e a sua atualidade”. Relembrando os 46 anos do histórico “Comício da Central do Brasil” (13/03/1964), em que Jango [João Goulart] anunciara importantes avanços das reformas de base propostas por seu governo, atiçando assim ainda mais os ânimos da ultradireita brasileira, fazendo-a acelerar na sequência o golpe civil-militar. Com o objetivo de discutir aquele contexto e “a sua atualidade”, na mesa estarão debatendo João Vicente Goulart – filho do ex-presidente deposto e depois estranhamente morto, Jango; o jornalista e ex-preso político Ivan Seixas; o ferroviário e ex-preso político Roberto Martinelli; e a historiadora Maria Aparecida Aquino. O debate também será transmitido ao vivo na internet, pela VIATV, numa parceria desta com o Núcleo de Preservação da Memória Política, o quê possibilitará às pessoas de outras cidades acompanharem diretamente e levantarem suas questões ao debate.
Na próxima semana, mais precisamente na quinta-feira (18/03), ocorrerá o lançamento do livro O que resta da ditadura: a exceção brasileira [Edson Teles e Vladimir Safatle (orgs), Boitempo Editorial, SP, 2010, no prelo]. Os debates deste dia estão sendo chamados para o Auditório da Faculdade de História da USP, e se darão em torno de dois temas não menos centrais: às 17h00, “Por que a verdade precisa de uma comissão?”, com o autor Edson Teles, o jurista Fábio Konder Comparato e a cientista política Glenda Mezarobba; e às 19h30, o tema “Políticas da verdade e da memória”, com ministro Paulo Vanucchi, o autor Vladimir Safatle e o professor de história da filosofia Paulo Arantes.
Ferida brasileira da Exceção
Ora, não se trata aqui de mera divulgação de eventos (a qual, em certas circunstâncias, já poderia ser muito importante). As tais atividades, em seu conjunto, valem uma nota reflexiva porque poderão jogar luz (ou colocar o dedo) na principal ferida histórica brasileira contemporânea: a continuidade e a atualidade do terror – não apenas político – intensificado pela ofensiva autoritária civil-militar de 1964. Em muitas medidas, um estado de sítio vivíssimo até hoje. Se não pior hoje… Vejamos:
Eis a tese defendida por um dos participantes destas mesas. O professor de história da filosofia da USP e da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), Paulo Arantes, desenvolve o argumento no ensaio “1964, o ano que não terminou” [presente na coletânea O que resta da ditadura: a exceção brasileira, Edson Teles e Vladimir Safatle (orgs), Boitempo Editorial, SP, 2010, no prelo]. Na sua opinião, o verdadeiro “fio da meada” da exceção brasileira contemporânea é justamente a contra-revolução iniciada com o golpe civil-militar de 1964: a seu ver um fio “nunca rompido”.
Paulo Arantes, que há poucos dias, em entrevista para a jornalista Tatiana Merlino, da revista Caros Amigos, a propósito de toda a reação conservadora recentemente desencadeada pelo simples anúncio do III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), localizou com mais precisão os dois pontos cruciais que, ao final das contas, estão em jogo para a Santa Aliança das elites brasileiras associadas ao verdadeiro imperialismo: “a grande propriedade e o poder punitivo encarregado de vigiá-la. Este último assumiu proporções exterministas a partir de 1964. Seus agentes continuam torturando e matando impunemente até hoje. Seletivamente é claro, de preferência, o povo miúdo e anônimo que rala do outro lado da linha que separa quem merece e quem não merece viver. A verdade verdadeira é que a União Sagrada desses setores, em torno de Deus, da Família, da Propriedade (e desde então, da Impunidade) nunca se desfez. Basta cutucar para a fera mostrar a cara. A procuradora Flávia Piovesan costuma falar em ‘continuísmo ditatorial’. Na origem deste drama interminável, a roubada trágica em que entraram as forças populares: sua pressão vitoriosa arrancou do ‘poder desaparecedor’, que estava saindo de cena, uma auto-anistia perene”.
Ou seja: o tal “fio da meada” intensificado nestas últimas décadas da história brasileira estaria situado na defesa intransigente da grande propriedade, rural ou urbana, a qualquer custo penal e/ou punitivo que isto possa ter. Um “alto custo” pago, na forma da violência desmedida, principalmente pelos “rapazes comuns” das camadas mais pobres (e majoritariamente negras) da sociedade brasileira. Não à toa as origens de organizações como a ROTA e outros grupos de extermínio estatais ou paraestatais datam exatamente dos primeiros anos da ditadura civil-militar. E, se em determinado momento estes grupos se focaram violentamente no extermínio das resistências (inclusive armadas) contra a ditadura civil-militar, eles já atuavam antes e seguiram atuando depois contra outros setores pobres da classe trabalhadora brasileira.
Ecos de uma tese que se espraia
Enfim: uma tese importante e provocativa, no melhor sentido do termo, que precisa ser discutida em profundidade. Uma tese que, à sua maneira, coincide por outras vias com o diagnóstico negativo, em prosa e poesia, do escritor ex-preso político Alípio Freire. Ele que, em entrevista recente ao Correio da Cidadania, afirma: “E se nós não julgarmos os terroristas, isto é, os agentes do Estado e civis organizados pela ultradireita, que tinham uma relação promíscua com agentes do Estado, com comunicação com ministros, como a Falange Pátria Nova e o CCC, continuaremos tendo torturas em nosso país, como nas periferias de grandes cidades, no campo e suas chacinas rurais… Se lembrarmos que, em maio de 2006, cerca de 490 pessoas foram assassinadas em seis dias por agentes do Estado, sem mais nem menos, por vingança à ofensiva do PCC, é algo terrível. É quase a mesma quantidade de assassinados durante toda a ditadura!”.
Alípio refere-se aqui aos Crimes de Maio de 2006, quando agentes do Estado de São Paulo associados a grupos de extermínio paraestatais, em uma suposta reação ao que foi chamado pela grande imprensa de “ataques do PCC” [abreviação de Primeiro Comando da Capital, entidade acusada de liderar presos e presas e coordenar ações criminosas], enfim, agentes estatais e paraestatais saíram atacando a esmo pelas periferias das grandes cidades do estado, vitimando sobretudo jovens negros e pobres. Tendo como saldo terrível, num período de cerca de 15 dias, mais de 500 assassinatos e/ou desaparecimentos – portanto mais mortos do que todas as vítimas fatais ao longo dos 20 anos de ditadura civil-militar. O Passa Palavra tratara do assunto em outras duas ocasiões: Mães de Maio da democracia brasileira e Do luto à luta: uma rede nacional de familiares de vítimas do estado?, entrevista com Débora Maria.
São indícios de um diagnóstico comum que não só pode como deve apontar para ações concretas, por exemplo, de solidariedade efetiva entre os familiares, ex-presos e outras vítimas da ditadura civil-militar e as atuais vítimas e familiares de vítimas do Estado Brasileiro democrático (como as Mães de Maio, as Mães de Acari, as Mães de Vitória da Conquista etc). Apontar para a luta comum pela defesa de uma Comissão da Verdade e da Justiça que apure não somente os crimes de lesa-humanidade cometidos pelo regime ditatorial anterior, mas que estenda as investigações e as punições aos responsáveis pelo atual genocídio cometido contra a população pobre e negra. Uma comissão que, a exemplo de tantos outros países que realizaram uma efetiva Justiça de Transição, contribua para o desmonte total deste aparato repressivo criado em 1964 e, de certa maneira fundamental, em vigor até hoje.
Conforme escreve o próprio Alípio Freire noutra passagem, desta vez poética: “DA TRAGÉDIA / Nós sobrevivemos / ao pau-de-arara. / Mas o pau-de-arara / também sobreviveu.”. E conclui na entrevista anteriormente citada: “Portanto, esse objetivo não é só nosso, dos que querem esclarecer o passado. Até porque memória sem presente e nem futuro é nostalgia ou narcisismo. O que procuramos é exatamente saber no presente como se constrói um país e se transforma isso aqui num lugar decente. Como ampliar direitos e criar isonomia. Por isso é importante se reportar ao passado, como uma arma de luta”.
A “Era das Chacinas” e da Criminalização
Ora, rumando para o final deste texto-convite à reflexão: sabemos muito bem que o quadro atual não é nada animador… De um lado, as políticas de extermínio e de verdadeiro genocídio programado contra a população pobre e negra nas cidades; e de outro lado, a criminalização intensificada e a tentativa de aniquilação de movimentos sociais brasileiros, com destaque para a ofensiva brutal especificamente contra o MST: ambos movimentos, na verdade, duas faces da mesma moeda da emergência.
Este ano de 2010 marca também os 20 anos da Chacina de Acari. No Rio de Janeiro, um dos movimentos mais combativos que tem defendido tese semelhante a esta que está sendo discutida aqui, é a Rede de Comunidades e Movimentos Contra Violência. Num texto recentemente divulgado pela Rede, “20 Anos do Caso Acari: Não ao Esquecimento, Sim à Justiça!”, como parte das mobilizações relacionadas aos 20 anos da chacina, propõe-se um marco para o atual período histórico, bem descrito e nomeado pelo texto: “o Caso Acari também marcou, portanto, o início da época da impunidade escandalosa em casos de crimes cometidos pelo Estado brasileiro contra seus cidadãos, após o encerramento formal do regime ditatorial iniciado em 1964, e o suposto advento da democracia no país”.
A “Era das Chacinas”, como eles nomearam o presente, pensando nas chacinas concentradas ou difusas do cotidiano da população pobre, negra, e dos movimentos sociais em plena democracia, está sendo marcada por uma série de massacres como o de Acari (1990), do Carandiru (1992), da Candelária e de Vigário Geral (1993), de Corumbiara (1995), de Eldorado dos Carajás (1996), da Praça da Sé e de Felisburgo (2004), da Baixada Fluminense (2005), os Crimes de Maio (2006), do Complexo do Alemão (2007), do Morro da Providência (2008), de Canabrava (2009) e de Vitória da Conquista (2010), entre muitos outros.
“Nunca na história deste país” precisaríamos tanto avançar na reconstrução radical da Verdade e da Justiça Históricas deste mesmo país, situando-a mundialmente. E parte fundamental dela talvez seja justamente que, muito mais do que mudanças democráticas e populares, estejamos vivendo profundas continuidades autoritárias e retrocessos antipopulares ao longo dos últimos 25 anos. Fora de dúvidas está que os nossos inimigos não têm cessado de vencer, e a montanha de corpos e ruínas provocadas pelo capitalismo beira os céus. Vamos encará-los todos?
ASSISTA AO DEBATE DO “SÁBADO RESISTENTE” (13/03, às 14hs) NO SEGUINTE SÍTIO: WWW.VIATV.COM.BR
Confira mais informações sobre os “Sábados Resistentes” no sítio do Núcleo de Preservação da Memória Política.
Confira mais informações sobre o livro O que resta da ditadura: a exceção brasileira [Edson Teles e Vladimir Safatle (orgs), Boitempo Editorial, SP, 2010, no prelo] e sobre o seu lançamento no sítio da Boitempo Editorial.
Veja a continuação aqui.