“Coração cêntrico dos zapatistas perante o mundo”: resistir aos ataques e provocações do mau governo, e ao mesmo tempo conseguir progressos na autonomia da vida comunitária, nas suas diversas vertentes. Por Brigada Europeia em Apoio aos Zapatistas

Informação

1-2010-07-06-oventikA Brigada Europeia de Solidariedade com os Zapatistas foi recebida no El Caracol II de Oventik, Coração Cêntrico dos Zapatistas perante o Mundo. Depois das inevitáveis medidas de controlo num contexto em que a prudência é indispensável, fomos convidados para uma conversa com a Junta de Bom Governo. Cada uma e cada um fez uma breve apresentação e a seguir um porta-voz da Brigada expôs os objectivos da nossa iniciativa apresentando o comunicado que explica o carácter político desta brigada.

Depois, expostas por um segundo porta-voz, foram feitas as perguntas relativas aos diferentes temas que desejamos abordar, na perspectiva de recolher informações para uma ampla difusão susceptível de levar e partilhar a palavra e a experiência zapatistas até a Europa.

Situação actual

A primeira pergunta de uma longa lista toca o tema da situação actual e das agressões recentes no território de Oventik.

A Junta de Bom Governo [JBG] começa pelo caso de San Juan Cancuc, com a agressão que teve lugar em El Pozo a 21 de Junho de 2010. Como sempre, o mau governo serviu-se de um pretexto para atacar a autonomia por meio de um conflito instrumentalizado. Desta vez, nesta comunidade, a justificação para o conflito foram os cortes de luz e água por parte do mau governo. Os compas, que reivindicam o direito ao acesso a estes recursos, responderam de forma pacífica tentando chegar a um acordo para recuperar o acesso à luz e à água. Mas o mau governo, que quer acabar com a organização autónoma zapatista, mandou os seus seguidores da comunidade vizinha para provocarem uma confrontação. Entraram muitos “partidos” com ferramentas e armas brancas para provocar problemas. Perante esta agressão, os compas responderam de forma pacífica, tratando de convencer os provocadores de que eram irmãos, da mesma comunidade, e a não caírem na armadilha da confrontação. Mas eles atacaram-nos com as suas ferramentas e armas e os compas não tiveram outra hipótese senão defenderem-se. Houve vários feridos graves, dois com fracturas no crânio e um deles, até, com exposição de massa encefálica, e mesmo mortos. Até agora restam 5 companheiros no Cereso 5: Miguel Méndez Sánchez e Diego Martínez Sánchez, assim como um companheiro no hospital, Miguel Pérez Hernández. Os companheiros da comunidade tiveram de fugir e continuam deslocados.

Com este tipo de provocação, e através da sua política de divisão, o mau governo pretende golpear a organização zapatista.

A JBG referiu que, em Polhó, ainda não há condições para que os companheiros deslocados possam regressar às suas comunidades, mas continuam firmes na luta. “Não acabámos de exercer o nosso direito à autonomia”.

Também nos foram referidos pela JBG os problemas das terras recuperadas em 1994, que o mau governo tenta recuperar de diferentes maneiras. Uma delas é o projecto de “Cidade Rural” cujo objectivo é vender o território e os recursos naturais. No território de Oventik, é o caso de Santiago Pinar, onde já foi iniciada a construção das primeiras casas e edifícios do projecto que transforma a aldeia em “cidade”. Trata-se de impor à comunidade um projecto turístico com grandes interesses urbanísticos de investidores estrangeiros.

Finalmente, a JBG descreveu-nos as diferentes estratégias de divisão do mau governo. Além das provocações por meio de grupos instrumentalizados e armados, também referiram que o mau governo se serve da religião. Como lhe é cada vez mais difícil convencer as pessoas por meios políticos, usa a religião como meio de contra-insurreição. Várias seitas religiosas aparecem nas comunidades e instilam a ideia de que a luta não é boa; que, se não temos o que comer e com que viver, é por vontade de deus e o único caminho é rezar, não lutar.

Perante estes ataques directos ou indirectos do mau governo, os companheiros continuam firmes na ideia de resistir com base na consciência e na organização. A resistência responde politicamente a qualquer ataque do mau governo, recusando tudo o que daí vem (dinheiro, materiais, “serviços”) e organizando a autonomia (escolas, clínicas, …) com base na aldeia. A resistência ao nível das zonas de trabalho é a forma escolhida, respondendo às agressões com a construção da autonomia “pouco a pouco”. E quando há qualquer problema, procuram a forma de fazer justiça para resolvê-lo por meio da palavra e de forma pacífica.

Os avanços da autonomia: a agro-ecologia

Um companheiro coordenador da área da agro-ecologia apresentou-nos os avanços do projecto de agro-ecologia, ou seja, como se preservaram a terra e os recursos naturais como a água, a floresta… Esta área funciona com a participação das comunidades onde a ideia já está difundida mas, segundo o compa, ainda não há muitos progressos.

Os promotores explicam como usar produtos orgânicos sustentáveis porque a natureza é muito importante e não se pode mudar a lei que a rege. São usadas as ideias de não utilizar químicos porque provocam problemas de saúde da terra, se aplicados em excesso.

“Tudo o que tiramos da terra”, diz, “temos de o devolver e por isso devem ser usados adubos orgânicos, naturais. É o oposto do capitalismo que exige mais e mais da terra sem lhe devolver nada”. Com a agro-ecologia evita-se a contaminação e a destruição da floresta e dos animais. A ideia é criar uma nova agricultura.

A alimentação é uma parte importante da luta e, explica-nos o companheiro, uma das exigências da luta zapatista é o direito de possuir os meios de produção, ou seja, a soberania alimentar, e não depender de grandes produtores ou de empresas como a Monsanto. Trata-se então de ensinar às aldeias como produzir sem danificar a terra, sem contaminar.

Os promotores recebem assistência técnica e formação conforme as prioridades. Por exemplo, em Oventik, existem diversos microclimas e, em função do clima, dos costumes e das prioridades das aldeias, assim se executam trabalhos diferentes.

Quanto aos combustíveis, o mau governo diz que é preciso, não usar menos combustíveis, mas combustíveis menos contaminantes. O problema é que os agricultores passam a reservar o milho para os combustíveis, e a alimentação dos humanos passa a segundo plano. Se deixarem de produzir o milho começam a depender de terceiros e perdem a soberania.

Diz-nos o compa que tudo isso avança devagar, que ainda falta formação para os promotores porque os resultados não são rápidos.

Os promotores também ensinam a fazer adubos orgânicos (minhocas, foliáceos, composto). Uma vez formados, ficam com o compromisso e a responsabilidade de partilhar as suas experiências. Também trabalho sobre os tipos de trabalho colectivo, como a criação de gado e a aquicultura, propondo (e não impondo) formações.

Quanto ao trabalho colectivo, o problema com que se debatem é a educação individualista que existe. A ideia do colectivismo é que ninguém tem mais ou menos e a sua aplicação implica a dificuldade de se acostumar a outro modo de vida nas comunidades. O trabalho colectivo também precisa de dinheiro para iniciar projectos, e é difícil consegui-lo. Através da comissão de agro-ecologia é dado apoio aos que possam desenvolvê-los.

Também se promove a conservação das sementes nativas, consciencializando as comunidades para não dependerem de sementes compradas. Trabalham com “A semente da resistência” cujo projecto é conservar e partilhar sementes (em África, na América, …) e resistir às sementes transgénicas. Também estão em contacto com a Via Campesina que lhes deu muitas informações sobre a sua luta, muito parecida com a sua, e lhes propuseram a partilha de experiências.

Até agora, em Los Altos, não foram detectados transgénicos mas há o perigo dos mal chamados “apoios” do mau governo. Sabe-se que já se encontram transgénicos na Costa. Como consideram que a educação é a base de todo o sistema, ela é também fundamental para difundir as ideias e os princípios da agro-ecologia. Assim terminou a exposição muito completa do companheiro sobre agro-ecologia e, embora ele diga que não há muitos progressos, nós vemos que são muitos e em diversas frentes.

Os avanços da autonomia: as cooperativas

2-2010-07-06-oventik-_3_As cooperativas começaram por se desenvolver com a questão do café, como forma de vender o produto em melhores condições do que aos “coyotes” [especuladores intermediários]. Em Oventik funciona a cooperativa Yachil. Também há cooperativas de mulheres, que começaram antes de 1994 com o artesanato. Há também uma cooperativa de sapatos e artigos em pele.

Os avanços da autonomia: as mulheres

Uma companheira da Junta expôs-nos o estado de avanço quanto ao papel das mulheres na sociedade zapatista. No Caracol de Oventik há três cooperativas de produção e distribuição artesanal que nasceram da iniciativa de mulheres. A produção está muito centrada no fabrico de roupa e de objectos herdados da cultura tradicional, mas na sua maioria actualizados com a introdução de símbolos da luta zapatista.

A presença das mulheres também sobressai entre os promotores da saúde. E, claro, é feita referência à Lei Revolucionária das Mulheres, que define uma total igualdade de direitos.

No entanto, a companheira não esconde que, no campo da vida privada, embora tenha havido progressos importantes, há ainda muito por fazer. As próprias mulheres têm de avançar no terreno da auto-emancipação e ainda são muitas as que não intervêm activamente na vida comunitária.

Sem antecipar sobre o tema da saúde, convém sublinhar que a existência de um serviço de ginecologia na clínica La Guadalupana permite a realização de planeamento familiar e coloca à disposição das mulheres tanto a informação como os meios contraceptivos necessários para que a maternidade não seja uma obrigação mas uma decisão livre.

Os avanços da autonomia: a comunicação

Quanto à comunicação, existem 3 rádios comunitárias para difundir a palavra zapatista. Além disso, na Promedios há acesso à internet e à gravação de vídeos.

Os avanços da autonomia: a saúde

“Há uma pequena história que nós não esquecemos: o que queríamos era que os nossos filhos e filhas se tornassem médicos, cirurgiões… era esse o plano, conseguir isso. Na realidade não é uma história, é uma construção”. A Brigada é recebida dentro da Clínica de Guadalupana por quatro companheiros e companheiras representantes dos promotores de saúde do Caracol de Oventik. Explicam-nos que um promotor de saúde é ao mesmo tempo um trabalhador e um formador. Assim pode considerar-se que o seu cargo é triplo: formar-se, exercer e transmitir os seus saberes. Por isso o sistema de saúde conta com promotores de nível 1 e de nível 2.

Já em 1989, ou seja, muito antes do levantamento de 1994, nesta zona, o movimento zapatista demonstrou a sua preocupação com as questões relativas à saúde quando duas companheiras começaram o trabalho de promotoras mal-grado a sua inexperiência e os poucos medicamentos disponíveis.

Em 1992, a adesão de um médico hospitalar permitiu a constituição de uma estrutura local de saúde. Desde então, o desenvolvimento do sistema de saúde dentro do Caracol de Oventik permitiu a criação de 11 microclínicas e de 40 casas de saúde repartidas pelos municípios, onde exercem 332 promotores de saúde. Nele foi incluída a clínica central de Guadalupana, centro do dispositivo de saúde.

A seguir os compas indicam as orientações escolhidas para o desenvolvimento de uma medicina autónoma. Em primeiro lugar, e sem desleixar a medicina alopática [que combate as doenças por meios contrários à natureza destas], trata-se de preservar, reconstruir e transmitir a herança de uma medicina natural que deu provas na comunidade. Para isso, a clínica central destinou um espaço para a constituição de um ervanário que se pretende um recurso destinado às clínicas da zona.

4-2010-07-06-oventik-_15_Em separado, neste ano de 2010, está sendo terminado um primeiro programa dedicado à vacinação e à prevenção sobre o tema da higiene. Este programa foi desenvolvido em todas as comunidades do território Oventik. Quanto à vacinação, a campanha foi dirigida a todas as crianças da zona, pertencentes ou não à família zapatista. No campo da prevenção, trata-se de promover costumes de higiene assim como de generalizar o uso do tratamento da água e os banhos [banheiros] secos.

Com o fim de melhorar a qualidade tanto das intervenções como das formações, as clínicas funcionam em rede, onde cada uma designa um coordenador de saúde. Uma coordenação geral reúne-se regularmente na clínica central. Também foi constituída a nível central uma organização chamada Osimech cuja tarefa é registar as necessidades em toda a rede e tentar resolvê-las com uma busca de formação, de apoio financeiro e de apoio de equipamentos e medicamentos.

No entanto, os compas insistem na necessidade de se conseguir progredir na identificação das patologias infantis para combater uma taxa de mortalidade ainda demasiado alta. Além disso, há o problema das comunidades mais afastadas para as quais não existe nenhuma estrutura de saúde. No estado actual de desenvolvimento da autonomia sanitária, as estruturas existentes já cobrem muitas necessidades. No entanto ainda não conseguem responder às patologias mais graves e o serviço de cirurgia apenas se encarrega de intervenções ligeiras.

O objectivo futuro é poder responder a esta necessidade de competência especializada. No sistema de saúde de Oventik propõem-se consultas à população local, sem distinção quanto à sua pertença ao movimento zapatista. Para a consulta, como para parte dos medicamentos, pode ser pedida uma pequena contribuição que permita sustentar os promotores (alimentação) e abastecer a farmácia.

Quando acabou esta exposição, uma jovem companheira promotora de saúde guiou-nos pelos diferentes serviços hospitalares da clínica central: consulta de medicina geral, oftalmologia, dentista, ginecologia, bloco operatório, ultrassons, laboratório de análises, … e, por todo o lado nas paredes, informações preventivas relativas aos hábitos de higiene. Também nos diz que a clínica central dispõe de três ambulâncias e está aberta 24 horas. Naturalmente, os equipamentos são ainda modestos e as necessidades ainda grandes, mas a oferta não pára de crescer e, como dizem os compas, a autonomia constrói-se pouco a pouco.

Os avanços da autonomia: a educação

7-2010-07-06-oventik-_27_Dois compas promotores de educação recebem-nos num salão da escola. Aqui em Oventik, a educação tem dois níveis: primário e secundário. O ciclo primário conta com 6 anos de prática, e o secundário com 3 anos.

Para a história da educação no Caracol, foi no ano de 2000 que se abriu o primeiro ciclo do secundário. Seguindo o princípio dos promotores de educação, no fim do primeiro ciclo de 3 anos os alunos tinham adquirido os saberes e as competências necessários para, por sua vez, assumirem o papel de promotores. Em 2003, foi com eles que se abriu o ciclo primário em todos os municípios. Os compas insistem na necessidade de oferecer um modelo de educação que corresponda às necessidades do povo. A escola institucional impõe a língua castelhana a crianças que não a falam. Exerce um duplo efeito de produção de fracasso escolar nas comunidades indígenas e de empobrecimento dos idiomas maternos.

Na escola autónoma fala-se com as crianças na sua língua materna (o tzotzil para a zona de Oventik) mas também aprendem o castelhano que é a língua de comunicação com comunidades de outros idiomas. A escola autónoma deve manter um papel de preservação da língua materna, tanto oral como escrita.

Outra necessidade importante do povo é o que os compas chamam consciencialização. Uma consciencialização política, económica e cultural que se define em três eixos: o desenvolvimento das competências analíticas, críticas e criativas. Além disso, a parte da história tem uma grande importância neste esquema educativo. Trata-se, para os povos indígenas, de conservar o conhecimento das suas origens: quem eram os primeiros povos da América? Que faz a história da colonização e dos que a combateram? Toda esta parte da história ocultada pela escola oficial… A escola autónoma quer também transmitir uma cultura ancestral com o conhecimento das suas crenças, tradições, modos de vida…

Os compas promotores enumeram-nos a seguir o conjunto das áreas de conhecimento desenvolvidas nos dois níveis de educação. Trabalha-se a leitura, a escrita, as matemáticas, e também as ciências sociais (história, cultura, economia, política) e as ciências naturais (agro-ecologia, diversidade ecológica, protecção do meio ambiente) com o compromisso de construir uma relação com a realidade social e económica das comunidades. Esta mesma preocupação por estar sempre perto da realidade abre os campos da educação a aprendizagens como cozinhar ou trabalhar a terra.

Quanto à organização prática, o ano escolar é intercalado com períodos de interrupção a que os compas não chamam férias mas “mudança de actividades”, já que os alunos, quando deixam a escola, têm diversas tarefas a seu cargo na família ou na comunidade. A escola é obrigatória para o ciclo primário, as crianças e os adolescentes frequentam as aulas cinco dias por semana.

O ciclo secundário, de momento, só existe dentro do Caracol. Assim, ainda não é possível oferecer este nível de educação a todos os adolescentes. Funciona no regime de internato; cada aluno regressa a casa de duas em duas semanas e volta ao Caracol com uma reserva de alimentos suficiente para cobrir o período seguinte. As aulas são das 8 às 15 horas e as tardes são dedicadas a actividades livres, como o desporto, as artes, a leitura ou o artesanato.

Quanto aos projectos de futuro, procurar-se-á estender a educação secundária para além do Caracol e dispor de um número suficiente de promotores de educação, uma vez que terminem o ciclo secundário, para que, em cada comunidade, a educação primária esteja plenamente assegurada.

Haverá também que imaginar a criação de um terceiro nível de educação e pôr em marcha aulas de alfabetização para os adultos. “Há muito por fazer, mas a autonomia constrói-se pouco a pouco”.

Original em castelhano aqui. Tradução: Passa Palavra

[FIM DO 2º DIÁRIO]

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