Neste Diário sobre o Caracol de Morelia, por comparação com os anteriores, sobressaem os aspectos práticos que asseguram a democracia autêntica e a soberania da base popular nas comunidades, em todos os níveis. Por Brigada Europeia em Apoio aos Zapatistas

Chegámos ao Caracol Morelia que está organizado em três Municípios Autónomos, que abarcam 13 regiões, as quais incluem dois diferentes povos autónomos.

3-2010-07-10-morelia-02Somos recebidos calorosamente pela Junta de Bom Governo “Corazón del Arco Iris de la Esperanza” e representantes das comissões de educação, saúde, comunicação e vigilância. Depois das boas-vindas, foram as apresentações de cada membro da Brigada e dos companheiros representantes do Caracol de Morelia. Em seguida formulámos as nossas perguntas, que se centram em dois aspectos: sobre os conflitos actuais que vivem neste momento nas comunidades e sobre os progressos da autonomia.

Informam-nos de que neste momento há conflitos com os grupos paramilitares da OPDDIC e da ORCAO. O maior conflito situa-se nas comunidades bases de apoio zapatistas de Bolom Ajaw e Água Clara, assim como em San Sebastián Bachajón, que são todos aderentes da Outra Campanha e territórios de grande riqueza natural. Por trás dos conflitos escondem-se interesses de transnacionais turísticas e farmacêuticas. Bolom Ajaw e Bachajón ficam perto das cascatas de Água Azul que fazem parte das rotas de turismo de massas e, se bem que a situação pareça mais calma, continua a haver problemas. Na guerra de baixa intensidade, o governo provoca conflitos por meio de projectos que oferecem dinheiro às pessoas para dividir a comunidade. “A resistência das comunidades consiste em organizarem-se, não aceitarem ajudas do mau governo e avançarem com a autonomia”.

Foi importante a explicação sobre os progressos da autonomia zapatista, “onde o povo manda e o governo obedece”. Toda a estrutura política se baseia nas comunidades, que se organizam em regiões e municípios que constituem o Caracol de Morelia. Cada nível funciona com assembleias onde se tomam decisões, se elegem as autoridades e os promotores das diferentes áreas como educação, saúde, agro-ecologia, comunicação, justiça, etc.; são cargos temporários, rotativos e não remunerados. Em cada região, reúnem-se em assembleia os representantes de cada comunidade para eleger a JBG [Junta de Bom Governo]. Os membros da JBG são eleitos por três anos e a cada oito dias há mudança de turno, com cinco turnos ao todo. Cada turno tem os seus delegados e a sua vigilância que controla o governo, sobretudo no que respeita às finanças; de três em três meses têm de prestar contas ao povo. Através da JBG são criadas comissões que coordenam as diferentes áreas com as autoridades municipais e comunitárias. Também se organizam trabalhos colectivos de comunidade, de região e de município.

Os coordenadores de saúde informam-nos sobre a organização e os progressos na saúde autónoma: actualmente há 3 clínicas e 10 casas de saúde nas 13 regiões; há 160 promotores de saúde no Caracol que não trabalham apenas nas clínicas, pois cada comunidade tem os seus promotores de saúde que se preocupam com a prevenção por meio de conversas com a comunidade assim como com o atendimento dos casos de doenças ligeiras; os casos graves são atendidos nas clínicas onde, além da consulta de medicina geral, há consultas de dentista e ginecologia e análises clínicas, e fazem-se vacinas e conta-se com uma farmácia com medicamentos naturais e químicos. A medicina natural tem muita importância em todos os níveis de saúde: são preparados xaropes, tinturas, pomadas, etc., recuperados da medicina tradicional. A consulta não é paga, o medicamento é, pois há que reabastecer a farmácia. Às casas de saúde e às clínicas zapatistas também acorrem pessoas que não pertencem às comunidades. Muito do material das clínicas foi comprado com a ajuda internacional, e assim é ainda hoje; há necessidade de diversos materiais como termómetros, balanças, manómetros, e o orçamento para medicamentos patenteados é reduzido, daí a necessidade de cobrar pelos medicamentos. Os casos graves que precisam de cirurgias são transferidos para hospitais privados não-zapatistas porque, nas clínicas, de momento, não há blocos operatórios.

Embora ainda faltem materiais e equipamentos, há grandes progressos nas condições de vida e de saúde das comunidades zapatistas; não esqueçamos que antes do levantamento de 1994, Chiapas estava entre as zonas do planeta com maior mortalidade infantil. Os casos que mais se atendem na clínica são a gripe e a diarreia, que antes eram causas de morte.

19-2010-07-09-morelia-26Posteriormente fomos visitar a clínica El Salvador, do Município 17 de Novembro, onde nos mostraram os consultórios e a farmácia, onde há medicamentos naturais preparados por eles próprios. Aí são formados os promotores de saúde, propostos pelas próprias comunidades. Existem três níveis de formação e os que atingem o terceiro nível exercem a coordenação e as consultas. Trabalham em quatro turnos de quatro dias cada um; existem horários de consultas mas os promotores estão de prevenção as 24 horas e atendem as urgências.

Os coordenadores da educação falaram-nos dos progressos da educação autónoma; à pergunta sobre se a educação é obrigatória e até que nível, responderam: “A educação é obrigatória até à velhice”, destacando a importância da educação na construção da autonomia. A educação começa entre os três e os quatro anos, e também há classes para adultos. A educação primária está estruturada em três níveis e a secundária em três graus que duram o tempo necessário a cada aluno. Cada criança tem de ter pelo menos dois níveis de primária; os alunos que terminam o secundário poderão ser promotores de educação.

A escola é organizada a partir da assembleia da comunidade; o povo nomeia os promotores que recebem oficinas de formação, mas têm de ter feito o secundário. Estes não recebem salários: a comunidade colabora para cobrir as suas necessidades (feijão, milho, …); por vezes, as pessoas da comunidade trabalham na sua milpa [1], de acordo com a organização de cada povo. As escolas locais têm aulas de segunda a quinta-feira. Existem comissões de educação de região, de município e de zona. Em cada região existe uma escola secundária e, como os alunos têm de se deslocar, as escolas secundárias têm dormitórios onde podem ficar. De duas em duas semanas regressam às suas comunidades, onde permanecem outras duas semanas.

As aulas são na língua materna mas nos níveis superiores também estudam em espanhol [castelhano]. As matérias [programas de ensino] são as mesmas em todo o Caracol e incluem: leitura e escrita, matemáticas, natureza, geografia, educação política, história e cultura próprias, arte e música. Por vezes, no secundário, também há uma horta para os alunos e alunas cultivarem as suas plantas e verduras.

A educação autónoma começou em 1999; e neste ano de 2010 completa os estudos a primeira geração do 3º grau da secundária técnica.

As autoridades da JBG falaram-nos dos progressos do trabalho colectivo. Há cooperativas a nível regional, municipal e de zona. Funcionam em assembleias a nível local e têm a sua própria direcção composta de presidente, secretário e tesoureiro. Há cooperativas de comércio (os povos nomeiam os seus próprios lojistas durante um mês), de sapatos, de artesanato, de café, etc.; alguns destes produtos vendem-se noutros países através do comércio solidário. Há muitas cooperativas de mulheres nas comunidades, as quais têm um papel muito importante para a promoção das mulheres, por meio da independência económica.

13-2010-07-09-morelia-14Também nos informou a JBG sobre os progressos da agro-ecologia. “Foi elaborado um plano sobre como se deve tratar a terra e no território zapatista faz-se o seguinte controlo: proteger os recursos naturais, não cortar as árvores, senão a água secará”. Na escola, as crianças são educadas para protegerem a floresta e os mananciais; também se fazem assembleias de zona para educar as comunidades e foram nomeados responsáveis para que isto seja cumprido, pois é da máxima importância na construção da autonomia. Os idosos são uma referência para a educação; tomam a palavra para transmitir a sua experiência e as crianças aprendem enquanto povo.

Os coordenadores de comunicação explicam-nos os progressos da comunicação no território do Caracol: em cada um dos municípios existe uma rádio comunitária, foram nomeados promotores de comunicação que receberam uma formação ao nível municipal; fazem turnos semanais na rádio. A rádio funciona todos os dias, sempre que não haja problemas técnicos ou não lhes cortem o sinal; é um instrumento importante para explicar a autonomia e para difundir a luta zapatista. A programação abrange problemas da saúde e da educação, saudações de companheiros, …, e são feitas entrevistas a pessoas idosas que transmitem a sua experiência e difundem a sua experiência, informações, etc., tudo isso acompanhado com música. Tem vindo a ser resgatada a música tradicional dos povos por meio de reuniões com os companheiros anciãos; recuperaram-se instrumentos tradicionais: harpa, guitarra, violino, sonalhas, e ensinam-se as crianças. Não há grupos musicais por zona, mas sim em cada aldeia, eles têm o seu grupo de música tradicional. No Caracol há um grupo de produção de vídeos, que gravam música, e operadores de câmara que filmam e editam os seus próprios vídeos; embora tenham pouco material técnico para gravar, estão num processo de criar os seus próprios áudios e vídeos para difundir… Também fazem projecções nas aldeias.

Nota:

[1] Agro-ecosistema da América Central, de origem pré-hispânica, cujas principais componentes são o milho, o feijão e a abóbora. Está muito além de ser um simples campo semeado de milho, como geralmente definem os dicionários. A diversidade genética destas três espécies cultivadas, e algumas outras que variam segundo a região, combinada com a diversidade de plantas espontâneas que aparecem no terreno, fazem da milpa um dos agro-ecosistemas mais ricos e complexos da agricultura camponesa. O seu nome deriva do náhuatl milli, parcela semeada, e pan, em cima de. Literalmente, “o que se semeia em cima da parcela” (Cabrera. 1980). [NDT]

Original em castelhano aqui. Tradução: Passa Palavra

[FIM DO 4º DIÁRIO]

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