Para todas as ruínas que se quedam em lugares onde há gente necessitando edificar o novo, há de haver reconstrução. Mas é preciso embrenhar-se nas ruínas. Por Pedro Malasarte

Por dentro e por fora é uma série de artigos de debate sobre as lutas e os movimentos sociais, da iniciativa conjunta de Paulo Arantes e do coletivo Passa Palavra. Série aberta a um amplo leque de colaboradores individuais, convidados ou espontâneos, mais ou menos empenhados (ou ex-empenhados) nas lutas concretas, que ajude a aprofundar diagnósticos sobre a sociedade que vivemos, a cruzar experiências, a abrir caminhos – e cujos critérios seletivos serão apenas a relevância e a qualidade dos textos propostos.

Não é assim tão fácil escrever. Ao menos para mim, não é.

Também, de tudo o que é fácil é preciso desconfiar e é por isso que a dificuldade reafirma em minha cabeça, como um pensamento que responde a mim mesmo: – É preciso!

Mas por quê? Para quê? Para quem?

Muito já foi escrito, na história das lutas de classes, na história das reiteradas derrotas d’A Classe, aqui mesmo neste site e em tantos outros. Mas, vamos lá…

Sou um militante – jovem ainda para desistir mas também jovem o suficiente para ter nascido e me criado no momento em que a miséria de nosso tempo se mostra até às vísceras. Não, não mostra a todos e todas; para todos e todas há falsas realidades perversas amplamente difundidas para amortecer a queda todos os dias. Mostra as vísceras para um pequeno e frágil punhado de gente que, como eu, procura olhar mais além do que parece natural.

Mas, quer saber, sou também jovem o bastante (e ferrado o bastante) para não me entreter com debates que aconteceram – inclusive aqui – sobre eleições, quem é o pior dos patrões, quem usa mais ou menos camburões. (Desculpem, faço rap, a linguagem mais tradicional às vezes me escapa e volto para a rima).

Uma obviedade: quem elegeu Lula não lê matérias publicadas em sites críticos de esquerda.

Etc…

Se é verdade que a classe trabalhadora fez grandiosas lutas, chegando mesmo a irromper em revoluções mundo afora, é também verdade que as derrotas foram monumentais. Não apenas porque processos riquíssimos se perderam – embora isso por si só já fosse suficientemente desesperador, sobretudo no caso de revoluções – mas também porque cada uma das lutas feitas e perdidas imprimiu em nós, a esquerda que sobrevivia ao massacre, os traços e idéias que lhes permitiram a vitória e também – parece-me que em alto relevo – os que lhes impuseram os fracassos.

As relações tática-estratégia, vanguarda-massa, direção-base, econômico-político, formação-alienação, etc.-etc., são consideradas sob a fraca luz das lâmpadas soviéticas. Claro, um dos maiores eventos da história, importantíssimo para nós. Mas…

Como pensar, refletir e construir forças em todas as dimensões da imprescindível prática política diante das TVs, das pedras de crack, dos bailes funk, da Polícia, do P.C.C., das Universais do Reino de Deus, do telemarketing, do videocassete e… da internet? (alguns refugiam-se no “tranqüilo” mundo do registro em carteira).

Também temos de lidar connosco mesmo. Lidar com o sectarismo de esquerda, além de tudo, recuado, lidar com a vanguarda de ninguém, com a direção sem base que se arvora à verdade porque, afinal de contas, é A direção, lidar com a crença de muitos no pré-sal, lidar com a necessidade intrínseca que acumulamos de trazer a realidade às nossas fôrmas. E toca sindicalismo dos anos 70 nos desempregados do novo milênio, toca luta “camponesa” no campo dos assalariados rurais, toca disputar pela esquerda as eleições quando ao povo a cena se assemelha ao teatro dos “safados, pilantras, ladrões” e todos os outros adjetivos que lançam aos “políticos”, ainda mais em “ano de política”.

A teoria revolucionária é indissociável da prática revolucionária. Que estamos nós fazendo aqui neste site, então? Para todas as ruínas que se quedam em lugares onde há gente necessitando edificar o novo, há de haver reconstrução. Mas é preciso embrenhar-se nas ruínas. Não é possível reconstruir sem se cansar, sem se desgastar, sem abrir mão de coisas importantes, sem bagunçar a vida tentando ajeitar o mundo.

É embrenhando-se ativamente na tentativa cotidiana de erigir, desde abajo, efetivo acúmulo de forças e condições de mudança estrutural que nos depararemos com as reais questões a que urge respostar. É neste processo de adentrar a contradição que se pode “forjar das antigas relhas de arado, espadas” para a guerra. É assim, e só assim.

Não gostaria que isso fosse confundido com qualquer tipo de “basismo”. Acontece que os batalhões de homens e mulheres que carecem de um mundo novo não se moverão ao toque da sineta de ninguém.

É, portanto, importante pensar que podemos criar laços organizativos que possuam a capacidade de, ao mesmo tempo em que se moldam determinados pelo <organizar para agir>, constituir-se organicamente na vida das pessoas que neles se imbricam. É possível fazer de todas as nossas “ausências” campos de batalha, pois que em todas as formas da vida o capital adentrou. Mas como?

Algumas Considerações de “Dentro Para Fora”

Nasci e me criei numa favela bem terrível de São Paulo. Minha mãe pregava os botões que faltavam nas camisas (que não nos servindo mais e que havíamos ganhado já usadas) que iria dar. Por quê? Porque era religiosa, evangélica e achava que não porque fosse dado deveria ser humilhante. Noção boba, um pouco descontextualizada, forma de apreender uma lista de dogmas, juntá-los à própria realidade vista e vivida e devolver ao meio de um jeito novo. Por isso – e também porque sou realmente muito novo – tenho bastante dificuldade com os dogmas (ao menos acho, porque, afinal, nenhum dogmático se acha dogmático). Para parte da esquerda, eu seria do lumpemproletariado, filho de um casal de… trabalhadores? No fio da navalha, talvez.

A igreja é o ópio do povo. E o que temos a aprender com Canudos?

A indústria cultural lesa nossa capacidade humana crítica. Avançaremos para melhores ferramentas que os panfletos e os jornais sindicais?

A cultura popular nos foi tomada, levada como o chantili do bolo burguês culto. Nos deixaram os lixos que a nossa própria classe – aviltada em sua inteligência e subjetividade – produz. Mas que dizer das possibilidades de fazer com que – na luta – antigas canções e manifestações culturais resistentes façam sentido na vida comum de gente comum? Que dizer da possibilidade de construir novas formas culturais que acompanhem nosso passo em marcha?

A relação dos movimentos sociais com o Estado é altamente perigosa. Sem estrutura, lançados ao desafio de constituir uma intervenção na realidade – absolutamente precária de certos setores dos trabalhadores – são mais facilmente eliminados através do casal cooptação-repressão. No entanto, muito pouco estas organizações têm ousado no sentido de realizar práticas que – se reivindicativas – tencionem ao máximo possível e conscientemente a integração das demandas pelo Estado, e, se autônomas, possam avançar para uma elaboração que rompa com um de nossos graves problemas que é a assimilação da idéia de “Bem-Estar Social” (o que nos leva a não negar o Estado mas lutar por “um Estado de esquerda”, “um Estado mais justo”, “um Estado que garanta os direitos”), correspondente política anacrônica de um marxismo trabalhista amplamente difundido e louvado. Inclusive aqui, no Brasil, onde a realidade exigia e exige ainda mais a capacidade de sair do âmbito das respostas de sempre para diferentes perguntas.

As reivindicações econômicas são, de fato, uma limitação; a imposição do rebaixamento de formas, métodos e consciências. Mas podem assumir o lugar de contradições vivas que, pensadas, podem estimular o pensamento e a ação de maneira a diminuir suas amarras e aproveitar suas muitas contrariedades. “A luta de classes, que um historiador educado por Marx jamais perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem as refinadas e espirituais. Mas na luta de classes essas coisas espirituais não podem ser representadas como despojos atribuídos ao vencedor. Elas se manifestam nessa luta sob a forma da confiança, da coragem, do humor, da astúcia, da firmeza, e agem de longe, do fundo dos tempos”. (Teses Sobre a História – Walter Benjamin)

Precisamos nos despir de muitas de nossas “heranças”, desprender-nos de certos “acúmulos”, abrir mão de várias das chaves com que giramos a engrenagem de nossas análises de esquerda.

A subjetividade está dilacerada. Um mundo infantilizado, regressivo, imbecilizado, à mercê de todo tipo de psicologia de massa mercadologicamente produzida, enfim. Mas será que nossa apropriação de teorias como a psicanálise não pode se materializar em avanços qualitativos de nossas formas de organização, da interposição indivíduo-coletivo, da tensão entre problemas pessoais e problemas políticos? Conseguiremos ir além da posição de quem entende a teoria e, por isso, aguça sua análise sem, no entanto, nada conseguir alterar com ela?

Nesse “status” de crítico erudito de esquerda há muitos e muitas como também há muitos e muitas encastelados nas direções dos movimentos e organizações populares.

De Fora Para Dentro

As organizações populares, influenciadas pela tradição da luta sindical, da luta camponesa orientada na teologia da libertação ou mesmo nos partidos, têm – TODAS, SEM EXCEÇÃO – “instâncias coletivas de decisão”.

Em quase todas, no entanto, os coletivos de decisão, restritos por “necessidade de preservação do movimento”, foram pouco a pouco se tornando restritos para a preservação dos dirigentes que ali estão concentrando em suas mãos todas as articulações da organização com aquilo que está fora dela e, assim, tornam-se dirigentes para fora, para dentro e para sempre.

Na medida em que este traço de centralização autoritária e autoconservadora restringe os espaços ditos coletivos ou amplia-os seletivamente com quem compactuará com sua metodologia, todas estas instâncias são tomadas por funcionamentos burocratizados e pró-forma que, na verdade, legitimam decisões tomadas muito antes, por coletivos formados com base na referência moral (que inclusive apela para o mais terrível e preconceituoso senso comum para firmar-se) e superconcentração de poder. Não existem coletivos de fato.

Se as instâncias são estas, os espaços de luta esvaziam-se diante dos espelhos. É o ritmo frenético que leva à deliciosa alucinação de que se está fazendo muito mais do que se poderia fazer e, portanto, os problemas são perdoáveis.

Não para a “base”. Esta, utilizada como massa de manobra em processos eleitorais, como gado que incha os números das atividades de esquerda ou como força para barganhar com o Estado (ou pelo menos achar que se está barganhando com o Estado), tem com as organizações a mesma relação recíproca: querem conquistas. E aí, para manter a figura pública de grandes aglutinadoras ou a figura institucionalizada de mediadores que se colocam entre o Estado e o público, as organizações arrocham o cinto do simulacro de participação, – como dito em outro texto – a “lista de presença” se impõe a todos. Sempre há, também, o caminho de manter a perspectiva revolucionária no “programa” e a postura de integração ao Estado na prática; é preciso garantir conquistas.

Na marcha para o fracasso, as organizações populares, ao invés de serem importantes momentos de conscientização, experiências coletivas, germens de novas formas de sociabilidade, se transformam em relevantes organismos de regressão.

Falou-se em um texto, aqui publicado, da “aproximação dos movimentos sociais com a periferia”. Para mim, isso é um pouco esquisito. Talvez para algum militante do MST seja compreensível.

Eu SOU da periferia e acredito que se deva (e que é possível) construir organicidade de tal forma que as pessoas não sintam “estranhamento” entre o que elas são e o que é a luta delas.

Aliás, este é um outro problema, o de como muitas organizações de esquerda fetichizam exatamente o que deveriam desnudar. Transformam os problemas pessoais, cotidianos, as mazelas da vida de quem é pobre em elaborações tão distanciadas, que quem vivencia os problemas passa realmente a achar: – De fato, não há solução, preciso me virar sozinho! E é assim que se torna possível que os movimentos populares urbanos consigam existir sem discutir de maneira séria e profunda maneiras coerentes de lidar (ainda que não se consiga resolver) com a questão da droga, do álcool, da violência doméstica, do machismo, dos presos (como muito bem falou a companheira Carolina).

Estes são problemas próprios de quem é daqui, de quem é “pardo”, de quem é precarizado. Este é um país de senzalas. A mecânica leitura da “revolução feita nas fábricas” não dá em nada. Mas isso não significa que quem não nasceu por aqui não possa construir – séria, crítica e dedicadamente – a luta anticapitalista cravando-a neste nosso território favelado. Mas quando outros setores (como a classe média “progre” ou universitários comprometidos) vêm para cá, devem vir sabendo que o que há de potência há também de contradição e barbárie no estratégico lugar onde se concentram os pobres das cidades; devem vir, mas na condição de quem precisa muitíssimo aprender, compreender, escutar, ter paciência, para, depois, conseguir falar dando sentido ao conhecimento que têm; devem vir sabendo que há conhecimentos que só são forjados na luta pela sobrevivência. Se a sociedade os colocou em condição econômica distinta da nossa, é preciso o dobro de esforços para compreender onde estamos e o que sentimos desde onde estamos, como pensamos, o que nos mobiliza a imaginação e a revolta.

Ao fim e ao cabo, não sei se vale a pena escrever… quem vai ler? Também não sei se o que escrevi ou se o que penso é correto. Mas sei que testo o que escrevo e penso no que faço e, dessa forma, é sempre possível deparar com o próprio equívoco. Talvez algum companheiro ou companheira, perdido no espaço internético, vagando pelos “groups”, leia, pense e desligue o computador para vir para cá descobrir, junto com as mazelas, as possíveis respostas (ou ao menos mediações melhores) para os desafios e contradições que temos neste caminho espinhoso contra a maré.

Ou talvez ele possa (abandonando por um pouco de tempo a “militância” virtual da polêmica “Fwd:” onde dificilmente as contradições poderão ser férteis) fazer do seu computador uma ferramenta – discutida coletivamente – de uma luta que acontece e se constrói bem longe dele.

Nota: O título deste artigo é da responsabilidade do Passa Palavra.

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