O caso dos 3 de Angola “permite pôr a nu as deficiências de todo o sistema estadunidense”. Por Angola3.org

As esquerdas do mundo andam muito distraídas com o massacre, lento mas inexorável, que ocorre nas prisões estadunidenses. O país que se autodenomina “o farol da liberdade” é aquele onde se contam mais presos por mil habitantes (754 presos por 100.000 habitantes); e os negros estadunidenses, sendo apenas 12,4% da população, representam 38,2% dos encarcerados. Os estados com mais presos por 100.000 habitantes são todos do sul: Louisiana (881), Mississipi (702), Oklahoma (657), Alabama (650) e Texas (648) [números de 2009] [1]. O caso conhecido como “the Angola 3” passa-se precisamente na Louisiana. Vejamos como o descreve o site www.angola3.org no seu pdf de informação geral. Passa Palavra

Há 38 anos, nos confins da Louisiana rural…

…Três rapazes negros foram silenciados por tentarem denunciar a segregação permanente, a corrupção sistemática e os violentos maus tratos praticados na maior prisão dos Estados Unidos, uma antiga plantação de escravos de 7.300 hectares chamada Angola.

Da esquerda para a direita: Albert Woodfox, Herman Wallace e Robert King
Da esquerda para a direita: Albert Woodfox, Herman Wallace e Robert King

No início dos anos 1970, protestos não violentos e pacíficos sob a forma de greves de fome e no trabalho, organizados pelos presos, chamaram a atenção dos eleitos e da mídia local. Pouco depois foram pedidas investigações sobre uma série de práticas inconstitucionais e extremamente desumanas que eram costumeiras nessa que era “a mais sangrenta das prisões do sul”. Na ânsia de deixarem de ser escrutinados do exterior, os funcionários da prisão começaram a castigar os presos que consideravam como agitadores.

No ponto alto deste caos institucional sem precedentes, Herman Wallace, Albert Woodfox e Robert King foram acusados de assassinatos que não cometeram e atirados para celas solitárias de 1,8 por 2,7 metros.

Robert foi libertado em 2001, mas Herman e Albert permanecem na solitária, continuando a lutar pela sua liberdade.

Não obstante as numerosas reformas conseguidas em meados dos anos 1970, a maior parte dos funcionários ignoram repetidamente tanto as provas de condutas ilícitas como as de inocência.

A acusação por parte do Estado está eivada de inconsistências, ocultações de factos e passos em falso. Um indício de sangue na cena do crime não coincide com Herman, Albert ou qualquer dos acusados do crime e nunca foi comparado com o número restrito de outros presos que tinham acesso ao dormitório no dia do assassinato.

As provas de ADN [DNA], potencialmente inocentadoras [dos acusados], foram “perdidas” pelos funcionários da prisão – incluindo matéria raspada das unhas da vítima e marcas quase invisíveis de sangue em roupa alegadamente vestida por Albert.

Tanto Herman como Albert tinham múltiplos álibis de testemunhas que nada tinham a ganhar com isso e que testemunharam que eles se encontravam bem longe do local onde se deu o crime. Ao contrário, várias testemunhas de acusação mentiram sob juramento acerca das benesses recebidas pelos seus testemunhos.

“Nem tudo o que é legal é moral. A legalidade e a moralidade não se dão bem…”
Robert King
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“Estamos em luta para que o povo compreenda que nos apanharam na armadilha de um crime do qual estamos total, completa e efectivamente inocentes”.
Herman Wallace
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“A minha alma chora e grita por tudo quanto vi, tudo quanto suportei. É mais do que choro e grito, é um luto permanente”.
Robert King

A principal testemunha de acusação, Hezekiah Brown, disse ao júri: “Ninguém me prometeu coisa alguma”. Mas há novas provas de que Hezekiah, um violador em série condenado a prisão perpétua, só aceitou testemunhar em troca de um perdão, de uma caixa de cigarros por semana, televisão, bolos de aniversário e outros luxos. “Hezekiah era do género que se lhe podia pôr quaisquer palavras na boca”, recordou friamente o chefe dos guardas, anos depois, em entrevista sobre o caso.

Até a viúva da vítima, depois de reanalisar as provas, considera que os julgamentos de Herman e Albert foram injustos, tem grandes dúvidas sobre a sua culpabilidade e tem apelado às autoridades para que descubram os verdadeiros culpados.

De facto, a condenação de Albert já foi duas vezes anulada por juízes na base de discriminação racial, delito de perseguição, defesa inadequada e supressão de provas de inocência.

Infelizmente, contudo, as medidas da AEDPA [2], que limitam os poderes do governo federal quanto ao habeas corpus permitiram que o Tribunal de Recursos dos EUA remetesse a decisão para a Louisiana, onde procuradores de ar vingativo continuam a afirmar que Albert é “a pessoa mais perigosa do planeta”.

Apesar deste revés, a validade da sentença de Albert está de novo em análise no Tribunal Federal, com base em aparente discriminação na selecção de um dos principais elementos do grande júri, uma injustiça que pode levar, finalmente, à libertação de Albert.

Passando por cima de uma recomendação de um membro do Conselho Jurisdicional do Estado no sentido de reavaliar a sentença de Herman com base em novas e conclusivas provas de delito de perseguição e de violações da Constituição, o Supremo Tribunal da Louisiana negou esse recurso sem qualquer explicação. Herman não se deixou desanimar e voltou-se agora para os Tribunais Federais para provar a sua inocência e conquistar a liberdade.

Entretanto, os funcionários prisionais da Louisiana teimam em recusar-se a retirá-los da solitária porque “não se verificou a reabilitação” da “prática do ‘blackpantherismo’”.

Actualmente a Louisiana tem a mais elevada taxa de encarceramentos dos Estados Unidos – e, portanto, a mais alta do mundo. Três quartos dos 5.000 presos de Angola são afro-americanos. E uma das mais duras práticas de condenações no país fará com que 97% deles ali morram.

Reminiscência de uma era passada, os presos continuam a trabalhar na colheita do algodão, do milho e do trigo por 4 a 20 cêntimos [de dólar] à hora, sob o olhar atento de guardas armados a cavalo.

Acreditamos que só um escrutínio público das lacunas e das iniquidades do sistema de justiça criminal estadunidense poderá restituir-lhe integridade.

Não podemos perder tempo. Podemos conseguir algo importante. Como fizeram os 3 de Angola há anos, é tempo de fazer frente à injustiça e de exigir a libertação dos inocentes presos injustamente.

Noutra secção do PDF, conta-se em mais pormenor a história dessas condenações:

Culpados até prova de inocência: o como-onde-e-porquê de duas condenações injustas

Em 1972 um jovem guarda prisional branco, Brent Miller, foi brutal e fatalmente esfaqueado dentro da prisão de Angola. De imediato Herman Wallace e Albert Woodfox foram considerados culpados, atirados para o isolamento sem qualquer inquérito e acabaram por ser condenados pelo crime. Para se perceber como e porquê foram condenados, há que entender primeiro o onde e o quando.

Em 1952, um grupo de presos cortou os tendões de aquiles para protestar contra as brutais condições de trabalho sob a vigilância do corpo de funcionários da prisão – muitos deles descendentes directos dos antigos proprietários da plantação e dos capatazes que tinham controlado essas terras durante gerações.

“Pensei que a minha causa, então como agora, era uma causa nobre. Podem vergar-me um pouco, podem causar-me grandes sofrimentos, podem até tirar-me a vida, mas nunca conseguirão quebrar-me”.
Albert Woodfox
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“Se estes homens… não cometeram isto – e eu acredito que não – então estão a viver um pesadelo há 38 anos”.
Teenie Verret, viúva do guarda Brent Miller
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Castigo cruel e inusitado
Há cerca de dez anos, Herman, Albert e Robert iniciaram um processo cível contra a prática desumana e continuada da prisão prolongada em isolamento. A juíza Dalby descreve as quatro décadas de solitária por eles sofridas como “durações tão para além do admissível” que não se consegue encontrar, “nos anais da jurisprudência dos EUA, nada que se lhe pareça, nem de longe”. O processo, que se espera que vá a julgamento em 2011, mostrará em pormenor os tratamentos cruéis e inusitados assim como as violações das devidas regras de procedimento por parte dos responsáveis e funcionários da Louisiana.

No fim dos anos 1960, quando Herman e Albert chegaram à “Herdade” [“Fazenda”] por casos diferentes de roubo, Angola ainda era caótica e terrível. Segregação, falta de assistência médica e horários de trabalho excessivos (16 horas, 6 dias por semana) eram apenas alguns dos problemas.

Um sistema nojento de exploração sexual, pelo qual os presos mais recentes eram abertamente objecto de compra e venda até à submissão, era sancionado e facilitado pelos guardas, como se pode ver em pormenor no livro Dying to tell [Morrer para contar] do chefe Henderson.

Presos de cor branca em regime de favor receberam armas pertencentes ao Estado com ordens para impor essa e outras práticas ilícitas. Desde 1972-75 esse sistema de presos armados afirmou ter matado 40 presos e ferido cerca de 350.

Embora não fossem activistas quando entraram para a prisão, as condições brutais e sórdidas, assim como as informações de um crescente movimento pelos direitos cívicos no exterior, fizeram com que os 3 de Angola formassem uma secção do Black Panther Party atrás das grades.

Herman, Albert, Robert e outros costumavam falar alto contra as injustiças e ajudavam a organizar greves da fome, pacíficas e bem publicitadas, para exigir mudanças. Mas para o pessoal das prisões, como o actual chefe dos guardas de Angola Burl Cain, “manifestação pacífica é coisa que não existe nas prisões”. O chefe Cain diz que estes comportamentos continuam a ser uma ameaça para ele e para os outros funcionários: “O problema com o Woodfox é que ele quer manifestar-se. Quer organizar. Quer ser desafiador.”

“Ele continua a praticar o ‘blackpantherismo’… Continuo a não querer tê-lo por perto na minha prisão porque ele iria organizar os jovens presos recentes. Só me ia arranjar problemas, mais do que eu estou para ter, e eu ia ter os pretos todos atrás deles, ia ter confusões e conflitos, acho que sim.”

A desconfiança para com os presos que já tinham desafiado a administração da prisão fez de Herman e Albert os principais suspeitos do assassinato de Brent Miller – culpados até prova de inocência. Ainda nem sequer se tinham examinado os indícios e já os guardas edificavam uma acusação para os condenar.

Embora não houvesse provas físicas que os relacionassem com o crime, um vestígio de sangue que não coincidia com o de nenhum dos acusados, e várias testemunhas que constituíam álibis para Herman e Albert e falaram em sua defesa, o Estado tinha a certeza de ter encontrado os assassinos. Cerca de 40 anos depois, eles continuam presos em isolamento, lutando para demonstrar a verdade

O mecanismo da ilicitude: apresentamos a principal testemunha de acusação, o mentiroso Hezekiah Brown

Hezekiah Brown foi a estrela das testemunhas nos julgamentos iniciais. Foi retratado como uma testemunha presencial insuspeita e inocente cuja consciência o obrigou a depor contra Herman e Albert.

“O caso dos 3 de Angola “permite pôr a nu as deficiências de todo o sistema estadunidense”.
Presidente Kgalema Motlanthe, da África do Sul, 2003
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“Não conheço nenhum lugar no mundo onde se mantenham pessoas no isolamento durante três décadas – é um castigo cruel e inusitado, e se há uso adequado para esta expressão é de certeza este”.
Representante John Conyers, Presidente da Comissão Judiciária da Câmara de Representantes, 2008

Quando lhe foi perguntado se tinha sido recompensado pelo depoimento que fez, Brown disse: “Ninguém me prometeu nada”. Mas agora sabemos que Brown vendeu o depoimento em troca da liberdade.

No segundo julgamento de Albert, o chefe Henderson testemunhou ter feito um acordo com Brown durante o interrogatório, prometendo-lhe um perdão se ele ajudasse a “artilhar o caso”.

Provas mais recentes mostram que, imediatamente após o interrogatório, o chefe dos guardas da sua secção lhe ofereceu uma embalagem de cigarros. Esse funcionário declarou, na audiência de 2006, que o chefe lhe dera indicações para ir comprar e entregar os cigarros, que são uma valiosa moeda de troca dentro das grades.

Brown também beneficiou de casa própria, com televisão, com salário fixo mesmo quando não trabalhava e com bolos de aniversário.

Num memorando de 7 de Abril de 1978 enviado a C. Paul Phelps, secretário das [Prisões] Correccionais, o chefe Blackburn escreveu que os cigarros “são o cumprimento parcial dos compromissos por ele antes assumidos com respeito ao seu depoimento pela acusação no caso do assassinato de Brent Miller”. O secretário respondeu: “Acho que você deve cumprir o acordo”.

Fiel à palavra dada, nas semanas que se seguiram à condenação de Herman, o chefe iniciou diligências metódicas para conseguir um perdão.

Em carta dirigida ao juiz que condenou Brown por múltiplos casos de violação, o chefe Henderson explica as razões do pedido: “Em 17 de Abril de 1972 um guarda branco foi assassinado por 3 militantes negros… Brown testemunhou pela acusação do Estado e, com base no seu depoimento, os três indivíduos foram condenados a prisão perpétua… O caso de Mr. Brown está agendado para o próximo conselho de perdões e eu muito agradeceria a consideração que V.Exª lhe pudesse dar”.

Brown foi libertado, mas as provas destas significativas promessas foram escondidas durante décadas.

Notas do tradutor

[1] Wikipedia: http://en.wikipedia.org/wiki/Incarceration_in_the_United_States [NDT]

[2] AEDPA: Antiterrorism and Effective Death Penalty Act of 1996, lei proposta pelo senador ultraconservador Bob Dole na sequência do atentado bombista de Oklahoma e adoptada por Bill Clinton. [NDT]

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