Por Dibussi Tande

Este artigo não é uma análise política. E quando refere questões políticas, em geral são lugares comuns. Mas decidimos traduzi-lo e publicá-lo porque nos impressionou enquanto simples narração do horror de uma guerra civil, sentida como absurda e cruel. Não há saídas políticas, propriamente. É apenas uma espécie de pesadelo. Nas nossas vidas ocidentais, temos grande dificuldade em imaginar o que será viver no meio disto.
Entretanto, no dia 11 de Abril, o ex-presidente Gbagbo foi preso no seu palácio, e o poder tomado por Ouattara “com a ajuda das tropas francesas”. Passa Palavra

O blogue Texas in Africa dá-nos um relato presencial de uma fonte de Abidjan:

“Não sei se isto será tecnicamente um genocídio, mas um aspecto que não tem sido notado é que a facção pró-Gbagbo, neste momento, não controla coisa nenhuma. As tropas que estão na rua são das FRCI [Forces Républicaines de Côte d’Ivoire, pró-Ouattara] e dos civis que elas armaram, e estão a exercer vinganças numa escala alarmante. As FDS [Forces de Défense et de Sécurité, pró-Gbagbo] e os apoiantes de Gbagbo que estão armados estão confinadas no terreno e cercadas pelas de ADO [Ouattara] em dois ou três estreitos sectores da cidade. As FRCI têm estado a saquear o nosso sector como loucos, desde esta manhã têm vindo insistentemente bater-nos à porta com estrondo, e querem entrar. Montaram uma barricada lá fora, mesmo à frente da nossa casa. Saquearam totalmente muitos dos nossos vizinhos e estão a incendiar casas como retaliação. Ouattara já não tem qualquer controlo sobre muitos deles. Não existe um comando central. Ontem de manhã foi aberta uma prisão e todos os 5.000 presos foram libertados e armados, e muitos deles começaram a vingar-se da população…

“Se se está a preparar aqui um genocídio, penso que ele virá do lado das FRCI, porque Ouattara não controla nada e há muitos dioulas [etnia espalhada pelo Mali, o Burkina Faso e a Costa do Marfim] furiosos querendo vingança. Os franceses e as Nações Unidas apenas vão dizendo que já não conseguem ajudar muita gente. E muita gente está a morrer neste momento. Temos ouvido tiroteio ininterrupto desde as 5 horas da madrugada de ontem. Houve explosões de bombas, rockets e morteiros, igualmente frequentes. Também ouvimos bombardeamentos pesados durante quase todo o dia de hoje, lá para o centro da cidade onde estão a atacar o palácio de Gbagbo.

“Estamos com a água cortada, e a energia eléctrica é intermitente. Temos provisão de alimentos para vários meses e estamos escondidos e barricados num dos quartos da nossa casa, às escuras.

“Espero que esta insanidade termine depressa. Aqui reina a mais absoluta anarquia.”

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Bastantes comentários a este post questionam a exactidão ou a neutralidade deste relato testemunhal. Um dos comentadores escreve:

“Concordo com os que dizem que este relato revela uma tendência pró-Gbagbo (LMPista) [LMP, La Majorité Présidentielle, plataforma eleitoral de Gbagbo]. Não quero com isto dizer que ela ou ele está a inventar. Só acho que me parece que a situação no terreno está muito confusa, porque há múltiplos actores: (a) a força combatente organizada de Gbagbo, ex-FDS, etc.; (b) as milícias de jovens de Ble Goude; (c) os presos libertados, que o governo de Ouattara diz terem sido libertados e armados por Gbagbo; (d) a FRCI (exército regular); e (e) IB e o seu “comando invisível” que não tem ligação a nenhum dos políticos [1]. Ouvi relatos generalizados acerca de apoiantes de Gbagbo que vestem camisolas da FRCI e se mascaram de FRCI. É uma situação confusa e horrível.”

Chris Blattman dá-nos um outro relato testemunhal sobre a situação em Abidjan que demonstra quanto é difícil obter relatos fiáveis de quem está no terreno:

“Falei hoje com várias pessoas em Abidjan, e elas traçam um quadro da cidade relativamente diferente daquele que vocês acabam de retweetar no @texasinafrica (“anarquia pura”) – mesmo aqueles que vivem junto da residência de Gbagbo. Dizem que a maior parte das pessoas está a manter-se em casa, mas que conseguem fazer pequenas deslocações nas ruas para irem às lojas, etc. Ouvem-se tiros com alguma regularidade, se bem que não em todas as zonas da cidade. Talvez eu me esteja a agarrar a esperanças infundadas, é óbvio que a situação é horrível, mas o sentimento geral dessas pessoas é que este cerco [de Ouattara a Gbagbo, NDT] está a correr muito melhor do que seria de esperar”.

Na secção de comentários, Chris acrescenta ainda:

“Se existe uma teoria da violência massiva em que eu acredito, ela é o que os economistas chamam “dilema securitário”, também conhecido como “receio mútuo”. No essencial, um dos lados teme que o outro lado cometa violências e, por isso, começa a encarar um ataque preventivo. O outro lado, sabendo que este lado pensa isto, começa também a temer um ataque e começa também a mobilizar-se. O outro lado, sabendo que o outro lado pensa que o seu lado vai… Estão a ver.

“A escalada do medo e da violência prospera em ambiente de pouca informação. Os boatos explosivos são o aliado maior. Matar torna-se um modo de auto-realização.

“Só estou a sugerir que os bloguistas e os comentadores não se tornem parte do problema.”

O blogue Política Internacional de Elizabeth Dickinson adverte contra o nevoeiro [próprio] da guerra e lembra que, no conflito marfinense, todas as partes cometeram atrocidades:

“E sejamos claros: há armas em todos os lados.

“Tem havido uma tendência – que é compreensível – para apontar só o Gbagbo devido às atrocidades cometidas pelas suas tropas. Sendo “o obstinado” desta crise política, é Gbagbo que está sob sanções do ocidente e é ele que está a ser instado a demitir-se pela União Africana. São de Gbagbo as tropas que alvejaram e mataram manifestantes, o que está cruamente exposto no YouTube… Portanto, naturalmente, é o Gbagbo que as pessoas esperam vir a acabar no Tribunal Criminal Internacional, para pagar pelos seus crimes…

“Mas é importante não esquecer que as forças leais a Ouattara também estão em combate. E, no campo de batalha, há sempre o risco de serem cometidas atrocidades. A Reuters informa que as forças leais a Ouattara se têm mantido disciplinadas até agora, embora tenham executado alguns milicianos de Gbagbo, segundo a Human Rights Watch. E ontem as Nações Unidas instaram Ouattara a ter “rédea curta” nas suas tropas quando tiverem o controlo total de Abidjan…

“O nevoeiro da guerra tolda tudo neste momento; impossível dizer quem é responsável por quê – e contra quem. Mas é importante olhar para todos os lados do combate porque, quando a poeira assentar, a Costa do Marfim terá mudado muito. Os civis de todas as tendências políticas terão, todos, histórias terríveis para contar. E se só metade dos criminosos forem levados a julgamento, isso não será justiça nenhuma; uma sociedade dividida não pode ser estável a longo prazo.”

Penelope M. C. compara a situação em Abidjan àquela que prevaleceu em Monróvia (Libéria) durante o cerco de 2003:

“Mesmo com as diferenças que há entre os dois conflitos, o apego desesperado de Laurent Gbagbo ao poder lembra muito o de Charles Taylor na Libéria. Como Taylor, Gbagbo tem os seus homens mais fiéis a controlar as zonas-chave, enquanto ele continua sentado no palácio presidencial. As características únicas da geografia de Monróvia jogaram a favor do avanço das milícias rebeldes, que conseguiram isolar Taylor no centro de Monróvia tomando as pontes que levam à cidade. Em Abidjan, a disposição do terreno é diferente mas, tal como em Monróvia, há ilhas e pontes que são estrategicamente importantes para a batalha urbana – quem conseguir controlar as vias de acesso está em vantagem. O aeroporto, actualmente controlado pelas Nações Unidas, está situado numa ilha. O palácio presidencial, numa península.

“Não sei quanto tempo irá durar este cerco. Gbagbo não vai demitir-se, e não vai sair facilmente. Na melhor das hipóteses estará agora a negociar as condições do seu exílio noutro país e conseguirá ser levado de avião com a família. Na pior hipótese o palácio presidencial onde ele está é tomado à força pelos rebeldes e ele é morto. Nesta fase eu diria que ambas as possibilidades são realistas.

“É da nossa responsabilidade prestar testemunho do que está a acontecer na Costa do Marfim. Foram já cometidos crimes inomináveis por ambos os lados do conflito, e vão continuar a ser. A atenção da comunicação social e da opinião pública não é remédio santo mas, num contexto de reais ameaças de perseguições, pode ajudar a atenuar os níveis de violência. Pelo menos assim espero.”

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Nnenna explica como a etiqueta Twitter #CIV2010, originalmente criada para monitorizar as eleições presidenciais de 2010 na Costa do Marfim, acabou por se tornar uma zona de guerra virtual, uma “etiqueta de ódio” usada pelas diferentes facções da crise marfinense em curso para marcar pontos:

“A etiqueta foi iniciada no Twitter por volta de Outubro de 2010. A ideia era conseguir interessar os cidadãos nas eleições próximas na sua utilização. Por isso o usámos como etiqueta de monitorização das campanhas e de todas as questões relacionadas com as primeiras eleições presidenciais da Costa do Marfim. Como faço parte desde o princípio, devo dizer que gostei muito dos primeiros tempos da #CIV2010…

“O clímax foi a quinta-feira do debate frente-a-frente dos dois candidatos da segunda volta [turno]. Allasane Dramane Ouattara, conhecido como ADO, e Laurent Koudou Gbagbo, LKG. Lembro-me de tweetar todo o debate, traduzindo directamente para inglês o francês falado por eles, no total de 3 horas e 13 minutos que durou o debate! Também recordo que o Twitter teve de pôr de quarentena alguns dos utilizadores mais “pesados” da #CIV2010. O meu bloqueio no Twitter foi levantado ao fim de 10 horas!…

“Veio então a segunda volta de 28 de Novembro… e “as paredes começaram a desmoronar-se”. Como a etiqueta se transformou! Antes era um espaço de observação cidadã e de relatos, então tornou-se uma espécie de associação de gente com alguma coisa em comum: algo ou alguém que odeiam! É verdade que a guerra campeia nas ruas de Abidjan, mas a guerra no Twitter é igualmente virulenta…

“Ninguém pode dizer com segurança quanto irá durar a guerra em Abidjan. E também não se pode ter a certeza quem terá a última palavra (sendo que eu, pessoalmente, não creio que possa haver um vencedor). A grande questão que se desenha com o passar dos dias é: que faremos com todos esses sentimentos negativos? Como vamos reconstruir a confiança, a tolerância e o amor? Será possível? Quanto tempo será preciso? Quando iremos começar?…”

Craig Murray defende que a Costa do Marfim precisa, como de pão para a boca, de uma “figura salvadora” transcendente porque Ouattara e Gbagbo se transformaram em pára-raios e personagens divisionistas sem capacidade para governar:

“No curto prazo, o poder militar deverá conseguir instalar Ouattara na presidência da Costa do Marfim. Mas as divisões étnicas e religiosas da guerra civil foram reabertas e agravadas. A Costa do Marfim precisa desesperadamente de uma figura salvadora, alguém que não seja nem Ouattara nem Gbagbo. Tendo sido imposto pela força em Abidjan, Ouattara só lá poderá ficar pela força. O futuro afigura-se desolador…

“Muitos milhares de pessoas foram mortas durante a última semana. O massacre de 800 civis em Duekoue é apenas o pior acontecimento individual. Foi perpetrado por combatentes da antiga facção do LURD na guerra civil da Libéria [2], que Ouattara fez atravessar a fronteira com dinheiro francês. Esse dinheiro também serviu para trazer combatentes burkineses e senegaleses favoráveis a Ouattara.

“Isto é uma tragédia para a África, porque desvaloriza a democracia… Dir-se-ia que as Nações Unidas e a comunidade internacional se consideram autorizadas a impor pela força, combatendo lado a lado com os autores do massacre, o vencedor “eleito democraticamente”. É mau para a reputação da democracia.

“Além disso, não deve ser esquecido que as tropas de Gbagbo foram responsáveis por inúmeros assassinatos de civis inocentes, em particular entre a minoria favorável a Ouattara na própria Abidjan. A comunidade internacional deveria declarar que tanto um como o outro carecem de condições para governar, impedindo ambos de se apresentarem em futuras eleições.”

Andrew Harding, da BBC, num blogue a partir de Abidjan, descreve uma cidade que se contorce de dor enquanto espera o desfecho da confrontação Gbagbo-Ouattara:

“Um desfecho negociado poderia ter ajudado a reduzir as tensões neste país amargamente dividido. Afinal, Gbagbo teve 46% dos votos na recente eleição.

“Mas ele parece ter feito bluff com uma carta demasiado baixa, e daí a perspectiva de uma solução à força, e com ela o risco de uma instabilidade ainda maior.

“Se Gbagbo for morto, ou arrastado para longe e humilhado, que farão as milícias que lhe são fiéis?

“Ontem, percorri de carro alguns quilómetros através dos subúrbios da cidade. Viam-se pequenos grupos de civis caminhando apressados pela berma das estradas, com os braços levantados como que em sinal de rendição. Disseram-me que estavam a arriscar-se a ser baleados ou saqueados porque precisavam de água e de comida.

“O fedor dos cadáveres, apodrecendo nos lados da estrada, é um poderoso sinal que nos lembra o preço pago por esta cidade pela “restauração da democracia”.

“Que novos horrores iremos desvendar se e quando a cidade for finalmente pacificada?”

NOTAS DO TRADUTOR

[1] O ex-sargento-chefe marfinense Ibrahim Coulibaly, conhecido por “IB”, envolvido em vários golpes e tentativas de golpes, assassinatos e tentativas de assassinato, condenado em França (à revelia) por organização de milícias mercenárias para desestabilizar a Costa do Marfim.

[2] Liberians United for Reconciliation and Democracy (LURD) [Liberianos Unidos pela Reconciliação e a Democracia], facção armada rebelde em actividade entre 1999 e 2003, durante a segunda guerra civil da Libéria, com origem no noroeste do país e de predominância muçulmana.

Dibussi Tande é um bloguista camaronês, que escreve (em inglês) no blogue Scribbles from the Den.

Artigo original (em inglês) no Pambazuka News. Tradução Passa Palavra.

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