Enquanto não formos capazes de constituir espaços na periferia que atendam a essas necessidades profundas da classe trabalhadora, vamos continuar a assistir ao povo lotando as igrejas pentecostais. Por Marco Fernandes
Por dentro e por fora é uma série de artigos de debate sobre as lutas e os movimentos sociais, da iniciativa conjunta de Paulo Arantes e do coletivo Passa Palavra. Série aberta a um amplo leque de colaboradores individuais, convidados ou espontâneos, mais ou menos empenhados (ou ex-empenhados) nas lutas concretas, que ajude a aprofundar diagnósticos sobre a sociedade que vivemos, a cruzar experiências, a abrir caminhos – e cujos critérios seletivos serão apenas a relevância e a qualidade dos textos propostos.
Leia as duas primeiras partes deste artigo aqui e aqui.
Os dados sobre o crescimento exponencial do número de igrejas e de fiéis pentecostais no Brasil é, no mínimo, de causar espanto. Segundo dados do censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), em 1980 eram cerca de 6,6% o percentual da população de evangélicos, já em 1991 havia aumentado para 9%. No último censo, em 2000, esse índice havia subido para 15,5%, mas a Igreja Católica chegou a divulgar dados próprios que indicavam em 18% o índice de evangélicos na população [10]. Há ainda algumas pesquisas, como a realizada pela UFJF e Unifesp, que chegam a estimar que quase 25% da população brasileira já seria seguidora de alguma igreja pentecostal ou neopentecostal [11]. A julgar por essas tendências, muito provavelmente teremos mais uma surpresa quando o IBGE divulgar os resultados do censo já realizado em 2010. O fato é que as estimativas mais baixas revelam que aproximadamente 24 milhões de brasileiros seriam “crentes”, mas essas cifras podem chegar a inacreditáveis 40 milhões de pessoas! As chamadas “grandes denominações”, como a Igreja Universal do Reino de Deus (presente em mais de 30 países) e a Renascer, são capazes de mobilizar centenas de milhares de pessoas em seus eventos. Graças a isso, já se tornaram verdadeiros impérios econômicos e têm cada vez mais influência política.
No universo pentecostal, o “contato direto” do crente com o Espírito Santo é o traço principal que o distingue das outras correntes cristãs – como os católicos e protestantes históricos – para as quais tal contato é privilégio de poucos (como os santos entre os católicos, por exemplo). Para os pentecostais, qualquer crente pode manifestar esse dom – que se expressa na “glossolalia” (o “dom das línguas”, ou simplesmente o “falar o idioma do Espírito Santo”), nas curas “milagrosas”, ou no talento para pregar a Palavra -, cuja característica marcante é a de levar os fiéis a experimentarem um estado de transe, justamente o elemento africano incorporado por esta moderna versão do cristianismo. Como nos recorda Mike Davis, “a especificidade do pentecostalismo é tal que é a primeira grande religião mundial a ter crescido quase inteiramente no solo da favela urbana moderna”, pois ele surge no começo do século XX, num bairro negro da periferia de Los Angeles [12].
Ou seja, desde sua fundação, o pentecostalismo vem desenvolvendo formas rituais, discursivas e organizativas que tentam responder às demandas específicas das classes pobres urbanas e rurais, o que provavelmente o habilitou para se destacar como principal referência religiosa do processo histórico da produção ampliada de precarização da classe trabalhadora latino-americana contemporânea.
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Alfredo Moffatt, psicólogo social e discípulo de Pichón-Rivière, é autor de uma brilhante obra, a Psicoterapia do oprimido (1974), um esforço de reconstruir teoricamente a experiência de terapia alternativa que levou a cabo, junto a um grupo de terapeutas, no interior do Hospital Psiquiátrico Borda (Buenos Aires), no início dos anos 70, auge das mobilizações e das lutas da classe trabalhadora argentina. Sua terapia nada mais é, segundo ele, do que uma síntese entre o que havia de melhor, por um lado, nos tratamentos psiquiátricos alternativos e, por outro, nas técnicas das “psicoterapias populares”, nome que dá às inúmeras formas de tratamento psicológico oferecidas pelas religiões.
Graças à “pesquisa de campo” que empreendeu em diversos templos e comunidades religiosas, Moffatt é capaz de nos demonstrar muitos dos mecanismos e técnicas terapêuticas utilizadas por pastores, curandeiros, mãos-santas etc. – que ele batiza de “psicoterapeutas populares” -, sendo algumas delas de “primeiro nível” e sensivelmente eficazes. Mas grande parte da eficiência e, sobretudo, do apelo que elas possuem sobre as classes populares, alerta Moffatt, se deve somente em parte à falta de acesso e de recursos financeiros para pagar por “terapias científicas”. Segundo ele, o segredo das “psicoterapias populares” é o uso de técnicas amplamente embasadas no universo simbólico popular, num profundo conhecimento das concepções de tempo, espaço, amor, sexo, beleza, família, saúde, doença (todas elas objetos do estudo de Moffatt), ao contrário dos profissionais de saúde de classe média e alta, que tentam curar desde a visão de mundo de sua classe, absolutamente apartada das pautas que organizam a realidade para o povo.
Foi o mesmo que percebeu Sônia Figueira, pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública da USP, ao estudar o fenômeno das curas em igrejas pentecostais, a partir de narrativas de pessoas que eram, ao mesmo tempo, frequentadores das igrejas e da rede de saúde pública. Segundo ela, sobressaíam dois aspectos principais na percepção dos usuários em relação às vantagens do tratamento “mágico-religioso”: a “explicação abrangente” sobre as doenças e o “acolhimento” que os pacientes recebem nos ambientes pentecostais [13] .
Por “explicação abrangente”, ela entende a capacidade “de articular as várias dimensões da experiência mórbida – a orgânica, a psicológica, a social – dando-lhes um sentido (…) pois, assim como recolhe e valoriza os aspectos mais subjetivos da vivência desse indivíduo, coloca-os dentro de um referencial mais amplo e universalizante que é a explicação religiosa”. Por outro lado, a medicina oficial “não é capaz de incorporar em seu diagnóstico, ou tratamento, os desajustes afetivos e sociais”, algo que aparece como absolutamente associado à doença para os pacientes. Além disso, explica Figueira, os profissionais de saúde costumam limitar-se a “prescrever e indicar condutas, sem explicitar os fundamentos de suas ações”, deixando os pacientes absolutamente perplexos, e até mesmo propensos a não seguir à risca o tratamento.
Um exemplo claro disso pode ser vislumbrado num novo conceito de sintoma que vem sendo usado por médicos e terapeutas, principalmente da rede pública de saúde, qual seja, o de “sintoma difuso”:
“Alguns profissionais comentam que, de cada dez pacientes, seis apresentam o sofrimento difuso. Certamente não é uma queixa nova, mas algo que está crescendo no país. Uma queixa sobre dores de cabeça, dores em outros locais do corpo, medo, ansiedade – sintomas para os quais o sistema de saúde não tem nem tempo nem recursos para tratar. O resultado é a medicalização do problema. Na Argentina, a dra. Sylvia Bermann constata que mais de 50% dos medicamentos indicados são psicofármacos, e alguns especialistas calculam que a porcentagem é mais alta no Brasil – para tratar o que as classes altas e médias chamam de ansiedade ou estresse, e as classes populares de ‘nervos’.” [14]
“Sofrimento difuso” é simplesmente um termo encontrado para exprimir o que os médicos não sabem do que se trata. E como poderiam saber? Se devido à superlotação dos hospitais públicos e à falta de profissionais e de infra-estrutura para atender a todos, uma consulta médica não pode durar mais do que 5 minutos? Claro, depois que o sujeito já ficou mais de 3 horas esperando na fila! Como descobrir as causas por trás desses sintomas “indefinidos” sem longas conversas com os pacientes, sem poder conhecer sua vida, seus problemas, suas angústias, sem ter profissionais qualificados para essa função, muito mais psicológica do que propriamente médica? Ainda mais se levarmos em conta o abismo social que, em geral, separa os médicos (de classes abastadas) dos pacientes das classes populares. Não é à toa que o crescimento exponencial da venda de ansiolíticos (“tarja preta”) nas farmácias já assusta os especialistas. O Rivotril é hoje o segundo remédio mais vendido no país, atrás somente dos anticoncepcionais. Com preços módicos, atinge em cheio as classe populares [15].
Por outro lado, lembra Figueira, enquanto o sistema de saúde é excludente – e faltou ela dizer o quão recorrentes são as situações de humilhação a que são submetidos os pacientes pobres em consultórios médicos – no “sistema pentecostal”, o indivíduo é fortemente acolhido, “evidenciado, destacado, valorizado (…) sente-se realmente ‘curado’, deixando de ser um anônimo qualquer”, pois, principalmente através do testemunho, torna-se portador de uma história que inspira a cura dos outros, já que as narrativas presentes nos cultos pentecostais são, como dissemos acima, um mecanismo fundamental de sua técnica terapêutica. Por outro lado, graças ao “uso combinado de diferentes meios: música, dança, discurso falado, luz, modos de ocupação e delineamento no espaço”, o culto se conforma como “um domínio especial de ação, que rompe com os parâmetros da vida cotidiana e demanda de seus participantes uma mudança de atitude e ação”, levando o “doente a situar-se segundo novas formas frente aos outros e a si mesmo” [16] .
Graças a isso, as igrejas pentecostais já se tornaram, no Brasil e em muitos outros países da América Latina, verdadeiros “prontos-socorro” de angústias profundas e de doenças que afligem nosso povo, sendo seus pastores e auxiliares, como diria Moffatt, nada menos do que psicoterapeutas populares, principalmente para as mulheres, que são as maiores frequentadoras e relatam “(…) muitas histórias de maus-tratos, pressão psicológica, alcoolismo, infidelidade dos parceiros (…) Diante das esparsas opções de lazer, da total carência de assistência social, psicológica ou médica, mulheres com quadros depressivos e enfrentando sérios problemas familiares encontram nos cultos pentecostais e nos ‘gabinetes pastorais’ a possibilidade de falar de seus problemas, aprender estratégias de enfrentamento das dificuldades econômicas e afetivas, além, é claro, de usufruir o caráter terapêutico do ato de dançar, cantar, bater palmas, gritar e pular”. [17]
Parece-me fundamental que comecemos a olhar para este fenômeno com olhos mais atentos. Primeiro, porque qualquer instituição que seja capaz de mobilizar milhões de pessoas merece a devida atenção dos setores de esquerda por motivos óbvios, pois quem consegue mobilizar milhões tem poder político e econômico. Afinal, a última eleição presidencial ficou marcada pela primeira interpelação pública – e ofensiva – que um grupo de pastores pentecostais, apoiados numa imensa base social, fizeram a um candidato ao governo do país, no caso Dilma Rousseff (PT), que precisou afirmar publicamente ser contra a aprovação das leis do aborto e de benefícios aos homossexuais, como o da “união civil”. Por sinal, contrariando suas convicções amplamente divulgadas até então.
Mas também porque me parece que o apelo popular e a capacidade de mobilização dos pentecostais estão relacionados com a sua eficiência em tratar diretamente de temas e demandas das classes populares que não deveriam ser estranhos às organizações populares de esquerda: como o desejo de fazer parte de grupos ou coletivos (sentimento de pertença), o desejo de ter acesso a bens simbólicos, ao belo e ao lazer (rituais festivos e catárticos), a esperança de melhorias materiais e a urgência em ter acesso a terapias para o corpo e a alma (curas “milagrosas”), que lhe são negados por um sistema de saúde falido, em meio a uma vida falida.
Ou seja, o que estou tentando dizer é que, antes de simplesmente nos confortar com críticas “esclarecidas” e ferozes à suposta manipulação que estes líderes religiosos submeteriam a população de baixa renda, deveríamos tentar compreender quais as legítimas demandas populares que encontram algum tipo de resposta nestas igrejas. Minha hipótese é de que muitas destas demandas poderiam, ou deveriam, ser respondidas pelos movimentos populares que aspiram a uma retomada do trabalho de base nas periferias urbanas, uma vez que, como espero ter mostrado, teríamos a capacidade de nos organizarmos para fazer frente a este desafio. [18]
Para seguir debatendo…
Eu não me aventuraria, nos marcos deste texto, a sugerir propostas organizativas concretas que possam dar resposta à demanda popular por espaços e práticas terapêuticas, de modo a contribuir para a retomada do trabalho de base e aprofundar a atuação política das nossas organizações populares. Contudo, espero ter contribuído, de alguma forma, para sensibilizar e fomentar debates sobre o tema no interior da militância disposta a encarar tais desafios. Até porque, não me parece possível aprofundar o debate e levantar propostas de trabalho de base com ação terapêutica sem a ajuda de profissionais especialistas das áreas de saúde (como médicos, sanitaristas, psicólogos e psicanalistas), bem como a de artistas e educadores populares. Sabemos da atual dificuldade, em virtude do refluxo das lutas populares, de atrairmos quaisquer tipos de militantes para as nossas trincheiras, quanto mais de profissionais bem remunerados e, geralmente, com uma origem de classe distante do universo popular. Mas não penso que seja impossível começar de alguma forma, ainda que seja com meia dúzia de abnegados, com os quais sempre se pode contar.
Faz pouco tempo, num debate com a militância do MST, o companheiro Gilmar Mauro nos lembrava que uma organização que não responde às necessidades de sua base social está condenada a desaparecer. Talvez estejamos voltando a perceber que nosso povo, além de possuir demandas materiais, como terra, teto e melhores salários, também precisa, igualmente, de bens simbólicos, como sentimento de pertença, beleza, acolhimento, equilíbrio psíquico etc.
Enquanto, no nosso trabalho de base, não formos capazes de constituir espaços na periferia que atendam a essas necessidades profundas da classe trabalhadora – com as nossas formas e que difundam os valores nos quais apostamos -, vamos continuar a assistir ao povo lotando as igrejas pentecostais, enquanto seus pastores enriquecem e começam a disputar o poder político de nossa sociedade .
Notas:
[10] Cf. http://noticias.gospelmais.com.br/ultimas-pesquisas-do-ibge-mostra-aumento-do-indice-de-evangelicos.html
[11] Cf. http://noticias.gospelmais.com.br/pesquisa-diz-que-11-dos-brasileiros-tem-duas-religioes.html
[12] Cf. Mike Davis. “Planeta Favela” IN: Contragolpes – seleção de artigos da New Left Review. São Paulo, Boitempo Editorial, 2006.
[13] Sonia Figueira. “Jesus, o médico dos médicos – a cura no pentecostalismo segundo usuários de um serviço local de saúde”. Dissertação de mestrado. Fac. de Saúde Pública, USP, 1996.
[14] VALLA, Vincent. “O que a saúde tem a ver com a religião” IN: Religião e cultura popular. Rio de Janeiro, DP&A Editora, 2001. (p. 117).
[15] Cf. matéria do jornal Folha de São Paulo, de 16/01/2011.
[16] Miriam Rabelo, Sueli Motta, Juliana Nunes. “Comparando experiências de aflição e tratamento no candomblé, pentecostalismo e espiritismo” IN: Religião e sociedade, vol. 22, n. 1, 2002.
[17] Maria Machado. “Olhando as mulheres pentecostais no espelho” IN: Religião e cultura popular. Rio de Janeiro, DP&A Editora, 2001. (p. 81).
[18] Se as experiências das ocupações me despertaram para a atenção em relação ao caráter terapêutico que elas podem ter para o povo, me parece que tão urgente quanto é que nos dediquemos a refletir sobre a necessidade de pensar em algum tipo de intervenção terapêutica para a militância dos movimentos populares. Se a precariedade das condições de vida das classes populares, como vimos, tem causado os mais diversos tipos de sofrimento psíquico, o que dirá daqueles companheiros que, além de sofrerem com estas brutais condições de vida, ainda sofrem um enorme desgaste psicológico em virtude das responsabilidades que assumem na organização do movimento.
Marco, vou dizer aqui publicamente, o que já te disse por e-mail uma vez. Acho que você deveria tentar publicar tua pesquisa que deu origem a esses textos no Passa Palavra na íntegra. Acho mais que pertinente o tema, fora a qualidade literária para uma pesquisa política.
Fora isso, vou comentar alguma coisa com base em comentários que apareceram na primeira parte do texto.
Devemos ter claro que “cura” nunca haverá, ou pelo menos não nesta sociedade. Sem mudança das relações sociais (o que inclui as econômicas e políticas), os males (também psicólogicos) que elas causam não se extinguirão. Nesse sentido o efeito terapêutico, por assim dizer, de um movimento social ou luta, deve ser o de dimimnuir o sofrimento psíquico, trazer mais bem-estar, em certo sentido, ao mesmo tempo fazendo avançar a vontade de lutar e de promover mudanças sociais.
Toda terapia (pelo menos as desprovidas de laços orgânicos com movimentos políticos ou sociais)é adaptadora. Mesmo aquelas que se dizem “anarquistas” são terapias, como todas, para fazer o indivíduo se setir bem e viver melhor nesta sociedade (deixo os exemplos para outro momento).
Wilhelm Reich, no seu livro “A Revolução Sexual”, já alertava para a diferença entre assistência individual (as terapias) e política pública. Não via ele modo de sanar os problemas psicológicos do seu tempo (do nosso tempo) que não fosse através de políticas públicas.
Reich tinha muito claro a tarefa adaptadora das terapias. Ele dá exemplo de uma própria paciente dele, que se matou após a terapia, pois a terapia aplicada por ele tornou o estado de coisas em que ela estava imersa totalmente insuportável. Ou a terapia é adaptadora ou é homicida.
Uma que não seja nem uma coisa nem outra, mas que seja revolucionária, também acho que só poderá existir como parte indistinguível de um movimento social.
Marco Fernandes,
Você escreve: “Numa reunião da militância do MTST, em fins de 2008, alguns companheiros perguntaram ‘se não era possível o movimento conseguir algum psicólogo ou psiquiatra’, pois eram muitos os militantes que vinham passando por sérios problemas psíquicos (que eu saiba, até hoje nenhuma solução foi encontrada).” A meu ver, a passagem expressa três contradições com a afirmação central da série. Sendo: 1) Mesmo tendo a oportunidade você não respondeu aos companheiros do MTST o quão desnecessário seria conseguir um psicólogo ou psiquiatra para atender quem já vivenciava uma mística curadora. 2) Você espera que seja encontrada uma solução para o referido caso como se ela já não tivesse sido encontrada, como se de fato a luta não tivesse todo este poder de curar os doentes. 3) Os militantes desejavam ser atendidos por algum psicólogo ou psiquiatra, o que mostra que a luta não os curava. Ao olhar ao meu redor, recordar muitas coisas que vi ou que fiquei sabendo, não me convenço desta ideia de que a luta cura, mas mesmo assim eu me animo em trazer este comentário. Talvez seja útil para o debate.
Fernando,
Vou responder seu comentário antes do Marco, da forma como li e entendi onde o Marco quer chegar.
Acho que o título da série é muito mais figura de linguagem, frase e efeito, e não deveria ser levado ao pé da letra.
O ponto que o autor quer chegar, a meu ver, é o que ele apresenta na parte final deste terceiro artigo, ou seja: que os movimentos sociais e a esquerda tem que atentar para as demandas “simbólicas” (eu diria imateriais)da população, dos ferrados da vida.
Creio que na segunda parte, em que ele busca apresentar algumas experiências que ele conheceu no MTST, ele procura mostrar demandas imateriais sendo expressadas explicitamente dentro do movimento, e encontrando alguma resposta, mesmo que transitória, a patir de práticas do movimento.
É justamente porque “o movimento não cura” ou “cura muito pouco”, muito menos que as Igrejas, que o tema foi levantando pelo autor, e muito oportunamente, a meu ver.
Pelo menos é essa a minha leitura.
peço desculpas pela ausência das respostas aos últimos comentários. tá faltando tempo pra respondê-los a altura, visto que todos trazem questões da maior importância e complexidade…mas não desisti de fazê-lo…
por enquanto, me contento em dizer que faço minhas as palavras do Leo Vinicius que, ao que parece, captou inteiramente as intenções políticas por trás do texto.
caro Fernando, talvez eu tenha exagerado na retórica do título (e não creio que um texto político possa prescindir da retórica), mas se vc reler o texto sob a luz dos comentários do Leo, verá que estou falando justamente que nos faz muita falta, nos movimentos populares, o conhecimento de práticas terapêuticas que pudessem ser úteis a uma retomada do trabalho de base nos bairros populares (veja que chamo os relatos dos acampamentos de “lampejos terapêuticos”, portanto tento dizer que aquilo que ali se vivencia é muito pouco perto do grande problema com o qual temos nos deparado no cotidiano da periferia). se assim não fosse, não faria sentido eu escrever a última parte sobre os pentecostais e sugerir que devamos prestar mais atenção às causas deste fenômeno; não é mesmo?
e talvez vc pudesse tratar o tema com menos ironia do que deixa transparecer no seu comentário…
Olá,
Pode ser de interesse do Marco, e de algumas pessoas que acompanham o debate dessa temática. A Revista IHU – da Unisinos – publicou uma série de artigos concentrados no assunto:
– A ”nova classe média” e as perspectivas de um novo cenário religioso brasileiro
Quem quiser conferir, é só acessar: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?secao=366
Abraços.
Caro Marco Fernandes,
Só agora é que posso responder.
Mesmo eu sendo um apreciador das ironias empregadas nas artes e no trabalho intelectual, esta não foi a minha opção; embora fosse legítimo. Eu apenas tentei contribuir colocando aqui as contradições que enxerguei. Todas elas ligadas à prática, que é o mais importante na política.
Considerando que o tempo de lazer, a fruição do belo, o acesso a cultura de forma geral são hoje espaço do capital, isto restringe em demasia a possibilidade de uma construção autônoma por parte da classe trabalhadora. Quando os movimentos sociais e a esquerda têm uma intervenção quase nula nestas áreas, resta aos trabalhadores (e também aos militantes) recorrerem aos espaços de sociabilidade criados pelo capital, com todos os problemas daí advindos.
Por isso a importância da esquerda e dos movimentos sociais repensar o acesso e a produção dos meios culturais e estéticos, isto, na exata medida em que insistentemente continuam a ser ignoradas pelas organizações de esquerda.
A construção de subjetividades desde baixo e à esquerda me parece um elemento central na luta de classes. E para quem milita (ou militou) em organizações de massa pauperizada de esquerda, sabe o quanto problemas psicológicos são relevantes na construção e desconstrução de processos de luta, até porque as pessoas não militam somente por critérios racionais.
Isto é potencializado em momentos, por exemplo, de “festividades compulsórias” (como o dia das mães, natal, aniversário etc.), em espaços “de luta” como as ocupações, que são também espaços de miséria e carência, quando não constitui-se laços fortes comunitários e de sociabilidade, de “comunidade”.
Nestas condições, pude presenciar o quanto uma conversa franca entre companheiros pode ter também um valor terapêutico, no caso uma senhora “ocupante”, que vivia praticamente sozinha e que estava sofrendo de depressão com surtos de esquizofrenia às vésperas do natal.
E aí, Marco, fica uma dúvida. Como você colocou, os momentos de ocupação são momentos de ruptura com o cotidiano, mas este necessariamente volta a se impor. Estes processos terapêuticos que você relata tiveram prosseguimento em momentos mais longos? Como na constituição de assentamentos ou a conquista de prédios?
Abraços,
Alex