Quem estudar a economia brasileira contemporânea deparará com sintomas de crescimento e expansão junto de indícios de atraso e fragilidades. Por João Bernardo

O Brasil vive uma profunda mudança de sua inserção na economia e na política globais. Nunca antes na história deste país se produziu, exportou e investiu tanto, em especial fora das fronteiras – desenvolvendo as empresas transnacionais de origem brasileira. Nunca antes a política externa brasileira foi tão independente – com base na exploração dos recursos econômicos da América Latina e na disputa de mercados e de espaços de investimento em África. Nunca antes o Brasil foi tão engajado – ao ponto de grandes capitalistas apoiarem políticas compensatórias “de esquerda”. Na verdade – e é o que queremos investigar com esta série de artigos – nunca antes o Brasil foi tão imperialista.

O retrato do inimigo é frequentemente uma caricatura em que cada um reflecte os seus desejos e temores. Do nosso lado há muito quem desenhe os patrões com rostos flácidos e concupiscentes e com dedos encarquilhados pela avareza e os generais com expressões patibulares, enquanto do lado de lá não falta quem pinte os trabalhadores como estúpidos madraços e os guerrilheiros como facínoras de faca entre os dentes. As coisas seriam fáceis se fossem assim, por isso muitos preferem pensar que o são. O mesmo sucede na economia. É mais simples denunciar o trabalho infantil semiescravo, os acidentes de trabalho e o desprezo pela saúde das populações do que desvendar a exploração numas instalações limpas e seguras onde os trabalhadores sejam tratados como seres humanos inteligentes e merecedores de respeito. E no entanto, como os teóricos de administração de empresa sabem, na sequência de Elton Mayo e outros pioneiros, é nestas últimas que a produtividade mais sobe e que, portanto, maior é a exploração.

Ser anticapitalista é uma coisa. Outra coisa é a imagem que cada um de nós forma do capitalismo. A análise do Brasil que vou empreender nestes oito artigos recusa as facilidades da caricatura, e prevejo que ela deixe muitos leitores perplexos e outros francamente indignados. É que geralmente a extrema-esquerda não sabe se há-de acusar os governos do PT de serem favoráveis ao capitalismo — o que é inútil porque eles nunca o negaram nem se lembrariam de negar — ou de serem maus gestores do capitalismo — o que é ridículo porque os patrões e os administradores das grandes empresas aplaudem o governo. E assim a extrema-esquerda censura os governos do PT ao mesmo tempo por desenvolverem o capitalismo e por não o desenvolverem suficientemente. Como irei expor aqui o crescimento económico e a expansão imperialista do Brasil nos últimos dez anos, durante o período da gestão do PT, hei-de ser apelidado disto e mais daquilo. Não se perdoa a quem pretende destruir o conforto das ilusões.

É fascinante analisar a história em curso, porque se trata de um terreno para o qual não está ainda desenhado o mapa, e nesse emaranhado de sinais, tantos deles contraditórios, como determinar quais são os decisivos, os que indicam os caminhos ainda por abrir? Vou arriscar-me. De uma coisa pelo menos estou certo, da urgência de deixar para trás visões do capitalismo brasileiro que já não correspondem à realidade, se é que alguma vez corresponderam. E mesmo que eu me dê conta amanhã ou depois de amanhã de não ter detectado acertadamente algumas linhas de tendência, pelo menos resta-me a satisfação de ter contribuído para enterrar os defuntos.

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Quem estudar a economia brasileira contemporânea deparará com sintomas de crescimento e expansão junto de indícios de atraso e fragilidades.

brasil-1-gSe considerarmos as últimas três ou quatro décadas e tentarmos definir o lugar ocupado pelo Brasil entre as economias emergentes, a comparação de certos indicadores não inspira optimismo à primeira vista. Começando por onde geralmente se começa, pelo Produto Interno Bruto, PIB, de 1960 até 1980 o Brasil cresceu a uma média anual de 7,3%, caindo para 2,1% de 1981 até 1991 e subindo para 3,0% de 1992 até 2006, o que fez o crescimento médio anual do PIB brasileiro limitar-se a 2,5% entre 1981 e 2006. Durante os anos que decorreram desde 1982 até 2003 apenas três vezes — em 1984, 1986 e 1994 — as taxas de crescimento do PIB ultrapassaram 5%. Carlos Gonçalves advertiu que «se seguirmos no ritmo das últimas décadas, nossa renda per capita demorará mais de 50 anos para duplicar» [1], e entretanto as autoridades chinesas previram em 2008 que o PIB per capita do seu país quadruplicaria por volta de 2020.

O declínio na década de 1980, porém, apesar de acentuado, não impediu que o país mantivesse uma posição razoável no contexto latino-americano, como mostra a tabela 1. Foi na década de 1990 que o Brasil mais se atrasou não só relativamente às outras três grandes economias da América Latina como relativamente à média da região. E embora o crescimento do PIB brasileiro tivesse recomeçado após 2004, no período de 2004 até 2008 ele foi ainda inferior à média latino-americana e até inferior ao de alguns dos seus concorrentes próximos. Aliás, note-se que neste período a taxa de 4,6% resultou de uma revisão operada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, depois de considerar que o PIB estava a ser subestimado.

Tabela 1: Crescimento do PIB (em taxas anuais de variação)

Fonte: Comisión Económica para América Latina y el Caribe, La Hora de la Igualdad. Brechas por Cerrar, Caminos por Abrir, CEPAL, 2010.

A posição do Brasil também parece ter evoluído desfavoravelmente em comparação com os outros três países com os quais, a partir de 2001, passou a ser incluído nos BRICs [2]. Segundo o critério empregue na tabela 2, o Brasil foi o único a responsabilizar-se por uma percentagem declinante do PIB mundial.

Tabela 2: PIB em Paridade do Poder de Compra (em % do PIB mundial)

Fonte: Ricardo Reisen de Pinho, Gigantes Brasileiros: Multinacionais Emergentes e Competição Global, Tese de Doutoramento na Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2008.

Será que este declínio relativo se reproduzirá no futuro? Em que medida as transformações sócio-económicas operadas durante os últimos anos no Brasil poderão sustentar um crescimento sólido e continuado do PIB?

brasil-1-fA dimensão do mercado interno estimula o desenvolvimento económico, pois o baixo nível do rendimento médio é um factor menos importante do que o crescimento positivo desse rendimento. Pouco importa que seja mercado de pobres, se os pobres se forem tornando menos pobres, e este processo acelerou-se e ampliou-se sob os governos do PT. A elevação do salário mínimo, que subiu cerca de 60% em valor real durante os dois governos Lula, e o Programa Bolsa Família, que o Passa Palavra analisou em vários artigos, têm contribuído para a expansão do mercado de consumo e para a unificação do mercado de trabalho, nomeadamente aumentando a percentagem da população activa com trabalho formal. A taxa de desemprego caiu de 12,4% em 2003 para 6,7% em 2010, e de 2006 até 2008 foram criados 4,3 milhões de novos empregos formais. Veremos em que medida o novo programa Brasil Sem Miséria, lançado em Junho de 2011, conseguirá elevar o processo a novos patamares. Estes resultados costumam ser avaliados mediante a redução do índice de Gini, que tem descido todos os anos, passando de 0,563 em 2002 para 0,521 em 2008. E chegamos assim a constatações surpreendentes. Um estudo realizado em parceria pela Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, e pela Universidade Federal da Bahia, UFBA, abrangendo 70% dos trabalhadores formais urbanos do Brasil e dos Estados Unidos, concluiu que durante a década de 2001 a 2009 cresceu no Brasil o emprego formal, houve uma subida média de 13% nos salários reais e a protecção social aumentou, enquanto os Estados Unidos seguiram o percurso inverso, com abertura de novos postos de trabalho especialmente em ramos de baixa remuneração, praticamente sem aumento do salário real e diminuindo a protecção social [3]. Mas indicará este estudo a ascensão do Brasil ou limitar-se-á a confirmar o declínio dos Estados Unidos? Na tabela 3 recorro a outra perspectiva, que permite avaliar em vários países a evolução positiva ou negativa da unificação do mercado nacional.

Tabela 3: Desigualdade sócio-geográfica

Fonte: Comisión Económica para América Latina y el Caribe, La Hora de la Igualdad. Brechas por Cerrar, Caminos por Abrir, CEPAL, 2010.

brasil-1-aDos países seleccionados na tabela 3, foi o Brasil o que mais drasticamente reduziu a diferença entre a região mais rica e a mais pobre, acelerando assim tanto a unificação do mercado de bens de consumo como do mercado de trabalho. Em termos marxistas, isto implica uma forte pressão para o desenvolvimento da mais-valia relativa, ou seja, um sistema de exploração da força de trabalho assente no aumento da produtividade, que constitui o mecanismo central do progresso no capitalismo. Talvez uma dimensão quantitativa ajude aqui. Procedendo a um exercício de simulação, Ronaldo Lamounier Locatelli constatou em 1985 que, se a repartição dos rendimentos no Brasil se tornasse mais equitativa e se assemelhasse à do Reino Unido, o emprego industrial aumentaria 16%. «Isso ocorreria», explicou Werner Baer, «porque o maior poder aquisitivo dos grupos de baixa renda aumentaria a demanda por bens de tecnologia que supõe a ocupação intensiva de mão-de-obra» [4]. E como a subida dos salários, desde que estimule a produtividade das empresas, implicando o aumento da taxa de capacidade instalada por trabalhador, leva à produção de um maior volume de bens a menores preços, conclui-se que nessas condições a subida dos salários tem efeitos depressivos sobre a taxa de inflação, sendo portanto compatível com a estabilidade macroeconómica. Consolida-se assim a base da economia.

E esta base é tanto mais sólida quanto o Brasil dispõe de condições tecnológicas para o crescimento da produtividade. Num artigo publicado neste site chamei a atenção para o tipo de desenvolvimento prosseguido no Brasil desde os meados da década de 1950, que, ao substituir as importações pela abertura aos investimentos externos directos [5], evitou que o proteccionismo isolasse o país das redes mundiais de tecnologia. Nacionalismo para o exterior com internacionalismo dentro das fronteiras foi uma receita que deu resultado. Em seguida, as privatizações efectuadas na década de 1990 contribuíram para facilitar o acesso das grandes empresas às inovações tecnológicas. Formou-se assim uma base interna que permitiu a recente expansão mundial do capitalismo brasileiro. Em suma, a internacionalização da economia foi transferida de dentro para fora das fronteiras. Além de as firmas brasileiras concorrerem no interior do país com as filiais das companhias transnacionais, passaram também a concorrer no estrangeiro.

brasil-1-eSe assim é, no entanto, os números deixam a desejar. Numa economia globalizada são as ligações ao exterior que contam, e ainda neste plano a situação do Brasil parece modesta. É certo que o país viveu ao longo de décadas virado para o mercado interno e só recentemente aumentou a importância do comércio externo na sua economia, mas apesar disto ficamos com a ideia de uma certa estagnação a longo prazo. As exportações brasileiras, que em 1980 haviam representado 0,99% das exportações mundiais, caíram para 0,91% em 1991 e subiram para 0,94% em 1998 e para 1,10% em 2004. Esta relativa estagnação deixa-nos sem saber se se manterá a ascensão verificada nos últimos anos, quando a parte do Brasil nas exportações mundiais aumentou para 1,18% em 2007 e para 1,35% no final de 2010. Se mudarmos de perspectiva e tomarmos a economia interna como termo de comparação, «partindo de níveis próximos a 10% antes da abertura, a participação das exportações no PIB atingiu em meados da década de 2000 proporções da ordem de apenas 13%, indicando tratar-se de uma economia ainda fechada para o comércio exterior» [6]. Ou, segundo outro critério, na década de 2000 a soma das exportações e das importações em proporção do PIB não ultrapassou 20% no Brasil, enquanto que a média nos países asiáticos foi de 45%. E o Brasil teria de ampliar de 80% estas duas categorias do comércio externo se pretendesse atingir um valor próximo à média latino-americana.

Se aqueles que comentaram negativamente os meus artigos sobre o Brasil Potência não desprezassem os factos — e os factos em economia são números — era estatísticas como estas que deviam ter citado, em vez de transcreverem textos de há trinta ou mais anos atrás. Ainda assim os números agregados podem ser enganadores, e talvez uma análise da composição das exportações nos elucide acerca da capacidade do Brasil para acelerar o seu desenvolvimento ou, pelo contrário, para o reverter.

Notas

[1] Carlos Eduardo Soares Gonçalves, «Produtividade e instituições no Brasil e no mundo: ensinamentos teóricos e empíricos», em Octavio de Barros e Fabio Giambiagi (orgs.), Brasil Globalizado. O Brasil em um Mundo Surpreendente, Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, pág. 197.
[2] Em 2001 Jim O’Neill, economista-chefe da firma financeira Goldman Sachs, reuniu num grupo o Brasil, a Rússia, a Índia e a China, fazendo um acrónimo fácil de fixar porque se pronuncia como a palavra inglesa que significa tijolo.
[3] «Estudo põe trabalhador brasileiro em vantagem sobre EUA», O Estado de S. Paulo, 21 de Maio de 2011.
[4] Werner Baer, A Economia Brasileira, São Paulo: Nobel, 2009, pág. 493.
[5] Classificam-se como investimentos externos directos aqueles que asseguram ao investidor o controlo ou, pelo menos, um interesse duradouro e uma influência decisiva na empresa estrangeira onde o capital é aplicado. Considera-se habitualmente que o investimento é directo quando permite adquirir uma participação superior a 10% do capital de empresas estrangeiras. Uma participação inferior é considerada como um investimento de portfolio ou investimento em carteira.
[6] Regis Bonelli e Armando Castelar Pinheiro, «Abertura e crescimento econômico no Brasil, em Octavio de Barros e Fabio Giambiagi (orgs.), op. cit., pág. 104.

Esta série inclui os seguintes artigos
1) hesitações
2) desindustrialização ou avanço tecnológico?
3) infra-estruturas
4) ensino e Pesquisa e Desenvolvimento
5) capitalismo burocrático
6) transnacionalização tardia
7) geografia do novo imperialismo
8) teia do novo imperialismo

1 COMENTÁRIO

  1. “Ainda assim os números agregados podem ser enganadores, e talvez uma análise da composição das exportações nos elucide acerca da capacidade do Brasil para acelerar o seu desenvolvimento ou, pelo contrário, para o reverter.”

    Muito importante essa ressalva. Devemos analisar a base de exportações (e importações) brasileira para ter um balanço mais acertado das perspectivas de crescimento, a aposta numa economia de exportação primária (commodities agrícolas e minerais) é um possível problema em caso de uma crise mundial, ainda que o mercado interno esteja fortalecido.

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