Por Manolo

Leia a segunda e a terceira partes do artigo.

Prefácio de 2011

Estas “teses” foram escritas entre dezembro de 2003 e dezembro de 2004 para um livro coletivo que, apesar da excelente qualidade dos artigos escritos, não encontrou editora que o publicasse. Toda a escrita foi feita com sangue no olho e espírito provocativo; uma vez que o livro pretendia ser divulgado especialmente entre a juventude urbana, meu intuito era justamente apresentar uma experiência histórica que, para a geração que então participava do movimento estudantil (e dos diversos movimentos de juventude além deste), era algo desmedido e profundamente radical, só encontrada então nos protestos anti-globalização – que, na época, eram uma verdadeira descarga elétrica nos imaginários rebeldes. Isto influenciou a forma do artigo; nas palavras de então, resgatadas da lista de discussão editorial do livro, “penso sempre que nossos textos precisam ser compreendidos por pessoas com pouco acúmulo de cultura acadêmica e remeterem constantemente ao cotidiano que nos é mais próximo – daí a ausência de requisitos da formalidade acadêmica, tais como referências bibliográficas em sistema autor/data, esquema ‘introdução/desenvolvimento/conclusão’, discussão de hipóteses etc..” Devo registrar a gratidão a todos aqueles que, na época, contribuíram decisivamente para a forma final das teses durante sua elaboração.

É evidente que, com o passar do tempo, o olhar crítico exerce-se mesmo sobre aquilo que considerávamos, até certo ponto, livre de críticas. Quase sete anos depois de finalizar o artigo, é possível dizer que há nas teses uma série de afirmações controversas e outras verdadeiramente temerárias; certos assuntos são repetidos a torto e a direito, enquanto outros mal se destacam; a construção das frases é truncada, e às vezes mal se consegue ter noção do assunto tratado. É um artigo que, para os padrões que passei a adotar após escrever “Transporte coletivo urbano e luta de classes: um panorama da questão” (Cadernos do CEAS, 226, abr./jun. 2007), chega a ser vergonhoso. Mas que diabo leva um autor a propor a publicação de um texto que, além de estar quase completamente datado, nem ele mesmo gosta muito? Não obstante as diversas razões para esquecer este artigo no disco rígido de algum computador e apagá-lo progressivamente da memória, um motivo impulsiona sua apresentação para publicação: em 2008 a Revolta do Buzu completou cinco anos, e o assunto, fora do meio estudantil, nem sequer é mencionado. Além disso, a memória das lutas inspirou diretamente aqueles estudantes que, em janeiro de 2011, lutaram contra mais um aumento de tarifas de ônibus em Salvador. Alguns dos motivos para isso podem ser vistos no texto; apesar de sua enorme fragilidade de forma e conteúdo, estas teses são, até o momento, a mais extensa avaliação “de dentro” da Revolta do Buzu a que já tive acesso, e resgatam pontos sensíveis do movimento.

Parte deste artigo foi elaborado durante a ocupação da reitoria da UFBA realizada em 2004, e ainda enquanto eu escrevia, Florianópolis era paralisada pela primeira Revolta da Catraca (2004), movimento semelhantíssimo à Revolta do Buzu e diretamente inspirado por ela. Estas teses não foram publicadas em lugar algum, mas tiveram relativa circulação eletrônica em São Paulo, Florianópolis, Brasília, Fortaleza, Goiânia, Salvador e outras cidades de 2004 até 2006. Por isso, preferi mantê-las tal como foram divulgadas à época, sem maiores correções, nem mesmo quanto a eventos ocorridos posteriormente; o texto é datado, mas modificá-lo significaria a perda do frescor e gana com o qual foi escrito. Quem desejar ter acesso ao desenvolvimento das hipóteses aqui levantadas, e mesmo a dados mais recentes sobre transporte público, pode consultar o já referido artigo “Transporte coletivo urbano e luta de classes: um panorama da questão”, que usa este artigo como uma de suas bases.

Mas chega de resmungos autocríticos; que as críticas e observações sejam feitas por quem lê, e não por um autor extremamente rigoroso com seus escritos passados. Que quem lê confronte as afirmações polêmicas e as teses controversas com sua própria memória dos fatos, se deles participou; que veja seu próprio lugar na época, o que viveu, o que sentiu e como se relacionou com o movimento (que recebeu extensa cobertura pela imprensa de circulação nacional); que se sinta provocado até mesmo a escrever respostas a estas teses, se assim achar necessário. O que me parece impossível é permanecer parado por tanto tempo após um evento que movimentou de cima a baixo a terceira maior cidade do país.

I
O transporte coletivo público é simultaneamente bem de consumo coletivo e instrumento essencial para o funcionamento da economia capitalista; por isso mesmo é objeto de disputa entre capitalistas e trabalhadores.

O transporte coletivo público é um dos componentes necessários para o funcionamento da economia capitalista: serve, especificamente, para fazer com que pessoas amontoadas nas periferias por força do processo histórico de concentração dos meios de produção e dos postos de trabalho nas cidades possam chegar ao(s) centro(s) econômico(s) onde vão trabalhar, seja como trabalhadores assalariados, seja como autônomos. Na esfera do trabalho, a mesma linha Fazenda Grande 2/3 – Lapa/Barra serve tanto ao eletricista que sai de Fazenda Grande 2 para rever a instalação elétrica de um apartamento na Barra quanto ao garçom de Fazenda Grande 3 que vai trabalhar num restaurante chinês no mesmo bairro. Qualquer que fosse a forma do trabalho assalariado (garçons, soldadores, costureiras, atendentes de telemarketing, técnicos de laboratório, mecânicos, etc.), ou mesmo do trabalho autônomo (eletricistas, manicures, pintores, etc.), o resultado não se alteraria: o transporte coletivo público é o seu meio de transporte por excelência. Tanto o salário do garçom quanto a renda mensal do eletricista lhes permitem no máximo comprar, com certo grau de esforço, digamos, um carro popular com sete a dez anos de idade.

Mais especificamente no caso do trabalhador assalariado, ou seja, daquele que vende sua força de trabalho a capitalistas num lugar determinado por estes últimos, a pontualidade é fator essencial para que os patrões possam extrair o máximo possível da força de trabalho – ou seja, dos trabalhadores – que exploram durante o tempo em que esta força de trabalho – melhor dizendo, os trabalhadores – se encontra à sua disposição. O trabalhador precisa, assim – além, obviamente, do deslocamento até o local de trabalho – chegar sempre no horário que lhe é determinado, sob pena de redução no pagamento, compensação em horário fora de expediente e até mesmo corte de ponto no dia. Para piorar a situação, a jornada de trabalho nos vários setores da economia é geralmente coincidente, iniciando-se e encerrando-se em horário semelhante. O sistema de transporte como um todo tem, assim, horários de pico condicionados pelas jornadas de trabalho; nestes horários de pico o transporte coletivo público recebe, como toda a malha viária urbana, o grosso de seu público – eis a origem da situação bem conhecida da metamorfose da pessoa em sardinha nos ônibus, trens e metrôs.

O trabalhador nas cidades, como visto, precisa consumir transporte para chegar ao local onde trabalhará. O consumo do transporte coletivo público – que acontece com o deslocamento de pessoas nos ônibus, trens, trólebus, metrôs, etc., a cada vez que pagam por isso – assim como o de quaisquer outros bens de consumo coletivo num sistema capitalista, aparentemente, não se diferencia do consumo de qualquer outro bem posto à disposição no mercado: o consumidor, posto diante de várias opções, escolhe dentre a melhor delas e satisfaz sua necessidade com o produto. Mas justamente por ser necessário o consumo de transporte coletivo público para que o trabalhador possa trabalhar é que este consumo entra na conta do valor de sua mão-de-obra. Quanto mais caro é o deslocamento do trabalhador de sua casa para o lugar onde trabalha, mais despesa ele precisa fazer para trabalhar; conseqüentemente, precisa ganhar mais para que possa se deslocar usando o transporte coletivo urbano. O consumo de bens coletivos, como o transporte coletivo público, serviços médico-hospitalares, centros culturais etc., influi diretamente no preço da mão-de-obra para torná-la mais cara ou barata, a depender do custo deste consumo.

Por outro lado, não há capitalista que queira reduzir seu lucro em favor do que quer que seja, muito pelo contrário; isso arriscaria sua própria atividade empresarial. Ou seja: quando um capitalista não respeita as condições necessárias para a sua sustentação e manutenção de sua empresa, reduzindo os lucros, inviabiliza a própria continuidade de seu negócio. Um aumento na tarifa de transporte faz com que o salário do trabalhador precise aumentar, para que ele possa se deslocar a mesma quantidade de vezes – especialmente no trajeto casa-trabalho-casa – sem ter que reduzir outros gastos; o capitalista evita este aumento nos custos de sua empresa deixando de contratar quem tem maiores despesas com transportes por morar longe. É assim que o aumento da distância entre a moradia do trabalhador e o local de trabalho termina por se tornar um fator de desemprego e precarização do trabalho nas grandes cidades, pois o capitalista, por pretender reduzir custos e aumentar ou manter seu lucro, prefere comprar a força de trabalho do trabalhador que more mais perto de sua empresa – o que desde já reduz as chances de quem mora na periferia de ocupar um posto de trabalho formal.

Existem, obviamente, outros usos para o transporte coletivo urbano. Analisei aqui um dos aspectos do transporte urbano que me parece ter preferência frente aos outros, por ser aquele através do qual se conseguem recursos para o consumo de transporte coletivo público necessário a outras atividades. O mesmo ônibus que o trabalhador usa para chegar a seu local de trabalho também conduz pagodeiros para a praia, transporta as compras feitas nos supermercados para as casas dos consumidores, leva e traz o punk de periferia nas noites de show, desloca o estudante de casa para a escola e vice-versa, etc., mas é através do uso de transporte para chegar ao local de trabalho que se conseguem os meios para comprar o cavaquinho do pagode, para fazer as compras, para conseguir o ingresso para o show e o sabão pra espetar o moicano, para comprar a farda e o material escolar…

Todos estes usos, hegemônicos ou não, são componentes do sistema de transporte coletivo público. Acontece que este sistema, inserido como está numa sociedade capitalista, funciona também de forma capitalista: é gerido por capitalistas, sob a forma de empresas de transportes. Não importa que o empresário em questão seja o Estado ou um grupo de capitalistas, pois a empresa de transporte funciona como qualquer outra: à base de trabalhadores que vendem sua força de trabalho num local determinado (ônibus, metrô, vans, escritórios, trólebus, oficinas, garagens, etc.) por um preço que não está sob seu controle imediato.

O sistema de transporte coletivo urbano, entretanto, atende a interesses extremamente conflitantes, já apontados anteriormente. Por um lado, o trabalhador, que precisa consumir o transporte coletivo público como qualquer outro usuário, pretende conseguir transporte ao menor preço possível, para que o custo proibitivo dos transportes não viole seu “sagrado direito de ir e vir” ― tão valioso para as autoridades em tempo de protestos populares, mas sempre desrespeitado na hora de aumentar as tarifas abusivamente – e para que possa transportar-se mais vezes com a menor despesa possível. Por outro lado, a redução no preço do transporte afeta diretamente o lucro das empresas de transporte coletivo público, pois seu produto – o próprio transporte – passaria a ser vendido a um preço proibitivo para a viabilidade da manutenção do negócio, por não cobrir nem as despesas com equipamentos e sua manutenção (manutenção dos veículos, contas de telefone, água e luz, compra de novos veículos, limpeza e manutenção das garagens, etc.) e nem muito menos as despesas com pessoal (salários dos rodoviários, do pessoal de escritório e das oficinas, etc.) – isto segundo seus demonstrativos e relatórios financeiros oficiais, preparados exatamente para demonstrar essa baixa no lucro e resguardar-se contra qualquer comentário ou exigência dos sindicatos dos seus trabalhadores e da população em geral.

É neste quadro que surgem as revoltas populares contra as condições do transporte coletivo urbano. Como visto, os empresários de transporte não pretendem abrir mão de seus lucros e reduzir o preço cobrado pelo transporte. Se for necessário, abrem mão inclusive de despesas com capital fixo (manutenção dos veículos, principalmente) para mantê-lo em patamares que considerem aceitáveis – daí a degradação dos ônibus, a decadência dos trens suburbanos, a baixa renovação ou a redução da frota, etc. Devido à falta de manutenção adequada, os ônibus quebram com mais freqüência, os trens descarrilam com maior facilidade, o reduzido número de veículos em circulação determina maiores intervalos entre dois horários da mesma linha… São problemas que afetam diretamente os usuários do transporte coletivo público: passam a atrasar-se com freqüência, perdem compromissos, irritam-se.

No caso específico do trabalhador, a redução do número de veículos em circulação, por exemplo, significa ter que acordar mais cedo para pegar um transporte que o leve ao trabalho, e às vezes esperar até mais tarde por um outro que o leve para casa – situação que resulta numa redução do seu horário de descanso, com conseqüências das piores. Chegam mesmo a perder seus empregos por conta dos freqüentes atrasos, e perdem a preferência na venda de sua força de trabalho – ou seja, deixam de conseguir emprego – por causa da ineficiência do sistema de transporte coletivo urbano.

Esta situação – aparentemente simulada e apresentada num esquema quase completamente abstrato como introdução a um artigo que pretende apresentar e provocar a análise de uma situação histórica – parece ser nada mais que um esquema de justificação ideológica, uma moldura “de classe” na qual seria encaixado um movimento massivamente estudantil, como foi o que aconteceu durante as duas últimas semanas de agosto e as três primeiras semanas de setembro de 2003 em Salvador, conhecido como Revolta do Buzu.

Na verdade, nada aqui foi inventado. Esta é a análise concreta de um ciclo de eventos históricos que tomamos como parâmetro de comparação com a Revolta do Buzu, devido à quantidade de analogias entre ambos: a onda de quebra-quebras de ônibus e trens suburbanos que aconteceu entre 1974 e 1981 no Rio de Janeiro, em São Paulo, na Baixada Fluminense, em Salvador, nas “cidades-satélite” de Brasília e em outros centros urbanos. Centenas, milhares de trabalhadores, levados aos últimos limites da superexploração, que sequer tinham às vezes condição de pagar pelo seu próprio transporte, perdiam emprego por causa dos atrasos, e morriam ou ficavam aleijados nos acidentes freqüentes. Em Salvador – precedente que muito nos interessa, pois os pais dos atuais estudantes tinham, na época, idade próxima à que seus filhos revoltados têm hoje – o quebra-quebra de agosto de 1981, durante quase uma semana, ultrapassou os limites da questão específica do transporte coletivo urbano, detonada por um aumento de 64% do preço da passagem dos ônibus; os alvos imediatos, além dos ônibus virados e incendiados, eram os mercados e lojas, de onde a população revoltada trazia gêneros alimentícios depois de botar a segurança pra correr e arrombar suas portas, como na greve da PM em 2001.

As grandes características deste movimento, então como agora, foram a ultrapassagem pela multidão revoltada das entidades que o promoveram, a radicalização inesperada e a impossibilidade de localizar uma “liderança” que respondesse por ele. No caso dos quebra-quebras no Rio de Janeiro, Distrito Federal e São Paulo era mesmo impossível encontrar a multidão responsável pela destruição dos trens e estações: desapareciam antes da chegada da Polícia, a quem cabia apenas cuidar do inventário das perdas.

II
A Revolta do Buzu não foi apenas um movimento estudantil, mas um movimento social, de classe, radicalizado até onde foi possível dentro da conjuntura, no qual a demanda por transporte catalisou várias insatisfações sociais.

Salvador é uma cidade onde, apesar da maioria da população trabalhar com carteira assinada, é muito grande o número de empregos ruins, mal-remunerados e desprotegidos, o índice de desemprego é muito alto e a classe média passou por um penoso processo de empobrecimento na última década, como no resto do país. Os filhos e filhas desta população afetada pelo desemprego, pelo trabalho precário ou pelo empobrecimento progressivo foram os principais protagonistas da Revolta do Buzu.

A maioria dos estudantes que estiveram nas ruas é de escolas públicas (João Florêncio, Costa e Silva, Landulpho Alves, Hamilton de Jesus Lopes, Severino Vieira, ICEIA, CEFET, Odorico Tavares, Davi Mendes, Anísio Teixeira, Central, Pedro Calmon, Teixeira de Freitas, Thales de Azevedo, Ypiranga, Luiza Mahim, Bertholdo Cirilo, Cupertino de Lacerda, Carlos Santana, Euricles de Matos, etc., etc., etc….). Digo que a maioria deles É de escolas públicas, no presente [Nota: o presente, aqui, refere-se a 2004], e não no passado; muitos deles ainda estudam, continuam nas escolas, e – para bem ou mal – permanecem em atividade no movimento estudantil. São os mesmos estudantes que andam de galera pelas praças e parques fazendo farra fora da escola, batendo o baba, tocando pagode, jogando capoeira, namorando, bebendo, conversando, em suma, evitando o local degradado onde lhe impõem ficar por um turno inteiro – a sala de aula. Reconhecem que precisam aprender alguma coisa para “ser alguém na vida”, mas ao mesmo tempo entendem que a escola pública não tem condições de educar ninguém para o que quer que seja.

Os estudantes de escolas particulares (Portinari, ISBA, 2 de Julho, Antônio Vieira, Sartre, Anchieta, etc.) que participaram do movimento sentiram na pele o que é separação entre classes. No momento em que se propôs a implementação do passe livre na assembléia da quadra do Sindicato dos Bancários (04/09/2003), foi feita a ressalva de que apenas os estudantes de escolas públicas deveriam ser beneficiados, porque “tem um monte de filhinho de papai que anda de carro e vai se aproveitar disso”. Por mais que estes estudantes de colégios particulares pertençam, em sua maioria, a uma classe média empobrecida que mal tem condição de mantê-los nas escolas em que estudam, ainda são vistos pelos estudantes de escolas públicas como de classe alta, “bando de barão”, “um monte de filhinho de papai”. Apesar do estranhamento, os estudantes de escolas particulares e públicas integraram-se nas ruas, especialmente nos bloqueios do Centro e da região da Pituba/Costa Azul.

Estudantes de universidades participaram, embora em muito menor medida que secundaristas; apesar do grande número de estudantes “independentes” nas ruas, um número significativo de universitários que participaram das manifestações eram justamente aqueles ligados a partidos e organizações políticas, entidades estudantis e correntes de opinião do movimento estudantil universitário.

Embora este protagonismo de estudantes pobres ou da classe média empobrecida nas manifestações seja inegável pela sua impressionante evidência, a participação da população nos bloqueios de Itapuã, da Av. Suburbana, de Cajazeiras, Pirajá, Liberdade – enfim, da periferia e dos bairros pobres da cidade – ainda não foi compreendida em seus pormenores; a imprensa concentrou-se em regiões centrais da cidade, seja por opção editorial, seja por falta de condições operacionais – problema que afetou principalmente a imprensa independente, como o jornal Província da Bahia e o Centro de Mídia Independente. (Antes que eu me esqueça: bloqueio é, como se convencionou chamar em alguns meios militantes, a aglomeração de pessoas num só lugar, geralmente uma via pública, que tem como objetivo paralisar algum fluxo de trânsito.)

As declarações de apoio da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e da Federação de Associações de Bairro de Salvador (FABS) no começo das mobilizações dizem muito pouco quanto à participação real de trabalhadores e da população dos bairros de periferia. Embora existam notícias da participação de representantes de associações de bairro em alguns bloqueios (Rio Vermelho), não existe até o momento nenhuma análise ou estudo que compreenda esta deficiência e tente ultrapassá-la. Aquilo que conhecemos dos bloqueios de periferia está em algumas poucas palavras de estudantes captadas no vídeo A Revolta do Buzu e em algumas notas esparsas da grande imprensa, e mesmo nestas poucas notícias a separação de classe fica evidente: fora dos holofotes da imprensa e na área da cidade onde ela é elemento indissociável do cotidiano, onde é de fato institucionalizada, a repressão policial foi muito mais violenta que nas áreas centrais da cidade.

Vários fatores conjunturais e históricos contribuíram tanto para seu surgimento quanto para o estabelecimento de certos limites ao movimento; alguns serão apresentados aqui, outros na análise de aspectos particulares do movimento. Os fatores mais recentes – sua lista jamais poderia ser exaustiva – se relacionaram diretamente com a crise do transporte coletivo urbano em Salvador, como a ultrapassagem do limite de sustentabilidade econômica do sistema (segundo alegações do presidente do Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Salvador – SETPS) e a suspensão das obras do metrô de Salvador.

Retomando a história da crise do transporte coletivo público em Salvador para aprofundá-la, a situação que se apresentava em 2003 era, como ainda é, crítica. O presidente do SETPS, Horácio Brasil, numa crise de Maria Antonieta, insultava a inteligência da população nos jornais: para ele, o aumento das passagens de R$ 1,30 para R$ 1,50 não afetaria quem ganhava salário mínimo, pois estas pessoas ou andam a pé ou ganham vale-transporte do patrão. O secretário municipal de transportes, Ivan Barbosa, descartava qualquer hipótese de subsídio aos transportes por parte da Prefeitura. Enquanto isso, no mundo real, grande parte dos cerca de 2.400 ônibus da cidade em 2003 andava com pneus carecas, e sua parte mecânica ainda hoje é comprometida pela idade ou pelo excesso de uso; o interior dos carros é sujo, e muitos deles têm baratas que passeiam inocentemente sobre seu certificado de dedetização. A passagem de ônibus em Salvador, que antes da Revolta do Buzu era de R$ 1,30, representava 28% do salário mínimo de quem pegava dois transportes por dia de segunda a sábado; hoje [em 2004], a passagem aumentada (R$ 1,50) representa 30%.

A população soteropolitana reconhecia a péssima qualidade dos transportes urbanos por ser a principal afetada, e ferroava os empresários sem perdão. Uma usuária chegou a referir-se assim à Estação Pirajá: “o inferno começa às seis horas”. Outro usuário percebeu que os empresários estavam modificando as cadeiras dos ônibus, que passaram a ter menos espaço – causa de grandes incômodos, como a necessidade de sentar com as pernas para fora do espaço das cadeiras e, no caso de pessoas com mais de 1,85m, dores e incômodos nos joelhos. De um modo geral, houve uma brutal redução da quantidade de viagens realizadas – vinte e três milhões de passageiros transportados a menos entre 2002 e 2003, antes do aumento, e cerca de oito milhões de passageiros transportados a menos entre 2003 e 2004, confirmando a tendência de queda iniciada em 2000. Não se pode deduzir disso um aumento do uso de transportes alternativos (bicicleta, skate, patins, etc.) ou o aumento das caronas, mas com certeza um número maior de pessoas anda a pé na cidade por falta de condições de pagar passagens, e para muitas outras, impossibilitadas de andar longos trajetos (que em Salvador podem chegar a 32km, a depender de onde se saia e para onde se queira ir), restou uma opção nem sempre bem aceita: traseirar.

A traseiragem é uma antiga e interessantíssima prática dos usuários de ônibus de Salvador, especialmente de estudantes e moradores de periferia. Ela é facilitada pela disposição da roleta no interior do veículo, instalada bem próximo à porta traseira, à qual se liga por um estreito corredor de barras de ferro chamado de traseira ou – com bastante propriedade – de curral. Nas primeiras horas da manhã, quando todos saem para o trabalho, o ônibus lota, e o curral fica cheio, evitando que outras pessoas entrem no ônibus e causando risco aos passageiros que ali ficam. Como às vezes é mesmo impossível nesta situação passar da traseira para a frente do carro, muita gente fica por ali mesmo e desce pelo fundo quando chega seu ponto – sem pagar a passagem. A prática não se restringe a horários de pico; é possível encontrar traseiristas nos ônibus em qualquer horário, a depender do trajeto do veículo. São estudantes, baleiros, mendigos, bêbados, meninos de rua, desempregados, e mesmo trabalhadores.

Pode-se dizer que entre as empresas de ônibus e os grupos inorganizados de traseiristas existe uma espécie de conflito particular, pois nestes horários de menor fluxo a traseiragem depende de força física para abrir a porta traseira. Daí os empresários terem instalado macacos hidráulicos que segurassem as portas fechadas; eles apareciam quebrados em poucos meses. Trocaram a borracha que une as duas metades da porta traseira por aço puro, mas os traseiristas passaram a andar com tocos de madeira, pedaços serrados de cabo de vassoura, que colocavam entre as bandas da porta como garantia do espaço para as mãos no vão aberto pelo toco. Trata-se da mais antiga e sistemática crítica prática dos usuários de ônibus de Salvador contra o preço das passagens, constantemente vigiada pelos fiscais da empresa colocados ao longo do trajeto dos veículos, que pode acarretar todo tipo de punições para os cobradores e motoristas que a permitem – mas alguns deles reconhecem a dificuldade da situação econômica da população e colaboram com os traseiristas até onde podem em determinados trechos da cidade.

A política nacional também teve grande influência no ânimo popular: era a época da reforma da previdência, que aumentou a desconfiança popular nos partidos de esquerda, especialmente nos partido da base de apoio do Governo Federal (PT, PCdoB, etc.). A conjuntura econômica era conturbada: um dos piores índices de crescimento do desemprego da primeira metade da década, que atingiu indiscriminadamente todos os setores; 4,3% de queda de vendas em julho de 2003 em Salvador; dólar acima de R$ 3,00 em agosto com alta de 2,22%; mercado “nervoso” por causa dos impactos negativos das reformas e com a crise social que apelidava de “Agosto Negro”; o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) derrubara Salvador da 11ª para a 20ª melhor cidade para se trabalhar no Brasil etc. Pelo lado dos movimentos populares, mesmo que não se possa fazer uma relação direta entre um fator e outro, a insatisfação popular generalizada crescia ao mesmo tempo em que o movimento estudantil recrudescia. O Movimento dos Sem-Teto de Salvador (MSTS) fez sua primeira grande manifestação no dia 20 de julho, mesma data em que estudantes anarquistas e apartidários ocuparam a antiga sede da União Municipal e Metropolitana de Estudantes Secundaristas (UMES) para transformá-la na Casa do Estudante. Ainda no começo de agosto, servidores estaduais e federais protestaram no Centro contra a reforma da previdência. Na Av. Suburbana, cerca de 400 pessoas foram às ruas no dia 1.º de agosto para reivindicar mais sinaleiras para o local, e estudantes do Comitê Pró-Cotas da UFBA ocuparam a Reitoria da instituição para acelerar o processo de implementação de cotas para negros no vestibular. Em meados de agosto, camelôs do Porto da Barra protestaram contra a Prefeitura, que queria impedi-los de trabalhar na areia da praia, e no dia 21, além da primeira caminhada do MSTS de seu acampamento até a Prefeitura – um trajeto de cerca de 32 quilômetros –, alunos da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) bloquearam a BR-116 contra o aumento de transportes em sua cidade.

Durante as duas últimas semanas de agosto e as três primeiras de setembro de 2003, esta insatisfação popular generalizada, assim como a revolta com o aumento das passagens e a situação do transporte coletivo, encontrou seu principal veículo de expressão nos estudantes quando eles paralisaram as ruas da cidade. Apesar das pautas apresentadas pelo movimento serem especificamente estudantis, elas surgiram a partir de sua relação com a situação econômica familiar. Não faltaram depoimentos de estudantes no sentido de justificar a redução da passagem porque “minha família não tem condição de pagar um preço desses”, porque “quem ganha salário mínimo não tem condições de pagar isso tudo”, dentre outros. A redução do preço da passagem dos ônibus, única dentre as reivindicações que foi além dos limites estudantis, enquadrava-se nas mesmas justificativas. Famílias com filhos são mais atingidas pelo aumento dos transportes, pois para cada salário há um tanto a mais de custos com crianças em idade escolar, quando estão na escola e não trabalhando, e o custo com transporte multiplica-se com o número de filhos.

[Fim da 1ª das 3 partes do artigo]

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here