É bem possível que nunca uma greve geral tenha sido tão previsível como a que teve lugar em Portugal a 24 de Novembro de 2011. Por Ricardo Noronha
A greve (numa perspectiva) geral
É bem possível que nunca uma greve geral tenha sido tão previsível como a que teve lugar em Portugal a 24 de Novembro de 2011. Exactamente um ano após a última greve geral – cujos cartazes e faixas puderam até ser reutilizados, no contexto da “difícil situação que o país atravessa” –, tivemos direito a uma espécie de repetição, agora com novo governo, nova austeridade, novas “medidas gravosas para os trabalhadores e as camadas mais desprotegidas da população”, somadas apenas a mais raiva e a mais angústia. Desta vez, assinale-se, até as confederações patronais e os partidos de direita afirmaram “compreender” as razões dos grevistas e do seu desagrado, com a despreocupação de quem sabe estar tudo previamente decidido noutras instâncias e a convicção de que, após os protestos habituais das pessoas de sempre, o marfim continuará a correr [tudo continuará na mesma].
A ninguém escapa já o facto de as organizações sindicais serem capazes de paralisar os principais serviços públicos e o sector dos transportes, mas incapazes de estender essa paralisação ao resto da economia. Existem naturalmente empresas privadas – como é o caso da Auto-Europa (filial da Wolkswagen), a maior fábrica do país – que aderiram à paralisação, mas os locais de trabalho do sector terciário que surgiram no contexto dos anos Oitenta e Noventa, para além de diversas várias fábricas das regiões centro e norte do país, continuam a permanecer fora da esfera sindical. Ainda assim, tão pouco passou despercebido o facto de as ruas de Lisboa (pelo menos), e os transportes públicos em geral, estarem significativamente mais vazios do que é habitual. A CGTP [Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses] parece ter feito dos transportes o principal objectivo da sua mobilização, pelo menos no que aos piquetes diz respeito, num contexto em que a circulação metropolitana desempenha um papel preponderante na actividade económica e o seu bloqueio assume um impacto multiplicador assinalável. Verificaram-se diversos actos de sabotagem neste sector, de autoria anónima e de resto pouco referidos pela polícia ou pela comunicação social [mídia], ao contrário do que aconteceu com o lançamento de pedras e cocktails molotovs contra montras [mostruários] de repartições das finanças localizadas no centro de Lisboa, amplamente noticiado com um tom ligeiramente sensacionalista.
Os trabalhadores divididos pelas cúpulas
Coisas novas também as houve, certamente. Pela primeira vez foi convocada uma manifestação pela CGTP para um dia de greve geral. E um conjunto de organizações, movimentos, colectivos e gente diversa decidiu desfilar pelas ruas de Lisboa (o que já tinha acontecido, em menor escala, um ano antes), a partir de um local de concentração distinto, mas prevendo a confluência na manifestação sindical. Algo que os dirigentes sindicais evitaram, fazendo sair apressadamente do Rossio a manifestação da CGTP antes da chegada da outra manifestação que, note-se, era significativamente maior. Este desejo de evitar o “contágio” voltou a manifestar-se em frente ao parlamento, onde o comício sindical terminou assim que chegou a outra manifestação e chegou a ser esboçado um cordão de separação pelo serviço de ordem, que só desistiu quando confrontado com o número muito superior dos manifestantes que estavam a chegar. O desejo de separar de forma estanque as pessoas mobilizadas pelas organizações sindicais daquelas outras que vieram a S. Bento pelos mesmos motivos, mas organizadas de acordo com outras dinâmicas (distintas entre si, note-se bem), foi aliás uma das preocupações notórias das cúpulas sindicais, que continuam a fazer de conta que tudo o que se mexe para além do seu domínio é igualmente estranho à classe trabalhadora.
Naturalmente que a única leitura possível de semelhantes métodos é que aquelas organizações se encontram mergulhadas numa crise profunda e se vêm incapazes de dialogar com outras componentes do movimento social, às quais respondem com perpétua desconfiança e sectarismo, num isolamento que as converte, a prazo, numa ferramenta profundamente ineficaz para lutar contra a austeridade e o empobrecimento dos trabalhadores. Trata-se de uma opção que segue, aliás, a contra-corrente relativamente à dinâmica efectiva do conflito social, uma vez que se formaram piquetes por iniciativa exterior aos sindicatos nalguns locais de trabalho, tendo ainda activistas de alguns movimentos sociais integrando, por iniciativa própria, os piquetes sindicais em certos sectores. Por outro lado, várias pessoas que vieram até S. Bento integradas no cortejo sindical acabaram por ali permanecer, com destaque particularmente visível e ruidoso para um grupo de estivadores do porto de Lisboa, identificáveis pelos seus coletes fluorescentes e pelos petardos [taques] que lançaram incessantemente ao longo do dia.
A polícia a fazer o seu trabalho
Ao fim da tarde, na praça que ladeia o parlamento e onde estava ainda concentrada uma multidão numerosa e díspar, ocorreram os eventos que acabaram por tornar-se o grande tema do dia da greve. Algumas das vedações [cordões de isolamento] erguidas pela polícia para impedir os manifestantes de subir a escadaria do parlamento – como acontecera a 15 de Outubro – foram derrubadas por iniciativa de manifestantes e o corpo de intervenção distribuiu bastonadas pela primeira fila, enquanto uma chuva de garrafas proveniente das filas de trás se abateu sobre os agentes policiais. Num momento assinalado sobretudo pela confusão, com alguns manifestantes a empurrar a polícia enquanto outros levantavam os braços num gesto das suas intenções pacíficas, agentes à paisana começaram a fazer detenções. Imagens divulgadas posteriormente demonstram que alguns desses agentes também estiveram envolvidos nos encontrões com a polícia. Entretanto, várias vozes provenientes da esquerda respeitável e de áreas do movimento social que já se revelaram disponíveis, em manifestações anteriores, para manter com a PSP [Polícia de Segurança Pública] amenas cavaqueiras [conversas amigáveis], não cessam de afirmar peremptoriamente que foram esses mesmos agentes à paisana que derrubaram as vedações e terão “simulado” confrontos com o corpo de intervenção. Trata-se, naturalmente, de algo impossível de comprovar, mas que vem servindo para salientar que os manifestantes, em Portugal mais do que em qualquer outro lado do mundo, limitam a sua indignação ao que lhes é permitido pela lei e mantêm relativamente à cleptocracia reinante uma atitude de sereno e bonito respeitinho.
Numa rua lateral, três agentes à paisana detiveram e espancaram um manifestante alemão que saíra da manifestação para comprar uma cerveja, em frente a várias testemunhas e câmaras de filmar. O vídeo desse episódio conheceu entretanto uma apreciável circulação na internet, enquanto o detido continua a aguardar julgamento em liberdade, apesar da versão inicial difundida pela polícia (e reproduzida acriticamente por vários órgãos de comunicação social), segundo a qual se tratava de um indivíduo extremamente perigoso e procurado pela INTERPOL. Mais recentemente, outros dois manifestantes igualmente detidos durante a manifestação foram condenados a 6 meses de prisão (com pena suspensa durante um ano). O Ministério da Administração Interna anunciou a abertura de um inquérito para averiguar os acontecimentos verificados naquele dia, nomeadamente a proporcionalidade e legalidade da actuação policial. Nada que pudesse sensibilizar, evidentemente, o juiz responsável por semelhante sentença a equacionar a possibilidade de um embuste por trás da acusação do Ministério Público. É bem sabido que a justiça é em Portugal tão cega como em qualquer outra República das Bananas, ainda que suficientemente clarividente para prestar à polícia todo e qualquer servicinho que lhe seja solicitado. Como a comunicação social, diga-se, com raras e mui honrosas excepções.
Ilações
Este tem sido, de resto, o grande tema de debate posterior ao dia da greve geral. Ainda que um dos detidos pareça, pelas imagens televisivas, ser um dos estivadores que permaneceu no largo defronte ao Parlamento, a CGTP limitou-se a demarcar-se de tudo o que aconteceu após o final do seu comício, não dedicando uma linha à violência e à coação policial verificada no dia da greve, ali e noutras partes (o corpo de intervenção desfez os piquetes na CARRIS [empresa de transporte coletivo], na Vimeca e em certas linhas férreas, como fizera já nos CTT [correios] no ano anterior). Note-se que a mesma central sindical tinha já, pela boca do seu dirigente João Torrado numa reportagem do semanário Expresso, comunicado a sua intenção de ver decorrer uma greve “sem tumultos” e onde “tudo corre bem”, referindo a existência de “centena de camaradas mobilizados para garantir a segurança”, bem como uma sólida cooperação com as forças de ordem pública.
Outros sectores cavalgaram a onda da infiltração policial e da actuação dos “agentes provocadores”, mais empenhados em atribuir toda e qualquer ilegalidade à polícia do que em assumir publicamente a defesa de manifestantes detidos em circunstâncias tão duvidosas (e entre os quais se contavam dois menores de idade, dos quais uma rapariga francesa de 16 anos recebeu uma pena suspensa).
Que existiu uma estratégia de intimidação do movimento social conduzida pela polícia no dia da greve geral, pessoa alguma o pode negar. Não apenas os diversos agentes à paisana – óbvios uns, mais subtis outros – mas sobretudo o aparato policial que seguiu e enquadrou a manifestação desde o Rossio, com diversos polícias de caçadeira [espingarda] em punho e protegidos por armaduras e capacetes, sempre prontos para “intervir”. No Largo Camões, por exemplo, um idoso que passava recebeu gás pimenta directamente nos olhos e perdeu os sentidos, devido a um incidente menor envolvendo manifestantes da CGTP. Estratégia que não é aliás nova e que passa sobretudo por provocações e ameaças proferidas através de diversos órgãos de comunicação social, por personagens que vão desde o Primeiro-Ministro e o Ministro da Administração Interna, que invocam a Grécia e os respectivos motins sempre que podem, até ao Presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo, uma personagem directamente saída de um livro de caricaturas e que não se cansa de repetir que, em nome da segurança e da ordem pública, certas garantias legais não devem ser levadas demasiado a sério.
Nunca foram tão frequentes as alusões à conveniência técnica e política de suspender (temporária ou permanentemente) a democracia e este ou aquele direito que emperra excessivamente a engrenagem da austeridade. Toda esta gente, que conduz (?) neste momento o saque organizado a que foi submetida a classe trabalhadora portuguesa, sabe e teme que o pior ainda está para vir. A sua maior preocupação é que a crescente consciência de que não é possível travar esta ofensiva com passeatas e protestos cívicos se materialize em escolhas e actos por parte de quem se organiza para resistir. Procuram criminalizar preventivamente as posições, análises e discursos que defendem semelhantes pontos de vista, na idiota ilusão de que o conflito social pode ser convertido num caso de polícia. Nos próximos meses se verá até que ponto estão dispostas a ir, uma e outra parte deste afrontamento, que promete ter chegado para ficar. A este inverno suceder-se-á outro e depois mais outro. Tudo indica que as coisas estejam prestes a aquecer e não é preciso ser um meteorologista para perceber para que lado sopra o vento.
Ricardo,
concordo contigo na questão de o movimento sindical se mostrar incapaz de se relacionar com o universo heteróclito de movimentos que foram surgindo e crescendo nos últimos dois anos. Mas do outro lado tb existe isso. E não estou certo que as lideranças mais presentes do 15O não sejam menos “burocráticas” e menos alinhadas com o sistema. O que mais importa é que tanto os trabalhadores que se organizam nos sindicatos (sobretudo da CGTP porque a UGT praticamente não tem expressão numérica e quase só existe para assinar de cruz acordos com o governo e com o patronato) como os jovens trabalhadores que estão nesses movimentos se unam.
Portanto, e para tentar ser breve (até pq o teu artigo coloca mtas coisas e não tenho tempo para responder a todas) parece-me que temos de nos confrontar com dois fenómenos centrais:
1) a já referida necessidade de uma unidade de classe entre trabalhadores que estão neste momento organizados nos sindicatos e os jovens trabalhadores (que a maioria deles ainda nem tem essa consciência de classe – e da(s) classe(s));
2) as dificuldades de organização e de trazer para a luta jovens trabalhadores que trabalham nos chamados “serviços” (não vou discutir o conceito que tem muitíssimas insuficiências e se é que é um conceito…). Reformulando, se é verdade que mais jovens trabalhadores têm-se mobilizado importa perceber de que áreas profissionais e de que inserção institucional específica do processo de trabalho é que eles têm vindo. Da minha experiência destas duas últimas Greves Gerais, creio que muito poucos dos que pertencem a um grande proletariado altamente precário nas grandes cadeias de lojas (roupa, electrodomésticos, livrarias/gadgets, restaurantes fast-food) se tenham rebelado. Sublinho que apenas me estou a cingir ao fenómeno da área metropolitana do Porto (e aventuro-me no máximo ao espaço da Grande Lisboa). E já para não falar dos cerca de vinte mil bolseiros de investigação científica (a esmagadora maioria trabalhadores sem contrato de trabalho, no sentido jurídico, e que não são estudantes), das dezenas de milhares de free-lancers em áreas como o design, jornalismo, publicidade, etc. Não sei se tens mais dados (não necessariamente ou unicamente estatísticos) sobre este assunto.
Um abraço
De acordo com esses dois problemas. De acordo também relativamente às “cúpulas” do 15O. Não faltam ali aspirações burocráticas, simplesmente, (1) esse não é um processo tão consolidado e (2) como o ponto de partida é o da horizontalidade, o terreno é-lhes menos sólido debaixo dos pés. Ou seja, cada gesto controleirista e dirigista permite um amplo espaço de denúncia e desautorização que é mais difícil de desenvolver numa estrutura formal.
Parece-me em todo o caso que as dificuldades que levantas podem ser resolvidas no contexto de um debate menos inquinado e de momentos de confluência no contexto DA luta.
Ou seja, não equaciono isto como uma conversa de café, mas de um processo com vários momentos, em que toma forma uma nova composição de classe, que inclua o “grande proletariado altamente precário nas grandes cadeias de lojas”, os bolseiros, os operadores de call centers, operários industriais (que naturalmente também os há e nem todos se mobilizam pela palavra de ordem da “produção nacional), os/as empregados/as de segurança e de limpeza(sem os quais não haveria serviços a funcionar), os «trabalhadores criativos» (design, arquitectura, audiovisual), etc.
Tudo o que trave ou dificulte esse processo é profundamente negativo e tem como efeito enfraquecer a luta dos trabalhadores.
Tudo o que procure reforçar esse processo – mesmo que tenha das questões organizativas, tácticas e estratégicas, uma opinião diferente da minha – será positivo. O que nos falta neste momento são mais espaços e ocasiões para discutir com franqueza as divergências mais importantes e encontrar terrenos de acordo que permitam uma acção comum sem sacrificar a autonomia de cada componente do movimento.
Eu nunca disse ou vejo isto como uma conversa de café…
E não vejo mal nenhum que o pessoal de diferentes inserções profissionais venha à luta e cresça na luta… E concordo plenamente com o que dizes no último parágrafo: «Tudo o que procure reforçar esse processo – mesmo que tenha das questões organizativas, tácticas e estratégicas, uma opinião diferente da minha – será positivo. O que nos falta neste momento são mais espaços e ocasiões para discutir com franqueza as divergências mais importantes e encontrar terrenos de acordo que permitam uma acção comum sem sacrificar a autonomia de cada componente do movimento».
Portanto, não sei de onde vem essa da conversa de café…
Não era nenhum remoque João. Limitava-me a sustentar que isto não é um simpático diálogo entre posições diferentes, mas um processo amplo que inclui bastantes contradições, posições distintas, sujeitos e actores variados, etc.
Ok, foi um mal-entendido da minha parte. Sorry :-)
Quando eu falo em aproximação entre o pessoal que se organiza nos sindicatos e a malta dos movimentos (chamemos assim) não estou a partir da ideia da concertação, mas de, a partir da luta, o pessoal ultrapassar as direcções mais recuadas de vários sindicatos e ao mesmo tempo, tb a partir da luta real, o pessoal dos movimentos se considerar como trabalhadores e agir no sentido de radicalizar o processo e de colocar o capitalismo (tanto a burguesia como o estado burguês) como os alvos principais.
Right on João. É o meu programa. Somos todos trabalhadores. Até (sobretudo?) os desempregados e as pessoas em processo de formação.