Por João Valente Aguiar

Com a recente e actual crise económica na zona euro, o que antes era considerado uma mera excentricidade ou uma tendência larvar torna-se numa realidade substantiva e com um peso fortíssimo na definição das propostas políticas. Por isso, se as crises económicas têm o lado terrível de comprimir ainda mais as condições de vida e os salários dos trabalhadores, do ponto de vista político as crises também contribuem para esclarecer as linhas com que as várias correntes políticas se vão cosendo. Contudo, não encontro resposta para o porquê de alguns (poucos) activistas romperem com os empecilhos da ideologia dominante (nacionalismo, divisão entre economia “real” e “produtiva” VS economia financeira e “parasitária”, crítica dos governos e não do Estado, ausência de crítica das relações de produção, etc.) e o porquê de outros, ainda por cima em clara maioria, aprofundarem ainda mais os equívocos e ambiguidades que sempre têm caracterizado a esquerda. Por isso vou-me focar única e exclusivamente no aspecto político do que me parece ser uma das linhas mais perigosas e que se tem aprofundado nalguns meios da esquerda portuguesa (e não só): a tese de que o capital financeiro seria antagónico do capital industrial. Focando-me única e exclusivamente nas teses políticas – e relegando os emissores dos discursos políticos para um plano meramente ilustrativo, circunstancial e secundário – espero que um possível plano de discussão destas questões se cinja ao espaço que realmente importa: a discussão política.

Por isso, proponho-me debater o tema deste texto em dois pontos fundamentais. Em primeiro lugar, chamar a atenção para que a transformação da oposição entre economia “real”/”produtiva” e economia financeira/”parasitária”/especulativa em tese política é um tópico que teve no fascismo o seu principal defensor e difusor. E, em segundo lugar, procurarei mostrar como a diferenciação entre os sectores financeiro e industrial é meramente operacional visto que, na verdade, ambos constituem duas partes integrantes de uma totalidade económica (capitalista) e não dois sectores concorrentes e antagónicos. De facto, é impossível pensar a economia capitalista moderna desligada da complementaridade entre finança e indústria. O seu antagonismo só existe no plano ideológico, nunca no plano material das relações económicas.

I. A tese do antagonismo entre capital “produtivo” e capital financeiro como tema fundamental dos programas políticos fascistas

Apesar de este ser um tema indissociável do nacionalismo, o ponto de partida para a escrita deste texto veio de um trecho de um recente artigo de Daniel Oliveira (DO) de há uns dias atrás no Expresso online e no blog Arrastão. No final do seu artigo, o jornalista e membro do Bloco de Esquerda escreve o seguinte:

«Os empresários do sector produtivo têm de perceber que, neste momento específico, o capitalismo financeiro, que vive da especulação à custa da produção, é seu inimigo. E que, por isso, também são diferentes os seus aliados. Aceitarem manter-se reféns de quem nada produz é aceitarem o fim do seu próprio poder. Posso não me rever nas suas aspirações de sempre. Mas também posso aceitar que, vivendo momentos dramáticos, há interesses circunstanciais que nos são comuns. Mas para que isso seja possível é fundamental abandonarem a cultura rentista, que vive do tráfico de influências no Estado. Até porque, neste novo mundo, ela apenas beneficiará os novos senhores do dinheiro. E eles não são os barões da indústria. É a banca que, aos poucos, suga os recursos [e (sic)] toda a atividade produtiva das Nações. Entre a ética do capitalista tradicional e a ética do especulador apenas a legitimidade do lucro lhes é comum. Tudo o resto os afasta» (sublinhados meus).

A tese de que DO se socorre para tentar pensar uma vasta aliança social e política capaz de romper com o actual rumo de austeridade e de exploração passa por tentar agregar as várias forças sociais e «todos os que querem travar a destruição do Estado Social», incluindo o que ele chama de «empresários do sector produtivo». Em suma, apenas o «especulador», a «banca que suga os recursos [e] toda a atividade produtiva das Nações» não faria parte dessa vasta aliança social. Cito Daniel Oliveira apenas por três motivos: 1) pela oportunidade dada para discutir este assunto a partir da publicação de um artigo recente e com uma larga repercussão no cenário político português; 2) a ausência de qualquer crítica por parte da esquerda a essa tese politicamente perigosa, bem pelo contrário, a generalidade da esquerda não tem problemas em a subscrever; 3) o trecho diz de uma maneira muito clara e límpida o que muito boa gente realmente pensa sobre o assunto, gente que se autocoloca à esquerda de DO [1] e que, no fundo, apenas não tem a eloquência do autor para enunciar a defesa do capital “produtivo” contra o capital “parasitário”. E com isso arrastar a classe trabalhadora para o abismo.

Esta tese implica muito simplesmente regenerar a “nação” unindo todos os trabalhadores e empresários comerciais e industriais – todos os chamados “produtivos” – contra a cupidez da banca. No fundo, um capitalismo onde a harmonia social entre patrões “produtivos” e trabalhadores imperaria. Pior do que isso, uma harmonia pressuposta numa união ideológica entre elementos antagónicos na esfera económica, que se funda numa oposição falsa entre dois sectores da economia capitalista. Tentando simplificar, unem-se trabalhadores e capitalistas do sector não-financeiro contra a cupidez da banca. Este duplo processo de a) unificação de elementos antagónicos e de b) separação de componentes intimamente conectadas de um mesmo sistema ocorre unicamente no plano ideológico. Ao mesmo tempo, este duplo processo transfere a crítica da exploração capitalista para a crítica das atitudes da banca. Ou seja, esta seria corrupta, gananciosa e, ao estilo de um casino, jogaria aos dados com a vida das pessoas. Ora, o que deveria ser uma crítica no único plano em que não surgem ambiguidades na luta dos trabalhadores – a crítica da exploração capitalista – transforma-se numa crítica de comportamentos e de moral. A isto acrescenta-se o facto de que a crítica moralista feita à banca não se aplicaria inexplicavelmente à restante classe dominante. Da crítica da moral da banca à dos políticos ao seu serviço como corruptos é um salto e, em dois passos, está a defender-se a eleição de um governo de gente competente, honesta e que ponha freio nos “especuladores”. Pena que grande parte dos activistas e organizações de esquerda ligue ao acessório – licenciaturas de políticos, amizades e contactos destes na contratação de familiares, etc. – mas esqueça que a corrupção e o tráfico de influências não só não são o centro da produção das políticas económicas da burguesia como os países capitalistas mais desenvolvidos têm índices mais baixos de corrupção – portanto, os países onde as empresas mais extraem mais-valia a partir da exploração económica da força de trabalho. Portanto, o capitalismo subsiste e expande-se em países e regiões onde os índices de corrupção são baixíssimos e os trabalhadores não são menos explorados economicamente por isso. Bem pelo contrário. E assim a esquerda lá acaba por deixar a exploração ocorrer tranquilamente nos locais de trabalho desde que se cacem os capitalistas (e seus agentes) mais corruptos.

Mas, como afirmei no início desta secção, quem mais fartamente utilizou a tese de que existiria um antagonismo entre a comunidade nacional produtiva (de trabalhadores e de empresários) e a banca “parasitária” e especulativa foi o fascismo. O que me interessa (e me preocupa) é a facilidade com que não se reflecte sobre as implicações e os caminhos travessos que determinadas posições políticas acarretam. Mais preocupante ainda porque são: 1) formuladas de modo inconsciente [2] e sem se sustentarem na realidade concreta; 2) adoptadas acriticamente e sem qualquer tentativa de reflexão sobre a sua génese e difusão no passado; 3) transversais à maioria dos agrupamentos e activistas da esquerda que vagamente se pode classificar como antineoliberal. Assim, como forma de tentar ajudar a desconstruir no que se tornou esta espécie de “senso comum” da esquerda, apresentarei alguns exemplos de como a tese do antagonismo entre capital “produtivo” e capital financeiro constitui um marco fundador do fascismo. Comecemos pelo caso italiano.

Num discurso de Junho de 1928 o líder fascista Mussolini descreve a evolução do sistema económico de então, realçando o papel “produtivo” do empresário industrial. «Verificou-se uma separação entre capital e gestão, entre industrial e capitalista. […] Enquanto o capital [financeiro] se tornava anónimo, e o mesmo sucedia ao capitalista [portanto, aos grandes accionistas das empresas], o primeiro plano da economia era invadido pelo gestor de empresa, o capitão de indústria, o criador de riqueza» (citado em Bernardo 2003: 309 – sublinhado e notas em parêntesis rectos da minha autoria) [3]. Esta noção de que a criação de riqueza resultava da acção do empresário industrial já tinha sido enunciada no 2º Congresso do partido fascista em Maio de 1920: «não se deve, na minha opinião, afundar o barco da burguesia, mas entrar nele para expulsar a burguesia improdutiva» (citado em idem), a burguesia financeira.

No caso espanhol do falangista José Antonio Primo de Rivera o pretenso antagonismo entre sectores das classes dominantes era, como sempre, o risco para colocar os trabalhadores do lado de um deles – o “produtivo” – contra o outro e tornando a política para a classe trabalhadora numa caça ao plutocrata parasita e especulador. Preocupado como qualquer “bom” fascista em transformar a luta de classes numa luta dos “produtores” (e produtivos) da nação contra os “parasitas” e agiotas financeiros, José Antonio afirmaria o seguinte: «quando vejo como os patrões e os operários, em lutas encarniçadas, chegam até a matar-se pelas ruas, penso que nem uns nem outros sabem que são decerto protagonistas de uma luta económica, mas na qual, aproximadamente, ambos estão do mesmo lado. E quem se situa no lado contrário, contra os patrões e contra os operários, é o poder do capitalismo, a técnica do capitalismo financeiro» (citado em idem: 316). Desde que a exploração na fábrica, na oficina e na loja continuasse a ocorrer, os trabalhadores poderiam vociferar à vontade contra a ganância da banca e da finança.

Por seu turno, Hitler elaborou o programa económico do partido nazi em 1920 em conjunto com uma personagem hoje esquecida, Gottfried Feder, que, três anos antes, fundara um clube político com o nome sugestivo de Liga de Combate Alemã para a Destruição da Escravidão do Juro. No programa económico nazi encontrar-se-ia, por exemplo, um ponto (o 18º) onde se defendia a «aplicação da pena de morte aos usurários e aos especuladores» (idem: 261). Mais tarde, no livro Mein Kampf, o próprio Hitler defenderia a necessidade de se separar o capital “produtivo” do capital financeiro, algo que o tenebroso líder nazi reconhece ter “aprendido” após o contacto com Feder: «antes, eu havia sido incapaz de reconhecer de maneira suficientemente clara a diferença entre este puro capital, enquanto resultado final do trabalho produtivo, e um capital cuja existência e cuja essência decorrem unicamente da especulação» (idem: 262) [sublinhados meus].

Por cá, Salazar, numa obra publicada para o público francês a pedido da editora Flammarion, próxima da Action Française de Maurras, veria na preponderância do capital financeiro uma das causas para a desordem do período da I República: «na vertigem do dinheiro, dos preços e dos câmbios, o espírito de especulação e de risco suplantou a preocupação do negócio bem estudado e bem desenvolvido, a usura desenfreada substituiu a remuneração legítima e comedida do capital, muitos parasitismos substituíram os ganhos lícitos na criação das riquezas. Desordem: a desordem económica» (Salazar 2007: 25) [sublinhados meus]. Mais uma vez a «usura desenfreada», o «espírito de especulação» e os «parasitismos» financeiros como ilegítimos, sempre a favor da criação de uma comunidade nacional de junção dos trabalhadores e dos empresários “produtivos”. A comunhão de interesses entre a classe trabalhadora e os capitalistas produtivos e úteis implica a criação da figura ideológica do «plutocrata», adversário da nação e da comunidade nacional do trabalho (de patrões industriais e de operários bem-comportados e cooperantes). No final do livro o ditador fascista português traça a visão desejada para o país, uma visão onde o malévolo do dinheiro (e da finança) estaria finalmente ao serviço da benfazeja produção capitalista (o trabalho): «quando no País a economia for confiada aos que trabalham e se fizer claramente a distinção entre trabalho e especulação; quando, acerca dos interesses da produção, discutirem lado a lado os grandes e os pequenos produtores e a massa operária organizada puder fazer ouvir a sua voz, então, veremos que já não haverá lugar para o plutocrata nem para os seus negócios […]. A organização, nos seus diferentes aspectos, terá libertado o trabalho do despotismo do dinheiro e terá levado o dinheiro a servir modestamente o trabalho» (idem: 80) [sublinhados meus].

Poderia multiplicar as citações e os casos nacionais mas fico-me por aqui. A presença da tese do pretenso antagonismo entre capital industrial e capital financeiro no ideário fascista está mais do que comprovada. Substituir cada vez mais a luta contra o totalitarismo das empresas e da exploração pela ilusão de uma aliança com sectores das classes dominantes contra os “especuladores” e os “improdutivos” só resultará em novas tragédias. O que aqui me importa é que a generalidade da esquerda que se afirma antineoliberal ou anticapitalista reflicta seriamente sobre algumas das suas propostas políticas e dos perigos sinuosos que algumas delas comportam. Se o fascismo só tivesse origem à direita bem que podíamos andar descansados. Não é o caso.

II. A relação indissolúvel do capital financeiro com o capital industrial

A tese de que a finança e a produção estariam como que desligadas entre si e seriam promotoras de modelos alternativos de desenvolvimento está tão enraizada na esquerda que até economistas que se reivindicam do marxismo alinham por essa bitola. Por exemplo, o ex-eurodeputado do Partido Comunista Português, o economista Sérgio Ribeiro, afirmou num texto recente: «há duas vias de abordagem do capitalismo na sua fase actual. Uma, que decorre do funcionamento intrínseco ao capital como relação social de produção, com a exploração do trabalhador produtivo (cada vez mais colectivo) por apropriação da mais-valia a ser proporcionalmente menos possível, por crescente peso de K [capital constante] em relação a V [capital variável], e está-se no domínio da exploração» (Ribeiro 2012). A outra via de compreensão do capitalismo seria a conduzida pelo capital financeiro e especulativo. «Outra, que se instala por alargamento desmesurado do circuito monetário-creditício, desligado da base material, e está-se na “financeirização” e no domínio da especulação, para compensar a tendencial queda de MV [mais-valia], mantendo ou travando a queda do lucro e da sua taxa, isto é, proporção relativamente ao capital-dinheiro inicial» (idem) [sublinhados meus]. O que me espanta nisto tudo é como se cometem erros de palmatória no plano da lógica e como conseguem apresentar teses sem nunca as tentarem confrontar com qualquer tipo de material empírico. No plano da lógica, se de facto o «alargamento desmesurado monetário-creditício» estivesse «desligado da base material» [4] então como poderia a financeirização ajudar a contrariar a queda da taxa da mais-valia? Ou seja, se o capital financeiro fosse apenas capital fictício (que também é [5]) e «desligado» da produção, então como poderia esse domínio aparentemente fictício obstaculizar as contradições materiais? Como um capital aparentemente inexistente e, portanto, puramente simbólico e virtual poderia actuar e sobrepor-se tão fortemente sobre um real material perante o qual haveria supostamente um muro de separação e de incomunicação mútua (o tal «desligamento»), de acordo com noção acima citada? Há ou não um «desligamento»?

É óbvio que a resposta é não. Mesmo sabendo qualquer pessoa que existem produtos financeiros não baseados em qualquer activo “produtivo”, isso não significa que a esfera financeira exista de forma desligada do sector da produção de bens e serviços. No plano empírico não há qualquer divisão (e muito menos antagonismo) entre as empresas financeiras e as empresas não-financeiras. Evidentemente, existem actividades económicas diferentes, mas a interpenetração entre as duas componentes do circuito económico é tal que só no plano ideológico é possível vislumbrar uma oposição entre ambas.

Aliás, boa parte da inovação de produtos financeiros e da chamada financeirização teve um forte impulso dos grupos predominantemente industriais a partir da década de 80. De acordo com um relatório do Banco de Pagamentos Internacionais, os determinantes da oferta de inovações financeiras lembram que boa parte das grandes empresas industriais adoptou, como eixo da sua estratégia de grupo, «um programa de expansão agressivo num contexto nacional, quando não global. De resto, esse enfoque foi trazido (para a esfera financeira) pela alta administração das empresas não financeiras, à medida que elas se foram diversificando para a esfera financeira» (BPI 1986: 183). Recorro propositadamente a trabalhos dos anos 80 e 90 com o objectivo de demonstrar como desde a primeira fase de construção do neoliberalismo que os próprios grupos empresariais de base industrial foram tão importantes na financeirização da economia como os bancos e outras instituições financeiras.

Prosseguindo na breve genealogia deste processo, e focando agora o caso francês, «na década de 80 assistiu-se à constituição dos bancos de grupo, seja pela transformação de firmas financeiras em bancos, quando os grupos já tinham firmas especializadas, seja pelo método clássico em casos de urgência: as aquisições/fusões» (Ohana 1991). Segundo um outro autor que escreveu sobre a mesma temática: «a integração de um banco de grupo pode atender a dois objectivos. O primeiro é dotar o grupo de um instrumento para gerenciar o seu cash-flow, financiar a sua expansão e organizar o crédito aos clientes. O segundo é fazer dos serviços financeiros um eixo de diversificação do grupo industrial» (Batsch 1993: 81). A partir destas duas obras identificam-se facilmente algumas firmas francesas conhecidas do grande público que criaram instrumentos financeiros como os bancos de grupo: Saint-Gobain (Société Financière Miroirs), Thomson (BATIF e TCI), L’Oréal (Régéfi), Renault (Société Financière et Foncière), Suchard (Crédit Français Internationale).

Por seu turno, um outro economista lembra que «a importância das estruturas» dos grupos «ligadas às actividades financeiras puras coloca cada vez mais frequentemente os grupos industriais na “vanguarda” das inovações financeiras, por exemplo nos mercados de derivados. A Intel, produtora de microprocessadores, ganhou 183 milhões de dólares entre 1990 e 1994, graças a um novo produto criado pelo seu departamento financeiro. O grupo farmacêutico Merck, por seu lado, utiliza os conhecimentos adquiridos durante anos pelo seu departamento financeiro nas técnicas de modelação dos seus programas de pesquisa-desenvolvimento [I&D] (um bilião [um milhar de milhões] de dólares em 1993) para se lançar em complexos programas de derivados» (Serfati 1998: 152-153).

Recorro novamente a Claude Serfati para caracterizar muito sucintamente a tripla conexão entre o Estado, as empresas industriais e os mercados financeiros e mostrar como essa mesma conexão permitiu um financiamento muito mais amplo e facilitado a crédito por parte das empresas de base industrial no capitalismo toyotista. «É precisamente a partir de 1982 que começa o crescimento muito rápido das compras líquidas de activos financeiros [por grupos de base industrial], cuja composição vai-se tornando mais complexa à medida que as decisões dos sucessivos governos (Fabius, Chirac, Rocard) ampliam a gama de possibilidades oferecidas às empresas que são capazes de mobilizar capitais importantes» (idem: 155). A acção dos governos foi no sentido de seguir as prerrogativas dos principais grupos industriais franceses. «Entre as medidas mais importantes de liberalização dos mercados que interessam directamente às empresas, podemos citar a adoptada em Março de 1985, que permite que as empresas intervenham directamente no mercado monetário (que até então era reservado aos bancos e às instituições financeiras), emitindo notas de caixa que são títulos negociáveis a curto prazo (dez dias a sete anos). A partir de 1989, as empresas puderam emitir estas notas fora da França. […] Com esses títulos do mercado monetário (TMM), as empresas passaram a dispor não somente de um acesso ao crédito a taxas tão vantajosas quanto as que são oferecidas pelos bancos, como também de um meio de aplicação financeira de curto prazo para liquidez disponível» (idem: 155-156).

E se esta conexão entre capital financeiro, investimentos industriais e ampliação transnacional dos investimentos já estava presente nos anos 80 e 90, hoje a situação deslocou-se ainda mais nesse sentido. À medida que os investimentos industriais se expandem, crescem as necessidades de financiamento das empresas. Em paralelo, as próprias empresas industriais evoluíram no sentido de investirem nos mercados financeiros, sendo um actor económico de grande importância. Os investimentos dos grandes grupos transnacionais na capitalização bolsista são disso apenas um exemplo. Só neste ano de 2012, até ao dia 24 de Julho, a capitalização bolsista das dez empresas não-financeiras cifrou-se nos 2,795 biliões [trilhões] de dólares (retirado daqui). No dia em que recolhi a cifra as dez empresas com a maior capitalização bolsista no decorrer de 2012 eram a Apple [6], a Exxon Mobil, a Microsoft, a Wal-Mart, a PetroChina, a China Mobile, a Royal Dutch Shell, a IBM, a Chevron [7] e a General Electric [8]. Este conjunto de empresas teve 161,705 milhares de milhões de dólares de lucro (só a Microsoft e a Wal-Mart tiveram perdas) no último ano e a sua facturação cifrou-se nos 2,388 biliões [trilhões] de dólares. Tanto a sua facturação (volume de negócios nos respectivos ramos industriais de actividade) como a paralela capitalização bolsista ultrapassam, cada uma, o Produto Interno Bruto em 2011 de países como a Rússia, o Brasil, o Reino Unido, a França, a Itália, a Espanha ou o Canadá.

Não irei aqui desenvolver este tópico merecedor de muito maior atenção. Com efeito, não tenho a pretensão de ser exaustivo neste ponto, mas apenas de dar conta de alguns apontamentos e alguns dados sobre a relação íntima entre o que alguns convencionam chamar de “capital especulativo” e de “economia real”. Não abordei o papel dos grupos predominantemente financeiros sobre o espaço da produção por dois motivos essenciais. Primeiro, porque esse é um aspecto relativamente mais documentado e mais persistentemente analisado, mesmo quando no sentido de tentar descortinar uma delirante perversão da “finança” sobre a “produção”. Segundo, porque o movimento inverso permite descortinar as ligações existentes entre os dois sectores e, caso para outros estudos, permite igualmente apreender a expansão dos produtos e mecanismos financeiros a partir da pretérita transformação toyotista nas relações de trabalho e na correspondente amplificação transnacional da produção capitalista. O objectivo desta segunda secção do artigo foi o de simplesmente demonstrar a conexão do capital industrial com o capital financeiro e como ambos são indissociáveis no desenvolvimento do capitalismo, passo que me parece imprescindível para desmontar a tese fascizante [9] da oposição entre capital industrial/produtivo e capital financeiro/especulativo/”parasitário”. Se a História fosse uma questão de sentido crítico e de debate intelectual honesto em torno de factos e de processos económicos objectivos, as possibilidades de a esquerda rasgar as páginas do nacionalismo ainda seriam algumas. Como, infelizmente, a força da mera convicção ideológica é maior do que a da reflexão racional (mais ainda na esquerda que apostou vidas e esperanças em diversas modalidades de capitalismo de Estado), só as lutas sociais dos trabalhadores poderão ultrapassar os alçapões ideológicos que continuam a animar o trabalho político da generalidade da esquerda.

Notas

[1] Veja-se o caso do PCP que nesta questão não se diferencia em nada desta tese de um putativo antagonismo entre a banca e o sector produtivo: “Roubam o povo para dar aos especuladores e à banca” e “Se esta UE quisesse, acabava com esses especuladores”. Apesar deste partido defender uma aliança social entre as camadas antimonopolistas (trabalhadores e pequenos e médios empresários) contra os grandes grupos económicos e financeiros, a sua análise parte de dois pressupostos que não se diferenciam da tese de DO: por um lado, insiste recorrentemente num putativo antagonismo entre a “economia real” e a “banca especulativa”; por outro lado, os defensores dessa “economia real” colocam trabalhadores e pequenos capitalistas lado-a-lado contra os “improdutivos” especuladores. A explicação dos princípios nucleares de funcionamento do capitalismo passa do mecanismo da exploração para o nível da distribuição da riqueza: a crítica do capitalismo fica-se, assim, no facto de os trabalhadores auferirem baixos salários e no facto de os pequenos e médios empresários perderem quotas de mercado.

[2] Não estou interessado em classificar a adopção da esquerda de teses desta natureza, até porque provavelmente essa adopção decorre muito mais do grau de degradação teórica e política do que de um conjunto de actos voluntários. O que não é menos desculpável, apenas ajuda a perspectivar as causas políticas de tal processo de degradação, procurando evitar que se caia em cabalas conspirativas.

[3] Recolho propositadamente citações de líderes fascistas (Mussolini, Jose Antonio e Hitler) da obra Labirintos do fascismo do historiador João Bernardo, a ver se mais alguém se aventura a descobrir aquela que é, para mim, a mais importante obra sobre o fascismo. Quem a ler com espírito crítico, honestidade intelectual e sem preconceitos, chegará ao final da sua leitura com toda uma outra compreensão da produção da vida social e política. Haja algum arrojo e abertura mental.

[4] Num outro texto o autor que tenho vindo a acompanhar apresenta uma tese ainda mais desenvolvida e mais interessante de analisar (apesar de politicamente ainda mais nociva), pois relaciona mais abertamente o nacionalismo económico como caminho para combater o pretenso antagonismo/oposição entre os sectores produtivo e financeiro. Carpindo a transnacionalização capitalista, o “economista-chefe” da direcção do PCP diz o seguinte: «A livre circulação de capitais veio tudo facilitar. A criação de uma União Económica e Monetária, com a moeda única e o Banco Central único são episódios desta cavalgada de desmaterialização, não da economia mas das finanças, pois afasta cada vez mais o circuito monetário fictício e creditício do circuito da economia real, para cujo acompanhamento aquele teve origem e razão de ser. O que apenas é possível por demissão do controlo político nacional sobre os movimentos, não de livre mas de libertina circulação, enquanto as outras liberdades de circulação, sobretudo a de trabalhadores, se constrangem, quando conveniente, e não importa com que violência» (Ribeiro 2011). Não satisfeito, o autor ainda soma ao nacionalismo e à oposição capital financeiro/capital produtivo uma boa dose de estatismo: «os Estados, reflectindo a relação de forças sociais, desmascaram a sua função ao serviço do capital, fazem tábua rasa de salvaguardas de interesse nacional (como as golden shares), abdicam de soberania política».

[5] O capital financeiro consiste, grosso modo, na agregação de capital fictício (por exemplo, os mercados de derivados) e de capital portador de juros. Ora, o juro não representa um valor determinado aleatoriamente pela manipulação de especuladores, mas é parte do sobretrabalho subtraída ao conjunto do lucro proveniente da exploração da força de trabalho. Os manuais de uma certa cartilha ortodoxa costumavam chamar a atenção para o facto de que a mais-valia extraída da exploração dos trabalhadores se dividiria em lucro, juro e renda. Apesar do simplismo e da sua vinculação a um marxismo das forças produtivas (corrente hegemónica no capitalismo de Estado soviético), tinham a vantagem perante os seus herdeiros de ao menos lembrarem o óbvio: o juro como parte da mais-valia previamente produzida. Os que hoje se reclamam dessa corrente ortodoxa conseguiram degenerar ainda mais do ponto de vista político, ao afirmarem a equivalência do capital financeiro a uma das suas formas: o capital fictício.

[6] A empresa mais associada nos dias de hoje à inovação de produtos na área da imagem, som e aplicações informáticas para lazer é não só uma empresa com um volume de negócios na ordem dos 108 milhares de milhões [bilhões] de dólares, como é controlada em 69% por investidores institucionais e por fundos de investimentos (leia aqui). A sua capitalização bolsista no período acima mencionado ultrapassava os 560 milhares de milhões de dólares. A imbricação entre capital industrial e financeiro (portanto, entre investimentos na inovação e no fabrico de novos produtos e investimentos no mercado de acções) é por demais evidente nas empresas de base industrial.

[7] Para quem quiser ter uma noção do envolvimento da Chevron em actividades financeiras. Veja aqui.

[8] O conglomerado General Electric tem uma das suas mais importantes divisões na General Electric Capital. Esta divisão do grupo tem recursos próprios aplicados na ordem dos 550 milhares de milhões [bilhões] de dólares.

[9] Para terminar o cortejo de barbaridades e de enunciados políticos que sprintam para o fascismo fique-se com esta pérola de um economista que procura apresentar-se como um lídimo seguidor do marxismo e de princípios de cientificidade: «Sabe-se como o BCE promove e financia a especulação cujas custas recaem sobre os povos, financiando a banca a uma taxa de juro muito baixa (1%), não sendo impostos quaisquer condicionamentos à utilização desse dinheiro, para depois os bancos obterem lucros extra à custa de elevadas taxas de juro que cobram aos Estados, às famílias, às empresas. Sem regulação, em nome de uma hipotética eficiência, o grande capital financeiro criou um caos de corrupção e especulação. A economia, a vida política e social foi colocada ao sabor de gente egoísta, corrupta, fraudulenta que se disfarça com a mistificação de “os mercados”» (aqui). Se o leitor fizer um exercício de descolar as citações de líderes fascistas (secção I) e as citações de várias personalidades de esquerda dos respectivos autores e as baralhar, no final de contas dificilmente encontrará a origem autoral, tais as semelhanças. Enquanto a esquerda não perceber que certos discursos ideológicos são autênticas auto-estradas para práticas fascistas, continuará a reincidir nos mesmos erros trágicos do passado.

Bibliografia

BATSCH, Laurent (1993) – La croissance des groupes industriels. Paris: Economica
BERNARDO, João (2003) – Labirintos do fascismo. Porto: Afrontamento
OHANA, Karine (1991) – Les banques de groupes en France. Paris: PUF
SALAZAR, António de Oliveira (2007 [1937]) – Como se reergue um Estado. Lisboa: Esfera do Caos
SERFATI, Claude (1998) – O papel ativo dos grupos predominantemente industriais na financeirização da economia. In: CHESNAIS, François (org.) – A mundialização financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã Editora, p.141-181

16 COMENTÁRIOS

  1. Comentário já colocado no site do 5dias:

    “Não digo isto muitas vezes, mas este é um ensaio brilhante que toca no âmago da questão.

    A questão que preocupa Daniel de Oliveira e muitos outros na esquerda é a ideia de que o empreendedorismo é uma qualidade que só os “capitalistas” possuem, e sem a qual os “trabalhadores” pouco mais são do que autómatos, incapazes de fazer prosperar as empresas e a economia. Por isso é preciso preservá-los. O que é falso. É verdade que algumas pessoas têm esse espírito mais desenvolvido do que outras, e o capitalismo dá-lhes a possibilidade de rentabilizar, de forma extrema, essa qualidade. Mas uma economia construida sobre a empresa cooperativa não eliminaria o empreendedorismo. Apenas o colocaria ao serviço do colectivo – a empresa cooperativa e os cooperantes. Reprimir o espírito empreendedor é tão viável como reprimir o talento para a música ou para a pintura. O empreendedor é compulsivo no seu talento, e colocá-lo-á ao serviço da cooperativa de forma irreprimível. Por isso acho que a solução não pode ser a de procurar isolar os “bons” empresários produtivos dos “maus” empresários financeiros, mas de substituir a empresa capitalista pela empresa cooperativa, certos de que o espírito empreendedor se continuará a manifestar de forma positiva e benéfica para o colectivo, para a economia no seu todo, e para a comunidade.

    Quanto ao capitalismo financeiro e especulativo, a resposta é a de tornar a banca uma actividade sem fins lucrativos, em que todos os lucros são devolvidos aos clientes e depositantes.

    Não precisamos efectivamente de nenhum capitalismo de estado para resolver os problemas do capitalismo privado.”

  2. Acerca do primeiro ponto, a dualidade entre economia produtiva e especulativa é pelo menos tão velha quanto Aristóteles, quando este diferencia economia e crematística. A ideia de que existem actividades produtivas e parasitárias foi simplesmente usada pelos fascistas para manipular a opinião pública, não é uma tese fascista em si mesma, nem conduz necessariamente ao fascismo. O que o DO diz, é que nas circunstâncias actuais o capital industrial está refém do capital financeiro e é o seu próprio poder que está em risco. Não existe nenhum apelo aos trabalhadores para que se juntem aos capitalistas para defender a nação, é antes uma mensagem dirigida aos capitalistas tradicionais que se tornaram obsoletos.

    Ainda neste ponto, quando diz: “(…) os países capitalistas mais desenvolvidos têm índices mais baixos de corrupção – portanto, os países onde as empresas mais extraem mais-valia a partir da exploração económica da força de trabalho.”

    Significa que a exploração é maior nos países mais desenvolvidos? Porquê? No meu entender a exploração mede-se em termos relativos, e baixos índices de corrupção representam uma partição mais justa da riqueza, independentemente do valor absoluto da riqueza gerada.

    Acerca do segundo ponto, quanto à ligação entre capital industrial e financeiro. Primeiro é óbvio que não faz sentido distinguir entre empresas industriais e financeiras. Existem actividades industriais, actividades financeiras tradicionais que têm por base activos reais, e actividades financeiras recentes que têm por base activos fictícios e que só são possíveis porque os estados lhes conferem uma existência jurídica. É esta actividade de terceiro tipo que constitui um factor novo, que só foi possível a partir dos anos 80 com a liberalização total dos mercados de capitais, e que está na base da crise actual. Enquanto a capitalização das empresas em bolsa tem uma base real, a venda do risco sobre um produto que não existe, é qualquer coisa que nada tem a ver com todas as fases anteriores de desenvolvimento capitalista. O capitalismo financeiro tem um potencial de crescimento muito superior ao capitalismo industrial, e não depende do capitalismo industrial na medida em que não depende de determinado sector ou indústria. A financeirização da economia, criada pelos maiores grupos económicos da era do capitalismo industrial, constitui em si mesma um enorme risco para o próprio capitalismo. Nada que surpreenda portanto.

  3. Caro Nuno.

    obrigado pelo seu comentário. Não precisamos efectivamente de nenhum capitalismo de estado ou privado. Mas também não creio que o empreendedorismo seja solução… Aliás, o empreendedorismo é imanente ao capitalismo das últimas décadas. A não ser, claro, que se esteja a referir ao facto de o conjunto dos trabalhadores terem de ser dinâmicos, talentosos e criativos na construção de novas relações económicas. Como o capitalismo utiliza o empreendedorismo hoje em dia para melhor integrar os trabalhadores na produção e mais facilmente lhes subtrair as capacidades intelectuais, por vezes confunde-se esse empreendedorismo mainstream com algo que intrinsecamente não tem nenhum mal: os trabalhadores serem dinâmicos, talentosos e criativos. Todavia, no capitalismo tudo isso é apropriado para criar novas mercadorias e expandir os negócios em vez de estarem ao serviço de um desenvolvimento humano global.

  4. Rui Costa,

    só agora reparei no seu comentário.

    1) claro que a tese da oposição entre a usura e a riqueza material (ou entre usura/especulação e trabalho) é antiquíssima. Mas eu não vou meter no mesmo saco o Aristóteles, o Shyllock do Mercador de Veneza ou o Onzeneiro do Gil Vicente na mesma realidade histórica com que os fascistas o fizeram… A não ser que se ache que o significado da moeda na Antiguidade era o mesmo do capitalismo… Os fascistas além de defenderem o pretenso antagonismo entre capital industrial e financeiro defendiam a aliança entre trabalhadores e o capital industrial contra os especuladores. A citação do Daniel Oliveira é a esse título muito ilustrativa. Mas repare que o problema não é o Daniel Oliveira (que até me parece uma pessoa simpática e que até diz aquelas coisas sem pensar nelas – espero eu! – o que não as torna mais digeríveis ou correctas por esse motivo) mas a adopção de boa parte da esquerda portuguesa dessa tese do antagonismo e da tendência para procurar alianças entre os trabalhadores e sectores “não-parasitários” da burguesia… E os resultados dessa tese é nefasta porque quem a concretizou foi o fascismo…

    2- Sobre a maior exploração nos países desenvolvidos. A dinâmica do capitalismo entronca-se no incremento constante da produtividade. Portanto, mesmo tendo uma relação em que o capital constante cresce relativamente ao capital variável, o resultado final global de mais-valia produzida impede a queda tendencial da taxa de lucro. Isso implica que o aumento global de mais-valia extraída se expresse numa diminuição do valor incorporado em cada mercadoria. é isso que permite baixar os preços e a empresa com maior produtividade derrotar as concorrentes. Portanto, o aparente paradoxo entre o aumento global de valor vai sempre lado a lado com a implementação de economias de escala. Por conseguinte, quanto maior a produtividade maior a extracção de mais-valia… Nao sei onde está a dúvida. A exploração nao é um conceito moral mas uma realidade económica de produção e transferência de excedente.

  5. Tenho a suspeita que a ‘proletarização’ do capital financeiro e dos seus gestores é a base do problema.
    Qualquer fundo de pensões não tem accionistas de referência, é capital proletário entregue a proletários – os gestores do fundo.
    Os bancos vão pelo mesmo caminho; o banqueiro como referência de capitalista maior está quase desaparecido, e são os proletários gestores que ‘cavam’ por todos os meios os seus prémios de desempenho e as suas reformas douradas.
    O político aristocrático, o terratenente dedicado à coisa pública, o pensador inspirado e inspirador, são história passada. O proletário da função público-partidária manipula os capitais do Estado em benefício da construção do seu poder pessoal e o dos seus comparsas.
    A desregulação não é mais do que a concordância na acção destes arrivistas a um sistema que não respeitam, e cuja génese e lógica operativa não compreendem no essencial.

  6. ” a) como explicaria que a Apple (empresa por excelência relacionada com a produção e inovação de bens) capta mais capital-dinheiro no mercado financeiro do que no seu ramo normal de actividade?”

    Começaria por explicar que o capital captado pela Apple através das acções é uma pequena parte do actual valor bolsista da Apple. Uma acção da Apple em 1984 valia em bolsa menos de 3 $US, agora vale mais de 600 $US. Ou bem que é especulação ou bem que é valor criado na empresa e apropriado pelo capital financeiro, ou mais provavelmente uma mistura das duas coisas.
    Por outro lado, como é do conhecimento geral, a Apple não se financia nos mercados, ao contrário tem excedentes de caixa, actualmente à volta de 100 mil milhões de $US. Provavelmente este valor é superior ao que a Apple recebeu da venda de TODAS as suas acções.

    Com esta qualidade de “inputs” o artigo do JVA arrisca-se a ser mais um caso de “garbage in, garbage out”.

  7. Nem que eu tivesse errado nesse detalhe (o que não me parece nada crível pois, para utilizar a sua expressão, é do conhecimento geral que o mercado de acções remunera os activos das empresas ali cotadas sendo essa uma forma de captação de investimentos e de capital-dinheiro… não sei onde está a dúvida) em nada isso obstaculiza a tese de que os grupos industriais actuam nos mercados financeiros e que não existe qualquer antagonismo entre capital industrial e financeiro…

  8. E outra coisa. A Apple captou 500 e tal mil milhões de dólares no mercado de acções neste ano de 2012 e teve um volume de negócios de 100 e tal milhões de dólares. Não sei onde está a dúvida… Podemos discutir as diferentes natureza e proveniência do capital-dinheiro de cada um dos sectores mas o que você não consegue negar é o facto de que a Apple – como qualquer grande grupo predominantemente industrial actua nos próprios mercados financeiros, mais propriamente no mercado de acções…

  9. “A Apple captou 500 e tal mil milhões de dólares no mercado de acções neste ano de 2012”

    Ou estamos a falar de coisas diferentes ou um de nós está um bocado confuso. Os “500 e tal mil milhões de dólares” é, mais ou menos, o valor bolsista actual da Apple, das suas cerca de 900 000 acções (com um valor actual à volta dos 620 US$ por acção) emitidas ao longo de muitos anos, e não em 2012.

    Acresce que, como já chamei a atenção em comentário anterior, o dinheiro captado pela Apple na venda das tais 900 000 acções foi muito inferior aos tais 500 e tal mil milhões. Como também referi antes, grande parte desse valor foi criado na empresa, e não captado no mercado.

    Quem captou muitos milhares de milhões à Apple foram os accionistas que, por exemplo, em 1984 compraram acções a menos de 3 $US e hoje as podem vender (ou vendem mesmo) em bolsa a mais de 600 US$. Aliás é para isso que as empresas servem, não é verdade?

    E sabe, o diabo está nos “detalhes”. E do que estamos aqui a falar até é muito mais do que simples “detalhes”.

  10. Dedé, você continua a bater no ceguinho… Repare no seguinte aqui: http://finance.yahoo.com/q/mh?s=AAPL%2C+&ql=1 Só o JP Morgan tem mais de 13 milhões de acções da Apple e você vem falar em 900 mil de toda a Apple??? E o JP Morgan nem sequer é o maior accionista (tem 1,40%).

    Mas repare noutra coisa. O que você diz (que a Apple teria “facturado” mais na produção industrial do que nos mercados financeiros) em nada contradiz o meu texto: o capital financeiro articula-se com o capital industrial, não se antagonizam… Veja os exemplos de outros grupos como a GM ou a General Electric que operam nos mercados financeiros ou o exemplo francês em que as maiores empresas industriais constituíram bancos de grupo.

    E já que entramos em detalhes, é espantoso como a esquerda que se reivindica do marxismo e acha que o problema do capitalismo de hoje é a “hipertrofia da finança”, esqueça que o que decide o dinamismo e o rumo de todo o sistema económico são os níveis de produtividade – portanto, a produção… E que em vez de quererem olhar para as relações de exploração prefiram olhar para os “agiotas” malévolos, transferindo assim a luta contra um modo de produção, para o âmbito de uma luta pela sua moralização… De facto, estamos aqui a falar muito mais do que simples detalhes.

  11. João,

    “…é espantoso como a esquerda que se reivindica do marxismo e acha que o problema do capitalismo de hoje é a “hipertrofia da finança”, esqueça que o que decide o dinamismo e o rumo de todo o sistema económico são os níveis de produtividade – portanto, a produção… E que em vez de quererem olhar para as relações de exploração prefiram olhar para os “agiotas” malévolos, transferindo assim a luta contra um modo de produção, para o âmbito de uma luta pela sua moralização…”

    É por isso que essa esquerda se satisfez – e continua a satisfazer-se – com um capitalismo de estado. Não interessa produzir mais ou produzir melhor, ou satisfazer as necessidades reais das pessoas. O que interessa é de facto “moralizar” os processos produtivos, mesmo que isso se faça à custa da penúria geral. Por isso é que, com todo o respeito por quem não pensa como eu, nem os quero ver ao pé de mim na luta contra este capitalismo explorador. Enquanto eles correm desalmadamente para o século XIX, eu quero correr para o século XXII (esperando conseguir lá chegar ainda no século XXi…)!

  12. Uma pena que as discussões deste texto estejam restritas ao público português.
    No Brasil é exatamente esta pseudo-oposição entre os dois tipos de capitais que dá sustentação ideológica para boa parte da esquerda e dos movimentos sociais jogarem-se de braços abertos nas eleições, pela disputa de um governo “de composição de classes”.
    O discurso é do se aliar ao bloco que tenha frações de classe do capitalismo industrial, a tal burguesia nacional, contra o capital especulativo e neoliberal privatizante. Faz-se a aliança de classe e fecham-se os olhos não apenas para o real movimento da economia (e a não oposição entre os dois capitais, bem como a não desindustrialização do país), mas também para as ações políticas dos governos ditos “de esquerda ou centro-esquerda” (como se tivessem, de fato, políticas distintas, ou que a volta dos “partidos neoliberais” pudesse efetivamente significar uma mudança no atual rumo das políticas nacionais).

  13. Tem toda a razão Alex quando você fala que há uma necessidade de se discutir estes temas num âmbito cada vez mais transnacional.

    Por outro lado, encontrei aí há dias algo que ajuda a desmontar as teses delirantes do antagonismo entre o pretenso “capitalismo financeiro” e o “capital industrial” que certos esquerdistas continuam a defender. Então não é que grandes colossos industriais como a Apple ou a Microsoft recorrem a paraísos fiscais – modalidades financeiras e ditas “especulativas”… Certa esquerda prefere analisar o mundo como ele supostamente deveria ser e não como ele é. Sem se ter uma noção racional e sistemática sobre como o capitalismo realmente se organiza não há transformação possível da sociedade. Mas esse é o meu lado ingénuo a falar. A bom rigor, o objectivo dessa esquerda se calhar até é esse: não conhecer nada para nada transformar.

    http://www.lemonde.fr/economie/article/2012/08/02/paradis-fiscaux-le-tresor-des-geants-americains-des-technologies_1741871_3234.html

  14. Ainda um dia há-de aparecer alguém que escreva um livro sobre a função da distracção nos confrontos políticos. Isto a propósito da ligeireza com que certas advertências são consideradas. Franz Neumann, que no seu Behemoth foi um dos mais argutos analistas do nacional-socialismo germânico, observou nessa obra: «Sempre que os protestos contra a hegemonia do capital bancário permeiam os movimentos populares, temos o indício mais claro da aproximação do fascismo». Mas esses sabiam do que falavam e não se podiam dar ao luxo de virar a cara para o outro lado.

  15. Na verdade não tenho comentários a fazer, preciso de uma ajuda para um trabalho. Já fiz inúmeras pesquisas e não conseguir encontrar o Processo de Transnacionalização da APPLE e sua articulação política com: Fóruns empresariais, governos e organizações internacionais.
    Poderia me ajudar?

    Grata,

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