Evitar o isolamento, combatendo as tendências que procuram fazer do movimento social o suporte de uma solução de governo à esquerda, é o principal desafio. Por Sebastião Tibão


1. O enigma português

O observador minimamente atento que se debruce sobre um mapa europeu dos conflitos e convulsões sociais no início do século XXI ficará certamente surpreendido ao constatar que uma irredutível aldeia na periferia do império tem resistido a integrar a grande vaga contestatária em curso. Como se tivessem tomado uma poção mágica que os convida a manifestar-se pacificamente e com todo o civismo, os seus habitantes têm sofrido resignadamente as dores do ajustamento e das exigências que lhes são ditadas pelos «mercados». As causas de tão singular tranquilidade social − num país onde tudo é crise, desemprego, pobreza e despudorada exploração − parecem desafiar todas as razões. Sabemos de fonte segura que isso não se deve aos elevados salários auferidos ou aos numerosos direitos existentes em Portugal.

Ao ver deflagrar os incêndios na Grécia, a maioria dos observadores virou em seguida o olhar para o país que – na mesma latitude e da mesma dimensão, partilhando indicadores sociais semelhantes – com alguma naturalidade se deveria seguir. E, porém, tudo permaneceu tranquilo na frente ocidental, onde os governos não se cansam de cuspir na cara dos governados. Não falta quem fale da «natureza predominantemente pacífica dos portugueses», algo que as principais estatísticas relativas à violência doméstica (leia-se, a dos homens adultos sobre mulheres e crianças) e aos incidentes entre vizinhos nas zonas rurais ou suburbanas (que terminam frequentemente a tiro e à facada), bem como a simples observação quotidiana, desmentem categoricamente. Como explicar então que, numa sociedade tão violenta e desigual, os protestos e manifestações sejam tão insistentemente ordeiros?

2. Velhos e novos problemas

Importa ter em conta o peso das práticas informais da economia subterrânea, das redes familiares de apoio e da predisposição para emigrar, muito enraizada em certas zonas do país. Importa sublinhar também o facto – provavelmente decisivo – de estarmos a falar de pessoas maioritariamente jovens, que não podem reivindicar para si a experiência de participação num movimento social vitorioso, que os familiarize com os ensinamentos, a disposição e a convicção necessárias a um combate desta dimensão. O movimento estudantil, um caldo de cultura onde se poderia desenvolver e alargar o saudável hábito da revolta e da contestação, não tem acumulado senão derrotas, impasses e hesitações, mesmo quando chamado a enfrentar adversários inábeis e ofensivas pouco graciosas. Nas escolas secundárias como nas universidades, tem-se aprendido sobretudo a rotina da obediência e o hábito de se esgueirar por entre as gotas da chuva.

Por outro lado, os esforços de organização e mobilização da «rua» têm acusado o peso da tradição política indígena, em que nada costuma acontecer sem que um estado-maior partidário tenha tido oportunidade de se pronunciar sobre o assunto. É notório que grande parte dos movimentos que giram em torno da precariedade e do desemprego raramente concebe a possibilidade de serem os precários e os desempregados os protagonistas e sujeitos da sua emancipação, apresentando-os quase sempre como vítimas passivas que se trataria de defender ou proteger, uma «geração» cujas «qualificações» exigiriam um capitalismo mais sofisticado e empresários mais modernos, já para não falar de uma «outra» política, alternativa bem se vê, à que nos tem sido presenteada. É sobretudo ao seu estatuto de eleitor e cidadão, mais do que à sua condição de proletário, que se pisca o olho. A compartimentação das lutas também contribui para esse desconsolo, estreitando o campo das solidariedades e contaminações possíveis. Falta, nesta costa ocidental da Europa, um imaginário do conflito social capaz de interpelar a multidão que quotidianamente se afadiga entre trabalhos a prazo e desempregos penosos. É o enorme peso dessa inércia que o movimento se vê forçado a superar.

É certo que houve um processo revolucionário em 1974-75, mas o facto de se lhe ter seguido uma contra-revolução de veludo – que culminou na reconstrução do aparelho de Estado, no uso capitalista da crise contra o movimento operário e na integração europeia, que pacificou definitivamente o país – torna-o simultaneamente demasiado próximo e demasiado longínquo. Por outro lado, é difícil não sentir que os campos políticos e sociais são aqui menos extremados do que nos países que atravessaram guerras civis no século XX: Espanha, Grécia e, com as diferenças que os leitores seguramente conhecerão, Itália.

Existe, por outro lado, o dado fundamental de a escolarização de massas ter coincidido temporalmente, em Portugal, com a difusão do audiovisual, o que amplifica enormemente o poder da televisão relativamente à escrita. Desde que a austeridade se tornou a palavra mágica da vida pública em Portugal, fomos confrontados com protestos de dimensões tão variáveis – das escassas centenas numa manifestação de desempregados, às centenas de milhares na manifestação da «geração à rasca», a 12 de Março de 2011 – que se torna difícil contornar a sensação de que a televisão faz e desfaz manifestações, apresentando-as, ora como um facto incontornável de gigantescas consequências políticas, ora como mais uma data num vasto e inócuo calendário de protestos quase rotineiros. Ao peso da inércia é preciso juntar o poder do senso comum – tal como ele é construído pelos noticiários televisivos – para compreender como certas formas de conceber o conflito social e o combate político surgem carregadas de exotismo e excentricidade no seio do movimento, deparando com enormes dificuldades para se tornarem compreensíveis e ombrearem com o dispositivo político montado pela esquerda e pelo aparelho sindical.

A ausência de uma retaguarda sólida – de espaços de agregação e sociabilidade, de meios logísticos mínimos, de um apoio legal efectivo, de uma rede de solidariedade mais consistente e de instrumentos comunicativos mais eficazes – torna ainda mais visíveis as dificuldades, banalizando o controlo das manifestações pelas organizações partidárias e privando o movimento da consistência e densidade que só podem tomar forma numa escala quotidiana. Os poucos esforços desencadeados para contrariar esta situação expõem-se rapidamente à atenção do aparelho repressivo do Estado e partem de um isolamento que torna mais fácil a sua criminalização. É aí que o círculo se fecha: as manifestações são tuteladas no sentido de garantir que permaneçam ordeiras e pacatas, para poderem suportar a «convergência à esquerda» e atrelar a rua às instituições; e como tudo o que ali se joga é vir a ser melhor governado, não são minimamente apelativas para quem deseja tomar as suas vidas nas suas mãos, para quem se fartou de assistir ao jogo e decidiu começar a jogar.

3. Eppur si muove

O leitor que aqui chegue ficará porventura com a impressão de que tudo em Portugal é derrotismo e que os que aqui combatem o capitalismo e o Estado mandaram a toalha ao chão. Este texto procurou acima de tudo dar a conhecer alguns dos principais problemas que enfrentamos e que fomos capazes de identificar nas nossas discussões e reflexões colectivas, no sentido de explicar o que diferencia este rectângulo de outras regiões europeias. Importa em todo o caso precisar que desde Março de 2011 que se sente e respira uma situação diferente. Continuando de pé todos os problemas, impasses e dificuldades acima referidas, algo está a mudar e a velocidade dessa mudança é difícil de prever ou antecipar. Desde logo, a combinação entre a austeridade imposta pela União Europeia e pelo Fundo Monetário Internacional e a inépcia e arrogância da coligação governamental que a aplica – apostada, segundo o primeiro-ministro, em ir «para lá da Troika» em matéria de privatizações, liberalização dos despedimentos e contracção salarial – ampliou significativamente o eco das propostas e palavras de ordem mais radicais, trouxe para a rua uma massa de gente que não costumava participar em manifestações, dificultou significativamente a vida à burocracia sindical e de esquerda: em suma, ampliou o campo do possível.

Os sinais de que algo estava a mudar haviam já sido identificados. Mesmo se foi significativamente mais pequena do que a que aconteceu no Estado Espanhol e na Grécia, a acampada do Rossio (Lisboa) representou uma experiência de comunicação, cooperação e organização de vários grupos e indivíduos que se conheciam pouco e mal, tendo dado início a algumas dinâmicas interessantes em termos de mobilização. A manifestação internacional de 15 de Outubro de 2011 representou uma primeira demonstração da capacidade de organizações, colectivos e grupos informais em organizar o protesto fora das tutelas partidárias e sindicais. E nas greves gerais de 24 de Novembro de 2011 e de 22 de Março de 2012, as paralisações – mesmo se incapazes de bloquear o conjunto da economia – foram assinaladas por manifestações de rua mais combativas do que o habitual, que culminaram em confrontos com a polícia em diversos pontos do centro de Lisboa e no Porto. Finalmente, as experiências de ocupação desenvolvidas no bairro da Fontinha (Porto) e em S. Lázaro (Lisboa) demonstraram – sobretudo a primeira – ser possível furar o cerco imposto pela polícia e, apesar do seu desalojamento, foram capazes de evitar a marginalização e de congregar amplos movimentos de solidariedade, bem expressos na enorme manifestação que reocupou simbolicamente o edifício do ES.CO.LA a 25 de Abril e na manifestação de resposta ao desalojamento de S. Lázaro, convocada no próprio dia e que reuniu centenas de pessoas.

Quando o governo anunciou medidas mais gravosas contra os salários e pensões de reforma, a 7 de Setembro, não foi difícil prever uma resposta dura da parte da rua. Mas ninguém estaria em condições de antecipar a dimensão das manifestações que atravessaram o país inteiro a 15 de Setembro, inicialmente convocada por um grupo informal de pessoas genericamente de esquerda e que rapidamente se transformou numa gigantesca e espontânea mobilização de massas que abalou os alicerces da governação. Durante várias horas o parlamento – que não estava incluído no percurso «oficial» da manifestação – foi cercado por milhares de pessoas e a polícia deparou com algumas centenas de cara tapada, de meios e proveniências diferentes, que lhe lançaram para cima pedras, garrafas e petardos, sem que algum manifestante se preocupasse em condená-los ou demarcar-se dos «violentos». Bastou um fim de tarde e princípio de noite para fazer desvanecer a imagem de país pacificado e «bom aluno da troika» em que o governo e os seus apoiantes se haviam laboriosamente empenhado desde há um ano. E tudo isso sem que tivesse havido um plano ou uma decisão prévia nesse sentido por quem quer que fosse.

A frequência com que surgem notícias nos jornais, antes e depois das manifestações, relativamente aos «grupos violentos», aos «radicais com ligações no estrangeiro» ou aos «anarquistas perigosos» demonstra que a polícia identificou nas posições e práticas libertárias e antiautoritárias um alvo a abater. A polícia portuguesa destaca-se aliás pelas suas tácticas intimidatórias preventivas, não hesitando em proferir ameaças (como o aviso de que as manifestações de 25 de Abril e do 1º de Maio seriam alvo de «tolerância zero»), em espancar todas as pessoas que encontra na rua (incluindo idosos ou jornalistas, como aconteceu na greve de 22 de Março, em Lisboa) ou em cercá-las e sequestrá-las durante horas com o pretexto de as identificar (como aconteceu na manifestação contra o desalojamento de S. Lázaro). Há pouco mais de um ano, uma manifestação libertária em Setúbal, no 1º de Maio, foi reprimida com balas de borracha, bastonadas e mace, tendo sido disparadas para o ar munições reais. Tornou-se banal e amplamente conhecido, mesmo para quem não leu Agamben, o facto de o Estado violar por todos os meios as suas próprias leis e proceder como se estivesse em curso uma guerra civil de baixa intensidade.

Neste momento, em que a revolta se difunde a uma escala sem precedentes, tornou-se absolutamente imperioso contornar a manobra repressiva que procura explicar cada incidente, cada confronto, cada transgressão e acto de resistência como partes de uma grande conspiração anarquista. Evitar o isolamento, combatendo politicamente as tendências que procuram fazer do movimento social o suporte de uma solução de governo à esquerda, é o principal desafio para quem pretende abrir e ampliar a frente ocidental. Acentuar a dimensão internacional da luta contra a austeridade e difundir o amplo conjunto de ideias, experiências e práticas de auto-organização e de acção directa, são o programa mínimo para esse efeito. Grécia em todo o lado é a palavra de ordem. Jogar sem fronteiras, a maior ambição.

Esta é a versão original de um artigo publicado ontem aqui.

2 COMENTÁRIOS

  1. “Como explicar então que, numa sociedade tão violenta e desigual, os protestos e manifestações sejam tão insistentemente ordeiros?” É…hoje existem movimentos de todas as espécies e no entanto, fragmentados,pois como disse esperam que o grande estado pronuncie sobre o assunto, dê alguma solução. Esse é um dos aspectos citados no texto e que aliás gostei muito. Mas algo me leva a pensar que a resposta a essa pergunta seria uma tal arma:comodidade (lógico entre outras mas me atento a ela no momento).Esta que constrói o medo de morrer,o medo de apanhar, e talvez até o medo da mudança, mesmo que a persevere…as formas de controlo são e foram muito concretas, e sendo assim os movimentos procuram encontrar as lacunas para se articularem, e quase sempre, calados. Repressão, morte, prisões, torturas.. Agora as políticas esquerdistas ainda oferecem uma mão vazia ou esconde não sei. O caso ocidental acredito que toma rumos diferentes pelo fato de se estar vivendo uma crise muito visível e incomoda, isso tira o comodismo de muitos que não queriam morrer, nem apanhar, nem mudar a situação, pois tinham emprego e estabilidade financeira que os mantinham mais tranquilos(falo da massa)…agora, a classe que em constante crise desde que nasceram…que se indignam, que apanham, que necessitam mudança, essas que possibilitam agregar movimentos,mas contudo, estão saturadas de tanto trabalho que a cabeça chega em casa exausta. Estão eles vendo os noticiários televisivos, se indignando e sentindo medo, do mesmo modo. Enfim, não respondo a pergunta, mas talvez veremos alguma resposta, tomara. Os movimentos precisam se articular e unirem forças e o que acontece é ao contrário, feministas separam de machistas, miseráveis não costumam ter apoio de classes pouco ou mais altas (eles tem medo que lhes roubem ou comprometam seu conforto) negros separam de brancos blá e etc. É…como diz o texto, um passo de cada vez, e que bom que muitos estão decidindo jogar, que movimentos estão discutindo-se cotidianamente…Todo apoio. Muito bom ver o povo todo na rua, espero ver isso aqui em breve..Em parte, “Tudo calmo na frente latina”

  2. Depoimento de um digno representante (autonomeado) da “Geração à Rasca” (ainda que avesso a manifestações – ou talvez por isso mesmo)

    “Por ter, de facto, uma opinião, aqui a deixo. Concordo que muitos não terão estado presentes nesta manifestação pelos motivos certos, e muitos que até teriam motivos válidos para lá estarem, mantiveram-se à margem. É o meu caso. Nunca fui apoiante de manifestações – raramente surtem qualquer tipo de efeito real – e procuro encontrar as soluções que possam ser melhores para mim.
    Para quem não é da “geração à rasca”, ou para quem ainda não trabalha, há alguns pontos a que gostaria de dar ênfase para justificar o desânimo e a desmotivação com que por vezes somos obrigados a viver.
    1 – A maioria dos nossos pais, tendo ou não estudado, tiveram trabalho desde cedo. Puderam ter contratos, ficar nos quadros de empresas, e receber subsídios de férias e de Natal. Quantos de nós, jovens, temos essas “regalias”? Contam-se pelos dedos os amigos que tenho nessas condições. Muitos, licenciados, ou com graus académicos superiores, estão no desemprego ou a trabalhar em caixas de supermercado. Sem desprestígio para quem tem este tipo de trabalho, mas não foi para isso que estudaram anos (alguns deles a pagarem do próprio bolso, ou com recurso a bolsas de estudo). Para além disso, quando os mais velhos eram despedidos (salvo casos de justa causa), recebiam indemnizações. E a nós o que acontece? Vamos de férias numa semana e no último dia de férias ligam-nos a comunicar que não somos mais necessários. E pronto. Feito.
    2 – Vamos para o desemprego, e ficamos na “m”. Não há subsídios para os famosos recibos verdes.
    3 – Podemos até ganhar 1000 euros por mês. Porém, 21,5% fica retido na fonte (IRS) e 29,6% vai directamente para a Segurança Social. Para quê? Não faço ideia. Não temos real benefício com esta entidade, e eles próprios são os primeiros a duvidar que a reforma chegue para nós. Resumindo, andamos a tirar uma fatia razoável dos nossos ordenados, por vezes miseráveis, para pagar as reformas dos mais velhos. E quem o fará por nós?
    4 – Os nossos pais puderam comprar casa, ter empréstimos para habitação. Por vezes o empréstimo até dava para cobrir obras na casa. E nós? Dizem que não casamos, ou casamos tarde, e temos filhos mais tarde ainda. É verdade. Mas a culpa não é nossa. É deste sistema que nos obriga a arrendar casa e pagar por ela por vezes mais de metade do nosso vencimento, só para estarmos com o nosso companheiro, porque comprar casa não está ao nosso alcance. Ou temos pais ricos que o financiam (deverá ser uma minoria), ou ficamos em casa dos pais, ou nos juntamos e fazemos o sacrifício financeiro de pagar uma renda por uma casa que nunca será nossa, enquanto simultaneamente tentamos juntar para uma Poupança Habitação, grão a grão. A realidade é que, ou no futuro temos fiadores, ou nenhum banco empresta dinheiro a pessoas como nós, a recibos verdes. E o que empresta, em tempos de crise, implica que tenhamos que ter uma entrada brutal, ou ficaremos a pagar juros que dão para pagar 2 ou 3 casas.

    Na realidade teria muitos mais pontos para enumerar, mas o que queria realmente mostrar é que concordo em parte com este artigo, mas há muita gente realmente “à rasca”. Julgo que a única forma de o ultrapassarmos é através de um espírito mais empreendedor, porque há ainda muitos projectos por desenvolver em várias áreas. E felizmente, ainda há quem aposte nos mais jovens!”

    Fonte: http://barbaporfazerblog.blogspot.com/2011/04/geracao-que.html?showComment=1302821270943#c8630015324152182056

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