Reflexões, perspectivas e calendários no Terceiro Seminário Internacional de Análise e Reflexão ”…planeta terra: movimentos antissistêmicos…”, em Chiapas, México. Por Leonardo Cordeiro, Luiza Mandetta e Frederico Ravioli
“Feliz 2013, CHUPA MAIAS !”
Em tempos de virada de ano e mudança de calendário, nos deparamos com a frase acima numa rede social. O fim do 12º Baktun maia, previsto para o dia 21 de dezembro, foi alardeado durante todo o ano pela mídia internacional como a profecia de que o mundo acabaria. Estamos justamente em território maia, e poucos dias antes de nossa chegada os descendentes desses povos mostraram que se algum mundo está acabando, não é o deles. O dia 21 amanheceu com mais de 40 mil bases de apoio zapatistas caminhando, caladas e com seus rostos encobertos, pelas ruas de cinco cidades do estado de Chiapas, no México. Se as indústrias da cultura e do turismo, irremediavelmente presas ao sistema, ao passado, vendiam em alvoroço a ideia da destruição de seu mundo, os zapatistas, calados, olhavam para o futuro e anunciavam a mudança, o surgimento de um outro.
Foi um pouco dessa reflexão que permeou o Terceiro Seminário Internacional de Análise e Reflexão ”…planeta terra: movimentos antissistêmicos…”. O encontro aconteceu exatamente na virada do ano, entre os dias 30 de dezembro e 2 de janeiro, no CIDECI-Uniterra (Centro Indígena de Capacitação Integral Fray Bartolomé de Las Casas e Universidade da Terra). O evento está no seu terceiro ano consecutivo, e reúne tanto renomados intelectuais mexicanos e de outros países quanto integrantes de movimentos sociais e de comunidades indígenas de toda a América. No auditório, havia gente do mundo inteiro: do movimento piqueteiro argentino, dos Panteras Negras, de movimentos barriais latinos dos Estados Unidos, de universidades europeias e americanas, da Via Campesina, de movimentos urbanos mexicanos e de comunidades indígenas de todo o continente – como representantes de Chéran, Acteal, comunidades mapuches e Qom, na Argentina. Depois de cada exposição, se ouvia um resumo em tzoltzil e tzeltal, esforço de síntese e reflexão com que os tradutores tornavam a discussão acessível às mulheres e homens vindos de diferentes pueblos e caracóis zapatistas.
Junto com as mobilizações desse fim de ano, o seminário se insere nos marcos de diversos calendários, novos e antigos. Era, como lembrou Xóchitl Leyva na sessão de abertura, o fim do sexênio presidencial e o retorno, ao poder federal, do PRI, partido que governou o México por 72 anos apoiado no clientelismo. Era o aniversário do massacre de Acteal, no qual a polícia estadual abriu fogo contra um grupo de indígenas, com maioria de mulheres e crianças, que rezavam dentro de uma capela. Completavam-se 44 anos desde o surgimento das Forças de Liberação Nacional, que dariam origem ao zapatismo; 29 anos desde a fundação do EZLN, e 19 desde o levante nas primeiras horas de 1994. A antropóloga trouxe, por fim, a memória das revoltas indígenas no período colonial.
Por sobre todas essas datas chegava ao fim o 12º Baktun, e Xóchitl destacou a disputa politica e econômica ao redor de seu significado. Segundo ela, toda uma indústria, situada no interior da maquinaria capitalista e estatal, esforçou-se para fazer dele uma mercadoria dentro do pastiche multicultural do mundo globalizado. As lutas dos povos maias foram ofuscadas por uma “ideologia da multiculturalidade”, que está por trás do “turismo cultural”, alimentado por programas governamentais que reunem diversos países. Sua história, esvaziada de seu conteúdo politico, foi transformada em um passado de fácil consumo. Muitos turistas entrevistados na TV, relatou Xóchitl, afirmavam que vinham conhecer os vestígios da cultura maia – cultura que na verdade nunca se foi e continua a caminhar, lenta e silenciosamente, contra as diferentes formas de colonização. Era essa, segundo a antropóloga Mercedes Olivera, a caminhada do dia 21, na qual milhares de passos reafirmaram, sem palavras, a renovação da resistência e da luta, nos conclamando a deixar de ser simples espectadores das mobilizações – ou de conferências.
A cultura maia permanece resistindo, no exemplo explorado por Silvia Ribeiro no terceiro dia do seminário, ao defender sua própria forma de subsistência, o milenar cultivo do milho. Ele está ameaçado tanto pela iminente contaminação por transgênicos, trazidos ao México por megaprojetos agrícolas de transnacionais, quanto pela invasão de hábitos alimentares estrangeiros – ambas ofensivas colonizadoras dos países centrais. O milho é parte essencial da vida de milhares de comunidades, é o coração de seu tempo, de seu calendário. “A defesa do milho”, afirmou ela, “é a defesa dos povos do milho”, afinal, não se trata de um produto, de uma coisa, mas de “uma trama de relações”. Ao ameaçar todo esse sistema de cultivo e consumo, a ofensiva do capital transnacional, aliado ao Estado, debilita a capacidade de subsistência independente e de soberania alimentar das comunidades indígenas e atinge diretamente sua autonomia e seu poder de resistência.
As batalhas ao redor da cultura, da agricultura e da alimentação são parte desse estado de “guerra permanente” que caracteriza, segundo Gustavo Esteva, fundador e coordenador da Universidade da Terra (Unitierra) de Oaxaca, a atual situação do México. O ex-guerrilheiro traçou um quadro desesperador da ascensão do que se poderia chamar de “capitalismo de Estado”, no qual volta ao centro uma sorte de acumulação primitiva, baseada na expulsão e espoliação dos de baixo. Precipitamo-nos dentro de um abismo, e seguimos caindo. Em plena queda vertiginosa, é impossível agarrar-se a qualquer coisa exterior a nós mesmos – a algo fixo e alheio, como as políticas públicas e os agentes partidários. A esperança reside nas nossas próprias ações, capazes de suprimir o aparelho estatal e as relações capitalistas, ao eliminar sua necessidade.
É necessário, segundo ele, passar dos substantivos, externos e fixos, para os verbos, dos quais somos sujeitos: da crença abstrata e ilusória na Educação, na Medicina, na Economia, para o estudar, o curar-nos, o produzir por nós mesmos. Ao invés de nos submeter às escolas, aos professores e à passividade do papel de alunos, podemos aprender de forma coletiva e autônoma. No lugar da heteronomia alimentar no cultivo e no consumo, ditada pelo mercado e pelo Estado, é possível promover a soberania alimentícia. Sem largar nossa saúde nas mãos de hospitais e médicos que criam mais doenças do que curam, podemos ser saudáveis ao respeitar o tempo e o espaço de nossos próprios corpos, cujos processos são muito mais eficazes.
Nessa direção caminham, por exemplo, os povos mapuches, que se organizaram, como contou Andrés Cuyul no segundo dia de seminário, para gerir por si mesmos sua saúde e combater a apropriação instrumental e a submissão dos saberes medicinais mapuches ao “sistema biomédico” pelo Estado. Segundo ele, a partir da armadilha da multiculturalidade “se promove o assistencialismo, negando as formas autônomas de gestão da saúde e ignorando, no caminho, a autonomia política. O sistema seduz terapeutas mapuches, mete-os em sua caixa asséptica, desvinculando-os da saúde como algo social, cultural e territorial, e, com essas políticas, se legitima.” A recuperação e a gestão autônoma da saúde – cada vez mais concretas em iniciativas como o Hospital Makeue, o Centro de Saúde Boroa Filu Ñahuen e o Hospital Nueva Imperial – convergem com a luta contra a destruição da cultura e das terras mapuches e pela restauração do poder desse povo de decidir sobre sua vida, seu território, a partir de sua própria visão de mundo.
Como nos mostram experiências de todo o mundo, é possível e necessário organizar iniciativas autônomas em cada esfera da vida cotidiana, cotidianamente, construindo aqui e agora o outro mundo possível, a sociedade que queremos. Talvez fosse mais ou menos essa a ideia que tinha em mente o historiador Jérôme Baschet, ao discorrer sobre as possibilidades de criação e expansão de espaços liberados dentro da sociedade capitalista. Segundo ele, o sistema necessita, para reproduzir-se, de relações sociais não capitalistas, como, por exemplo, aquelas que absorve nos processos de acumulação primitiva. Devemos lutar para criar, manter e expandir essas relações, esses espaços, que estão sempre sob ameaça de invasão pelas categorias dominantes, pelos estereótipos, pela angustia do trabalho ou do não trabalho, pelas relações de submissão e de consumo. É essencial fortalecer “contra-condutas”, numa luta por descapitalizar a nós mesmos e aos espaços em que vivemos, experimentando outras formas de vida e outras relações sociais, com as quais podemos construir outro mundo – “um mundo em que caibam muitos mundos”.
Um dos maiores e mais importantes espaços liberados talvez seja os municípios autônomos e caracóis zapatistas, mas o próprio seminário quiçá tenha constituído um deles, um espaço de “luta epistêmica”. Com toda certeza o CIDECI, onde foi realizado o encontro, é um exemplo significativo desse tipo de experiência. Trata-se de um centro de educação indígena que trabalha com jovens de comunidades de Chiapas e todo o país. Lá, os próprios alunos, ex-alunos e professores planejam, constroem e produzem tudo – prédios, móveis, decoração, enfermagem, comida, roupas, livros, etc. Ali se concretiza o principio explicado pelo coordenador Dr. Raymundo, de que “cada passo que se dá deve fornecer esperança”. Com isso, outro mundo se constitui no presente, numa espécie de protótipo da sociedade em direção à qual caminhamos.
O centro não só é autônomo como visa manter e expandir as autonomias dos povos ao lado dos quais caminha. Com cursos que vão da alfabetização à musica, passando por mecânica, confecção e apicultura, recebe até 600 estudantes por ano desde 1989. A ideia é suprir as necessidades de cada pueblo, com uma educação extraoficial que não busca senão o reconhecimento das próprias comunidades que atende. O complexo ainda conta com uma universidade informal, sem hierarquia, que funciona com seminários periódicos abertos aos alunos e à população. Para eles, “todos e todas, homens e mulheres, somos intelectuais e buscamos conhecimento”.
O CIDECI corrobora a afirmação de Esteva de que é possível e necessário imaginar, e realizar aqui e agora outro mundo possível. A sociedade em que vivemos torna-se cada vez mais insuportável, e resistir é como respirar: não se pode viver, hoje, sem lutar, fazendo a revolução a cada momento. A reflexão é importante para localizar e aprofundar tais experiências, para saber, brinca o pesquisador, se “os tomates que comemos são de fato revolucionários ou não”. Esse é o “caminhar perguntando” zapatista, lembrado por Jean Robert na sessão de encerramento: um caminho lento e silencioso – como o do caracol – em que cada passo, acompanhado de reflexão, traz esperança, porque se funda num calendário presente e não numa ilusão futura. Os primeiros burgueses e proletários, recordou Esteva, o eram sem saber, porque não eram capazes de perceber o sistema que já surgira e que eles já protagonizavam. Da mesma maneira, são poucos os capazes de escutar o novo mundo que surge silenciosamente da crise dessa sociedade, de ver no 13º Baktun e em todos os outros calendários, para além do fim comercializado pela indústria cultural, o início de uma nova era. Para isso, não basta destapar as orelhas: “é preciso criar novos ouvidos”.
Entrevista com Gustavo Esteva. Por Emergencia Mx
Assista aqui a exposição completa de Gustavo Esteva no Terceiro Seminário Internacional de Análise e Reflexão ”…planeta terra: movimentos antissistêmicos…”
“Como La Cigarra” Mercedes Sosa – música que acompanha o comunicado zapatista do dia 21/12/2012
Fotos: Frederico Ravioli e Luiza Mandetta
Se os autores do artigo pretendiam voltar a dar «conteúdo político» à civilização maia, então, em vez de terem difundido visões líricas e infundamentadas, deviam ter analisado as contradições sociais que rasgaram essa civilização e precipitaram o colapso de alguns dos seus principais centros. Fazer o elogio do passado sem mostrar as contradições do passado é uma das formas mais perversas de promover as sub-burocracias dos movimentos sociais, que vivem de explorar ideologicamente essas referências saudosistas.
Se a cultura maia está ameaçada «pela invasão de hábitos alimentares estrangeiros», seria bom recordar que essa cultura não nasceu com Adão e Eva, mas resultou de uma criação civilizacional que ampliou a sua área de domínio e que submeteu outras culturas, relativamente às quais ela era igualmente estrangeira. Este é outro exemplo de ocultamento das contradições históricas. Nenhuma civilização se ampliou sem destruir ou assimilar outras civilizações vizinhas ou anteriores.
Se a afirmação de que os «hospitais e médicos […] criam mais doenças do que curam» for verdadeira, então os autores do artigo têm de a demonstrar com estatísticas, provando que o desenvolvimento da medicina científica desde os finais do século XVIII levou ao decréscimo da população mundial e à diminuição da esperança média de vida. Antes de se tratar de indústria trata-se de ciência, e de nada vale declamar onde seria necessário provar. Os autores do artigo têm ainda de mostrar, com dados estatísticos e com a análise laboratorial de casos concretos, que as formas de cura tradicionais são mais eficazes do que as formas científicas. Se não o fizerem, estão somente a promover os interesses profissionais dos curandeiros, qualquer que seja o nome por que os designem.
Sugiro ainda aos autores do artigo que, quando em qualquer país houver lutas pela extensão dos centros de saúde e dos hospitais — ou contra o encerramentos desses centros e hospitais, como ocorre hoje na periferia meridional da zona euro — vão discursar às famílias em luta e lhes expliquem que os «hospitais e médicos […] criam mais doenças do que curam». Afirmações deste tipo não são apenas reaccionárias, são genocidárias.
Precisamente quando a economia cresce, como sucede agora no México, e as classes dominantes correm o risco de que os trabalhadores mais pobres exijam o direito a participar da abundância criada pelo capitalismo, aparecem umas figuras a explicar à população que a sua miséria tradicional representa a sua cultura tradicional e que para preservarem a cultura devem preservar a miséria. Este artigo é uma peça de obscurantismo.
Segundo a Organização Panamericana de Saúde, a esperança de vida aumentou de 45 anos num século, de 1900 a 2010, na América Latina e Caribe.
http://www.un.org/spanish/News/story.asp?newsID=24465#.UP7EsScz2vY
Voce em momento algum demonstra ter sentido alguma coisa, apesar de toda a experiencia que aparentemente voce tenha presenciado. Acho que podemos e devemos sim nos empatizar cdom os outros mas nunca viver nos outros. Pelo seu texto extremamente referencial e de certa forma revoltoso, voce aparenta estar deprimido. Perceba, este tipo de realidade que voce propoe é possivel e benefico aos zapatista que obviamente, nao foram ainda culturalizados pelo modo social do “grande mercado”, voce vive em outro mundo cara. Adapte-se a ele, e a partir dessa asaptação mude-o. Essa é minha opinião, sou politizado, esquerdista e em todo resto simpatizo comtigo mas voce ressoa um extremisto deturpante.
O comentário de João Bernardo ressalta apenas um dos lados do artigo: o tom saudosista e idealizado com que se fala da cultura maia (ou outras culturas tradicionais). É um comentário raivoso, que desrespeita o esforço dos três jovens autores na busca de esperança e de novas formas de luta, além de exagerar de forma absurda ao acusá-los de “obscurantismo”! Acompanhei pela internet boa parte do seminário aqui comentado e, na minha modesta opinião, vi ali críticas muito bem feitas ao sistema capitalista e a alguns de seus desdobramentos – sempre acompanhadas de propostas e de alternativas. Dentre essas alternativas, caberia destacar o respeito nas relações interpessoais e nos debates. Há críticas importantes a fazer-lhes? Concordo, mas não desta forma (forma e conteúdo andam juntos…). A prática dos centros de saúde zapatistas (que se pode conhecer um pouco pela internet) é um esforço para levar o conhecimento científico “ocidental” sobre saúde e doenças para uma população extremamente pobre e abandonada pelas políticas públicas de saúde – não são centros de curandeirismo! O mesmo se pode dizer de suas “escuelitas” – e do próprio CIDECI – lugares em que se busca abrir horizontes e não “manter a população em sua miséria tradicional”. O uso intensivo da internet e das tecnologias da informação vai na mesma direção de reconstruir aspectos igualitários das tradições culturais em novos termos, de apropriar-se de ferramentas “do capitalismo” a favor da maioria da população. Eu poderia alongar os exemplos, mas quero encerrar afirmando que considero lamentável ver um companheiro com a experiência e o cabedal de João Bernardo utilizando-se dela de maneira tão pouco construtiva e nada solidária!
Comentário crítico necessário e imprescindível o expresso pelo JB. Desrespeito seria apoiar toda essa neo-mitologia identitária reconfortante que só se sustenta sustentando hierarquias quase sacerdotais de tão protoburocráticas.
Marília Carvalho,
O seu comentário não rebate nenhum dos meus argumentos. É possível que naquele seminário se tenham dito coisas interessantes, mas eu critquei o artigo, que li, e não o seminário, a que não assisti. Você escreve que «a prática dos centros de saúde zapatistas […] é um esforço para levar o conhecimento científico “ocidental” sobre saúde e doenças para uma população extremamente pobre e abandonada pelas políticas públicas de saúde». Ora, quanto a esta questão o artigo apresenta uma perspectiva inversa. Os leitores que leiam e comparem. Os autores do artigo referem-se, retomando as ideias de um dos participantes no tal seminário, aos «hospitais e médicos que criam mais doenças do que curam». Classifico este tipo de ideias de obscurantistas e genocidárias porque não existem melhores adjectivos para as referir.
Não pretendo ser simpático. Pretendo escrever e falar de maneira inteiramente clara e sem ambiguidades, pretendo ir directo aos assuntos sem rodeios. Construí este estilo ao longo de uma vida e aplico-o neste caso como em todos os outros. Ser construtivo — um termo colocado em voga pela auto-ajuda, que é a forma banalizada do politicamente correcto — para mim significa apenas ser claro.
Aliás, haveria mais coisas a dizer acerca daquele artigo. Limito-me a acrescentar uma. A propósito do «milenar cultivo do milho», os autores consideram que ele está ameaçado pela «invasão de hábitos alimentares estrangeiros». Enquanto internacionalista, ou seja, em termos claros, antinacionalista e antipatriota, a identificação de estrangeiro com nocivo só me causa repulsa. Mas como não é das minhas preferências que aqui se trata, convém recordar que uma cultura que tem medo do estrangeiro e é incapaz de assimilar as técnicas e as ideias provenientes do estrangeiro é uma cultura condenada. Só pode ser mantida em estado de múmia por zeladores que puxam cordelinhos para dar a ilusão de que a múmia se mexe. Creio que foi isto mesmo que Neco disse no seu comentário. Seria bom que os autores do artigo reflectissem que os portugueses e os espanhóis levaram o cultivo do milho maís para a Europa, onde até então só se conhecia o milho paínço, assim como levaram outras cultivos da América Central e do Sul, nomeadamente a batata. E, pelo menos a respeito da batata, também foram numerosos os europeus que protestaram contra a «invasão de hábitos alimentares estrangeiros». Com o multiculturalismo, que é a versão bairrista do nacionalismo, consegue-se uma coisa — desestruturar a história.
Prezado companheiro João Bernardo,
Dirijo-me diretamente a você, como fez a mim, e respondo apenas ao que diz respeito a meu comentário. O debate sobre o artigo deixo para os inúmeros leitores deste site. E não pretendo dar continuidade a essa troca de comentários, por inútil. Critico, sim, a forma como você conduziu essa discussão – e todos sabemos de sua destacada posição entre os mantenedores deste espaço de debates. Se esta é a sua forma de debate construída em toda uma vida, que triste! Com 30 anos de experiência como educadora e nunca tendo separado minha atividade política da educação, aprendi que o diálogo e as mudanças de ideias se fazem por meio da clareza, sim, mas principalmente do respeito pelo que o outro pensa. Considero sua resposta ao artigo desrepeitosa e deselegante (quer mais clareza? mal-educada). Considero que você distorce e exagera aspectos do artigo, porque, embora não tenha sido claro a este respeito, você não está criticando apenas esse artigo, mas o conjunto de posições que fundamentam os palestrantes do seminário e os militantes dos movimentos ali representados, os quais você conhece muito bem (fui clara?). Acusar-me de apelar à literatura de auto-ajuda ou ao politicamente correto por defender um debate construtivo não acrescenta nem esclarece nada. Eu poderia ter falado num debate que facilitasse o avanço político dos leitores – e dos autores do artigo. Não acho que seus comentários tenham contribuído nessa direção.
Saudações!
Marília Carvalho diz que forma e conteúdo andam juntas, mas esqueceu-se de, criticando a forma de João Bernardo se expressar, criticar também o conteúdo daquilo que ele expressa. João Bernardo têm toda a razão ao classificar o texto como obscurantista, basta ler o artigo para perceber qual é a opinião dos autores em relação à medicina e aos hábitos alimentares “tradicionais”, isto é, ocidentais (identificando-se ocidental com imperialista). O texto defende uma “recuperação” e uma “gestão autônoma” da saúde, de acordo com uma concepção da saúde como algo “cultural” e “territorial” (por quê não dizer “nacional”, pois é exatamente isto que se quer dizer?), o que significa defender os “saberes” dos maias em oposição aos da medicina tradicional. Os indígenas devem lutar, isto sim, para que o Estado seja obrigado a prover-lhes um sistema de saúde científico e de alta qualidade, investindo grandes somas de recursos públicos na instalação e na manutenção deste sistema. A luta deve ser pela socialização da saúde tradicional, estendendo-a a todos, com qualidade, e não pela valorização do curandeirismo arcaico e pela reproposição deste curandeirismo na atualidade, como uma forma de valorizar “culturas nacionais ameaçadas”. Na medida em que as classes subalternas são exploradas, não só pelo capital privado, mas também pelo Estado, elas devem lutar para que o Estado assuma a responsabilidade social que lhe compete, a de lhes garantir uma saúde de qualidade cientificamente (no sentido ocidental-imperialista, se se quiser) atestada. Recusar-se a fazê-lo, prendendo-se a uma perspectiva de valorização de saberes nacionais milenares, é, não encontro palavra melhor para descrevê-lo, obscurantismo. Marília Carvalho nada mais fez do que apelar para a elegância do discurso e, dessa forma, nada mais fez do que depreciar ainda mais o artigo, já que atesta que não se pode defender seu conteúdo senão pela condenação da forma pela qual se o critica. Se o objetivo de nossa companheira era dar uma força aos autores, ela fracassou completamente, pois desviou, ou pretendeu desviar, as nossas atenções do conteúdo do artigo.
Com todos os comentários feitos, percebemos que nosso texto, escrito no calor do momento, guarda infelizmente certos pontos obscuros e confusos que conviria aclarar para que possamos seguir com o interessante debate que se iniciou por aqui. Procuramos então elucidar tudo que podíamos.
Primeiramente, algo que talvez não tenha ficado claro no texto é que não tínhamos a pretensão de apresentar nossas próprias posições, mas de expor algumas impressões sobre o que foi colocado em um seminário. Assim, a frase inicial do parágrafo que traz a tão criticada afirmação sobre o sistema de saúde capitalista indica, logo no início, que as posições são de Gustavo Esteva. Deveríamos ter reiterado o fato ao fim do parágrafo ou citado sua exposição textualmente. Podemos fazer isso agora, mas sugerimos, sobretudo, que se assista sua exposição (em: http://www.youtube.com/watch?v=5FcziBxL8CI ) ou ao menos o trecho completo que engloba a questão da saúde, a partir dos 24min. Aos 28min, Esteva afirma, com estas palavras:
“Temos de escapar, temos de nos curar da saúde, do sistema de saúde, que se torna contra produtivo. Todos temos a experiência de como é esse sistema de saúde doente, de como os médicos e os hospitais produzem mais doenças do que curam.”
Parece-nos haver aí uma crítica à lógica, cada vez mais aguda, do sistema de saúde no capitalismo – a mesma lógica contra a qual lutamos também em todos os outros âmbitos da sociedade. Não se trata de uma rejeição da medicina ocidental, com todos os seus saberes e práticas, mas da luta contra uma indústria cujos laboratórios pagam médicos para diagnosticar transtornos que incrementam a venda de seus medicamentos; a qual incentiva, no exemplo utilizado por Esteva, o uso abusivo de remédios que atuam contra mecanismos de defesa naturais do corpo, como a febre, rebaixando a resistência do organismo; na qual comodidade e a eficiência dos médicos, sobrecarregados, determinam que se realize com frequência procedimentos invasivos, como a cesariana, sem necessidade. A questão, segundo nos parece, não está na importância da medicina ocidental, mas a serviço de quê, de quem ou de qual lógica ela é exercida. De qualquer maneira, só essa questão rende extensas pesquisas e discussões e acreditamos que nos falta muito conhecimento para aprofundá-la bem…
Ademais, nunca pretendemos “voltar a dar ‘conteúdo político’ à civilização maia”, nem mesmo tratar da “civilização maia”, mas da cultura maia dos dias de hoje, essa que existe no cotidiano dos vários povos que seguem vivendo em Chiapas. Talvez o texto, ao mencionar a “cultura maia”, deixe de fato possibilidade de uma interpretação equivocada ligada à civilização pré-hispânica. Talvez seja necessário esclarecer que quando mencionamos “cultura maia” no artigo fazemos referência aos dias de hoje e a uma parte da população mexicana atual que conserva costumes e tradições maias, a etnias que se reivindicam “povos maias”, mas que de forma alguma representam a “civilização maia” do passado e que, estando no presente, mantém todo o tipo de relações com este, estão inseridas na sociedade do presente. Por isso nunca pretendemos – e tampouco nos parece que pretenderam os palestrantes – fazer um elogio do passado, mas uma reflexão sobre o presente – a não ser que se entenda tais povos como parte do passado, e não do presente.
Se se entende a população indígena e camponesa de Chiapas como parte de uma “civilização maia” diferente da nossa – e não como parte da sociedade capitalista contemporânea –, se ela é vista como uma população atrasada na história, então trata-se de uma “cultura condenada” que tem ser destruída ou assimilada. Tal visão implica considerar a medicina tradicional dessa população como algo isolado, num tempo outro, separada da história e da nossa sociedade, sem jamais pensá-la em suas relações com elas – roubada e patenteada, por exemplo, pelos grandes laboratórios, ou integrada às práticas “ocidentais” de outra forma nas clínicas autônomas zapatistas. Ora, a medicina ocidental incorporou e segue dialogando com saberes e práticas não-ocidentais, e parece-nos que o ponto está na maneira como ocorre essa interação(a discussão da interação e relação entre essas duas formas de medicina dentro das clínicas zapatistas pode ser melhor conhecida no interessante artigo do passapalavra “Outra Saúde: a experiência autônoma zapatista”, em http://passapalavra.info/?p=18399).
Daquele ponto de vista, que vê na população indígena camponesa de Chiapas o passado, a “civilização maia”, seus saberes medicinais devem ser superados pelo progresso. De forma similar, a imposição de uma alimentação padronizada e do modo de produção capitalista no campo representam, talvez, o progresso, o avanço da história. A luta dos “povos maias” para poder decidir sobre sua própria alimentação, bem como para impedir o avance da indústria da agricultura e trabalhar suas terras coletivamente, pode então perder todo o sentido – vai contra a História. Desse ponto de vista, talvez, os vários movimentos indígenas e camponeses de Chiapas – com destaque ao EZLN – ganhem um caráter acentuadamente reacionário, não?
João Bernardo, o que não está muito claro para nós é se as críticas feitas ao nosso texto são também críticas ao movimento zapatista. Se tal impressão não está equivocada, não é à toa que a perspectiva a partir da qual partiram suas reflexões colide frontalmente com os fundamentos das exposições solidárias às experiências desenvolvidas no território autônomo de Chiapas que escutamos no CIDECI-Unitierra – isso, claro, se nosso relato não distorce demasiadamente as posições dos palestrantes.
É ao EZLN e a sua Comandância a que você se refere quando alude às “sub-burocracias dos movimentos sociais, que vivem de explorar ideologicamente essas referências saudosistas”, grupos que tratamos de perversamente promover com um “elogio” a uma “cultura condenada”? Não estão no próprio discurso do “neozapatismo” as “visões líricas e infundamentadas”, ou a “neo-mitologia identitária reconfortante”, nos termos de Humanaesfera? Ora, parece-nos que uma linguagem mitológica e lírica, em diálogo com antigas lendas e tradições dos povos de Chiapas e também com a tradição filosófica moderna, permeia sim a linguagem do “neozapatismo”, que não é, entretanto, nada saudosista: olha para o presente e para o futuro. Parece-nos também que há sim uma crescente burocracia no interior do movimento, e que ela deve ser debatida e combatida. Além disso, ele assumiu desde o início um discurso abertamente nacionalista ou patriota – não à toa suas últimas marchas carregavam uma bandeira mexicana à frente.
Assim, se as próprias experiências do EZLN e de outros movimentos indígenas camponeses de Chiapas são de fato a discussão de fundo, ponhamo-la às claras e haverá muito que debater. Embora não nos consideremos à altura de semelhante debate, quiçá poderíamos contribuir com algumas críticas e observações. Seguramente conhecer mais profunda e claramente suas críticas nos instigaria bastante a continuar a investigar e discutir.
Saludos!
Luiza, Leonardo e Frederico,
Não é procedente o argumento de que o artigo relatava opiniões alheias e eu as critiquei como vossas. É muito raro — e graças às pressões curriculares será cada vez mais raro — que um artigo inclua ideias originais. Mas quando os autores as divulgam sem distância crítica, isto significa implicitamente que as adoptam.
Vocês perguntam-me se as minhas críticas incluem também o EZLN. Na forma drástica como as formulei, não incluem.
O zapatismo é um movimento internamente contraditório, como são todos os movimentos sociais. Por um lado, as ameaças de burocratização existem no zapatismo tal como existem em qualquer outro movimento. O principal, então, é saber que iniciativas são tomadas em sentido contrário a essa burocratização e, pelo que conheço, os zapatistas mostraram-se atentos a este problema, nomeadamente quando referem a necessidade de a população exercer o controlo sobre os dirigentes. Nos primórdios deste site, Leo Vinicius escreveu um artigo que na altura me pareceu muito importante, embora não o tenha relido. Fica aqui o link:
http://passapalavra.info/?p=2280
Creio que posições deste tipo indicam a existência no zapatismo de uma dinâmica anticapitalista.
Um grande problema é que em torno do zapatismo, como no Brasil em torno do MST, prolifera um enxame de professores e professoras universitários que usam estes movimentos nas suas pesquisas e trabalhos de campo, engordam com eles os seus curricula e, em sentido inverso, contribuem fortemente para a reaccionarização de tais movimentos. Um triste exemplo é o que se passa nestes dias com o MST, que retirou publicamente a solidariedade aos assentados do Milton Santos quando eles ocuparam o Instituto Lula. O facto de o MST se ter convertido numa peça da área governamental passou a ditar os limites da sua eventual solidariedade com as lutas. Neste site têm sido publicadas várias análises críticas do MST e eu próprio tenho contribuído, não é esta a ocasião para as resumir. Mas estou convencido de que um dos elementos que contribuiu para a transformação do MST foi o peso crescente tomado pelos universitários que fazem do Movimento um objecto do trabalho académico. Temo que o mesmo problema se coloque relativamente ao EZLN e a seminários como aquele em que o vosso artigo se baseou.
Há igualmente a questão do nacionalismo, mas ainda aqui é necessário não confundir símbolos — quer bandeiras quer palavras — com conceitos. O valor dos símbolos depende da posição que ocupam em cada contexto, em cada estrutura. No vosso comentário vocês evocam a «cultura maia dos nossos dias», mas a linguagem com que o subcomandante Marcos gosta de se exprimir não se insere tanto em qualquer tradição pré-colobiana, directamente resgastada, como sobretudo numa tradição literária erudita, iniciada no México com o Pedro Páramo, de Juan Rulfo, e que se difundiu por todos os países da América de língua espanhola — embora, curiosamente, não no Brasil. Ora, esta corrente literária, geralmente chamada realismo mágico, insere-se numa tradição que conta entre os seus criadores Gogol, com O Capote, e depois vários outros ficcionistas europeus mais ou menos influenciados pelas técnicas do surrealismo. Vêem o que me incomoda nas visões redutoras do nacionalismo e do seu subproduto, o multiculturalismo? É que uma rede viva de dimensão universal é desestruturada numa manta de retalhos, ficando uma colecção de mortos em lugar de um movimento vivo. Este é só um exemplo, mas vale por outros, para mostrar que o problema do nacionalismo é de grande complexidade.
Basta os povos falarem línguas diferentes e usarem chapéus diferentes para se inserirem em tradições culturais diferentes. E daí? A questão consiste em saber qual é a tendência dinâmica que os move, se a da separação, cada um na sua gaveta, se a da fusão das diversidades numa cultura universal. A hostilidade que os multiculturalistas — vocês e o vosso artigo incluídos — têm ao capitalismo não vem de se tratar de um sistema de exploração mas de um sistema de universalização da cultura. Assim as coisas ficam claras. A hostilidade que pessoas como eu têm ao capitalismo deve-se ao facto de ser um sistema de exploração, e pretendemos levar adiante a universalização da cultura através de uma sociedade sem exploração.
Quem queira entender o inconciliável antagonismo entre estas posições leia o quarto parágrafo do vosso comentário, que vai mais longe ainda do que o artigo na defesa do obscurantismo genocidário hoje em voga em certos meios universitários. Sob o pretexto de que a medicina de massas é um produto do capitalismo, deita-se fora a medicina de massas e regressa-se aos curandeiros pré-capitalistas, de sociedades que não tinham menos contradições nem menos exploração do que o capitalismo, só que as tinham de outra forma.
E, já agora, não vos parece paradoxal escreverem em computadores e usarem a internet para criticar a medicina de massas capitalista? Ora, os computadores e a internet são por excelência produtos capitalistas de massa. Para serem coerentes, usem sinais de fumo.
João Bernardo, muito pouco instrutiva a forma que você conduz seus argumentos, com os quais em grande parte até concordo. O debate se faz pela contraposição de idéias, não pela agressão e pela prepotência. Não precismos ser simpáticos na nossa argumentação, devemos sims er educados; aliás, o próprio Lenin assim o dzia, ainda que pelos teus argumentos não deva ser essa liderança sua referência históricca.
Tua crítica a respeito da “…enxame de professores e professoras universitários que usam estes movimentos nas suas pesquisas e trabalhos de campo, engordam com eles os seus curricula e, em sentido inverso, contribuem fortemente para a reaccionarização de tais movimentos” além de estar fora de contexto, me deixa curioso a respeito de qual deva ser, na sua visão, a postura correta dos setores acadêmicos a respeito dos movimentos sociais.
A respeito de outra colocação sua,na qual não vejo nehuma relação com o texto apresentado; se você acha positiva a invasão do Instituto Lula por um defeccção do PSOL – o prórpio partido eximiu-se da ação – vejo que você está profundamento equivocado sobre o processo político no seu prórprio país, quanto mais a espeito do México e das particularidades de um movimento extremamente complexo com o zapatismo. E por fim, meu caro, teu argumento final é deplorável – “usem sinais de fumo”. Digno do brilhantismo da extrema direita, tal qual a brilhante resposta “gosta de comunista, vai morara em Cuba”. Isso não é antipatia.
Curioso que o luís otávio, que pretende conhecer o processo político no Brasil, venha reproduzir uma notícia plantada de que a ocupação do instituto Lula foi feita por uma corrente do psol. Seria pura ignorância ou propositalmente estaria usando o método stalinista e seus brilhantes argumentos deploráveis? A quem interessa negar que esta luta no instituto foi levada adiante por assentados, mesmo sem o apoio do MST?
Caro João Bernardo, fico com uma dúvida a martelar a minha cabeça: não posso ser contra o capitalismo tanto como “universalização da cultura” quanto como sistema de exploração?
Me parece que a crítica acerca da industria farmacêutica é importante de ser feita, bem como a utilização de doenças como parte da chamada de doutrina de choque para controle social, o Passa Palavra publicou artigos sobre isto na ocasião da Gripe Suína(http://passapalavra.info/?p=4063 & http://passapalavra.info/?p=4356); contudo, isto não deve ser confundido com a apologia de métodos de “cura xamânico” ou fortalecimento de “lideranças tradicionais”.
Eu compartilho da curiosidade do Chanson. Aparentemente o JB não acredita que a máxima zapatista de “criar um mundo onde caibam vários mundos” seja possível, ou mesmo desejável. Pra mim a questão não está clara. Se houver algum texto onde o posicionamento é melhor desenvolvido, peço que me envie a fonte. Se não, gostaria de pode ver você desenvolver melhor o raciocínio JB.
A palavra de ordem «criar um mundo onde caibam vários mundos» é muito simpática, é como «viva a liberdade». Mas tem o enorme inconveniente de ser ambígua, cada um a pode ler como quiser. Ora, mais tarde ou mais cedo chega um momento em que as pressões práticas esclarecem as ambiguidades. Geralmente, porém, as ambiguidades esclarecidas na prática perduram no plano ideológico sob a forma de palavras gastas. A esquerda é um cemitério de palavras gastas. «Social-democracia», «socialismo», «comunismo», «partido dos trabalhadores», «internacionalismo», «nacionalizações», quantas e quantas mais, tudo isso significou alguma coisa antes de significar o contrário ou simplesmente não significar nada. Mas, se observarmos com atenção, já no início aqueles termos eram ambíguos. Uma boa parte da actividade dos cientistas consiste em definir os termos cada vez mais rigorosamente, enquanto uma boa parte da actividade dos chefes políticos consiste em tornar os termos cada vez mais ambíguos.
Eu não reivindico a palavra de ordem zapatista. Argumentei com um conteúdo um pouco mais profundo que uma palavra de ordem. Aparentemente, JB, você ignorou.
No entanto, devo dizer que concordo consigo, JB. Apenas incluo entre os termos que você citou alguns outros, como “liberdade universal”, “opressão” e “autonomia” (sem aspas francesas, apesar do meu nome ser francês).
Chanson,
Peço desculpa de só agora responder, mas nos últimos tempos os comentários aqui foram mais do que os habituais e o seu escapou-me. Você perguntara-me: «não posso ser contra o capitalismo tanto como “universalização da cultura” quanto como sistema de exploração?» Claro que pode, muitos o foram e continuam a ser, e para isso reivindicam, contra o capitalismo, uma tradição e uma sociedade tradicional. Pode sê-lo, mas não se engane de área política. Peter Sloterdijk (Critique of Cynical Reason, Minneapolis e Londres: University of Minnesota Press, 1987, pág. 206) definiu o fascismo como uma «revolta moderna contra a modernidade». Valdimir Tismaneanu (Fantasies of Salvation. Democracy, Nationalism, and Myth in Post-Communist Europe, Princeton, Nova Jersey: Princeton University Press, 1998, pág. 110) adoptou uma formulação idêntica ao escrever que «as origens do fascismo residem numa ruptura trágica com a modernidade em nome da modernidade» e numa perspectiva vizinha Francesco Germinario (Estranei alla Democrazia. Negazionismo e Antisemitismo nella Destra Radicale Italiana, Pisa: Biblioteca Franco Serantini, 2001, pág. 45) caracterizou o fascismo como «uma reacção moderna aos estragos provocados pela modernização». É que, ao contrário do que usualmente se imagina, o fascismo pretendeu-se e pretende-se anticapitalista. Recomendo-lhe que leia atentamente o livro de Julius Evola Rivolta contro il mondo moderno, que eu conheço apenas na versão em inglês (Revolt Against the Modern World, Rochester, Vermont: Inner Traditions International, 1995). Talvez você e outros acabem por descobrir qual é o campo político a que realmente pertencem. A não ser que entretanto mudem de opiniões, claro.
Então não se pode ser contra a “universalização da cultura”(termo extremamente ambíguo, aliás) mantendo-se nos marcos da modernidade e aceitando-a, nos seus termos? E se se é, se é automaticamente fascista. Compreendo.
With a little help of Simone Weil: “A transposição é um critério básico para uma verdade. O que não pode ser transposto não é uma verdade; assim como o que não muda de aparência conforme o ponto de vista não é um objeto, mas uma alucinação.”
Ao reler um livro, topei com um diálogo que me trouxe de volta para essa discussão. Dentro e fora do marxismo, o absurdo costuma nascer da mais perfeita coerência. Não por acaso ela caminha junto com a identidade.
“Dois jovens conversam:
“A: Você não quer ser médico?
“B: Por causa da profissão, os médicos estão sempre lidando com os moribundos, e isso endurece as pessoas. Depois, com a institucionalização crescente, os médicos passam a representar em face do doente a empresa com sua hierarquia. Muitas vezes, ele se vê tentado a se apresentar como o administrador da morte. Ele se torna o agente da grande empresa em face dos consumidores. Quando se trata de automóveis, isso não é tão grave assim, mas quando os bens administrados são a vida e os consumidores são pessoas que sofrem, trata-se de uma situação em que não gostaria de me encontrar. A profissão do médico de família talvez fosse mais inofensiva, mas ela está em decadência.
“A: Você acha que não deveria mais haver médicos e que deveríamos voltar aos charlatães?
“B: Não disse isso. Só tenho horror de me tornar médico, e sobretudo um desses diretores-médicos com poder de comando sobre um hospital público. Apesar disso, acho que é melhor, naturalmente, que haja médicos e hospitais do que deixar os doentes morrer. Também não quero ser nenhum promotor público, mas acho que dar liberdade aos assaltantes seria um mal muito maior do que a existência dessa corporação que os põe na cadeia. A justiça é racional. Não sou contra a razão, só quero enxergar a forma que ela assumiu.
“A: Você está se contradizendo. Você se aproveita o tempo todo dos serviços dos médicos e dos juizes. Você é tão culpado quanto eles próprios. Só que você não quer se dar ao trabalho de fazer o
que os outros fazem por você. Sua própria existência pressupõe o princípio a que você gostaria
de escapar.
“B: Não nego isso, mas a contradição é necessária. Ela é uma resposta à contradição objectiva da sociedade. Quando a divisão do trabalho é tão diferenciada como hoje em dia, é possível que em dado lugar se manifeste um horror responsável pela culpabilidade de todos. Se esse horror se difundir, e pelo menos uma pequena parte da humanidade se tornar consciente dele, talvez os
manicómios e as penitenciárias se tornem mais humanos e os tribunais acabem se tornando supérfluos. Mas não é absolutamente por isso que eu quero ser escritor. Eu só queria ver com maior
clareza a situação terrível em que tudo se encontra hoje em dia.
“A: Mas se todos pensassem como você, e ninguém quisesse sujar as mãos, então não haveria nem médicos nem juizes, e o mundo pareceria ainda mais horrível.
“B: Mas é justamente isso que me parece questionável, pois, se todos pensassem como eu, espero, não apenas os remédios contra o mal iam diminuir, mas o próprio mal. A humanidade ainda tem outras possibilidades. Eu não sou a humanidade inteira e não posso simplesmente tomar o seu lugar
em meus pensamentos. O preceito moral que diz que cada uma de minhas acções deveria poder ser
tomada como uma máxima universal é muito problemático. Ele ignora a história. Por que minha
aversão a ser médico deveria equivaler à opinião de que não deve haver médicos? Na verdade, há tantas pessoas aí que podem ser bons médicos e têm mais de uma chance de vir a ser médicos; Se eles se comportarem moralmente dentro dos limites traçados actualmente para sua profissão. terão
minha admiração. Talvez cheguem mesmo a minorar o mal que descrevi para você; talvez, ao contrário, agravem-no ainda mais, apesar de toda a sua competência técnica e toda a sua moralidade. Minha vida, tal como a imagino, meu horror e minha vontade de conhecer parecem-me tão justificados como a própria profissão de médico, mesmo que eu não possa ajudar directamente a
ninguém.
“A: Mas se você soubesse que você poderia, se estudasse para médico, vir a salvar a vida de um
a pessoa amada, vida que ela perderia com toda a certeza, não fosse por você, você não se dedicaria
imediatamente ao estudo da medicina?
“B: Provavelmente, mas você mesmo está vendo que, com seu gosto por uma coerência inexorável, você acaba tendo de recorrer a um exemplo absurdo, enquanto eu, com minha teimosia sem nenhum sentido prático e com minhas contradições, não me afastei do bom-senso.
“Esse diálogo se repete sempre que uma pessoa não quer abrir mão do pensamento em benefício da
prática. Ela vai sempre encontrar a lógica e a coerência no lado contrário. Quem for contra a vivissecção não deve mais fazer nenhum movimento respiratório, porque isto pode custar a vida a um bacilo. A lógica está a serviço do progresso e da reacção, ou, em todo caso, da realidade. Mas, na época de uma educação radicalmente realista, os diálogos tornaram-se mais raros, e o interlocutor neurótico B precisa de uma força sobre-humana para não ficar são.”