Trinta mil manifestantes ou mais, cantando e panelando contra o governo, começaram a dobrar a esquina. Era 18 de abril, as eleições se aproximam e cresce o medo de uma nova crise. Por Cintia Tavares e Daniel Caribé

Era para ser apenas um programa de turista: conhecer a sede das Mães da Praça de Maio. Acostumados com os sindicatos e sedes dos movimentos brasileiros, não havia a possibilidade de não causar surpresa aquele edifício. Há um grande bar que dá para a calçada, um centro de radiodifusão, uma livraria e muitas salas internas que fazem referências a outros movimentos e personalidades. Há bandeiras de todos os países da América do Sul, também de Cuba, e muitas pinturas nas paredes. Procuramos algo que nos remetesse ao MST (Movimento dos Trabalhadores sem Terra) e ao EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional) e não foi difícil encontrar. Se tivéssemos chegado em um bom dia provavelmente descobriríamos mais coisas.

Próximo à sede há a universidade do Movimento e se você atravessar a Avenida de Mayo, que liga o Congresso à sede do governo, vai se deparar por todo o caminho com imagens de senhoras e seus lenços brancos cobrindo as cabeças. Aliás, é esta mesma avenida que liga a praça onde as Mães fazem sua vigília e protesto permanentes à sede do Movimento, só que com uma inversão: enquanto de frente para a Casa Rosada o Movimento divide espaço com outras manifestações e expõe as contradições do país bem no meio de uma das regiões mais organizadas e dinâmicas da cidade, na Praça do Congresso a sede do Movimento é uma ilha em um dos bairros que não resistiu às crises. Portanto, qualquer um que não seja muito distraído logo percebe que o Movimento conseguiu fazer parte da cidade. No chão pintado, nos muros grafitados e nas conversas polemizadas.

Ainda na sede, entre fotos de Evita, Che e Cristina, pessoas ansiosas limpavam o lugar, já encerrando o expediente. Os que tomavam suas cervejas no bar, como em qualquer lugar do mundo, resistiam. Frustrados, sem receber atenção de ninguém, fomos dar uma volta na imensa praça da frente. Diferente das zonas mais centrais, a Praça do Congresso estava povoada por imigrantes mais recentes e seus descendentes. A jardinagem e a iluminação eram mínimas e o lugar se encontrava, apesar da imponência, bem abandonado pelos poderes estatais. Enfim, Buenos Aires é igual, porque contraditória, a qualquer grande cidade do mundo…

Foi então que, ao nos dirigirmos para uma das saídas na tentativa de irmos embora, trinta mil manifestantes ou mais, cantando e panelando contra o governo, começaram a dobrar a esquina. Era 18 de abril, as eleições se aproximam e cresce o medo de uma nova crise. Depois soubemos que em outras praças havia muito mais pessoas. Mas ali, quase uma hora depois, ainda chegava gente e a vista não alcançava o final do protesto. O início dele se apertava, cada vez mais, na frente do Congresso. Porém, com duas ou três palavras de ordem já dava para perceber que não seria possível se juntar àquela turma. A maioria dos cartazes e faixas, quando não eram bandeiras do país, acusava a presidente de corrupta. Havia mais moralismo do que gente.

Surpresos, regressamos à sede, já com quase todas as portas abaixadas, e insistimos em ter conversa com alguém do Movimento:

– Contra o que eles saem às ruas?

Uma moça, de braços cruzados e sem tirar os olhos da praça, nos responde secamente:

– São contra tudo que o governo faz.

Queríamos saber o que o Movimento achava daquilo tudo e continuamos o questionário:

– E são de direta ou de esquerda?

Um breve silêncio, um rapaz dá de ombros, mas a moça prossegue:

– São de direita. São contra a Ley de Medios, contra as estatizações, contra a reforma [do Judiciário]…

– Mas há grupos de esquerda apoiando?

Ninguém nos responde. Talvez não tenham entendido o nosso portunhol…

Na ponta da praça, de frente ao Congresso, uma festa lembrava as arquibancadas dos estádios de futebol. Todos cantavam algo indecifrável para nós, talvez algum hino, e davam dedo para um helicóptero que sobrevoava a manifestação. Minutos antes romperam as grades de proteção que há em quase todos os prédios públicos e a fachada do Congresso foi ocupada por bandeiras. A maioria azul e branca, outras brancas e amarelas, homenageando o novo papa.

Lançamos mais uma questão:

– Por que não há polícia? Todas as manifestações são assim, sem repressão?

Só a moça queria falar conosco:

– Sim! Isso é democracia. Aqui todo mundo pode manifestar-se. Com outros presidentes a polícia não permitia, mas agora pode.

Alguns manifestantes começam a regressar, o que significava contornar a praça e passar pela frente da sede das Mães da Praça de Maio. A maioria apenas seguia o seu caminho, mas uns ou outros soltavam palavrões em nossa direção. Um rapaz termina de fechar as portas que restavam abertas, mas havia tempo para mais uma observação:

– Aqui na Argentina todas as manifestações têm as mesmas cores, são todos muito patriotas…

Então, antes de partirmos, a moça nos fulmina:

– Mas nós somos muito mais patriotas do que eles!

Os leitores encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas,
tanto do Brasil como de Portugal.

1 COMENTÁRIO

  1. havia sim movimentos de esquerda nesta marcha, são os oportunistas que dão as mãos à extrema direita em busca de votos. Em geral a extrema esquerda se absteve, assim como nos últimos “Cacerolazos de teflón”. Como estes cacerolazos atuais são 100% puro sangue da classe média porteña, as organizações de base e os sindicatos não constroem e praticamente não participam destas mobilizações, de forma que é mais a esquerda que disputa estes votos a que se fez presente. Já a que disputa o sindicalismo e o voto dos trabalhadores costuma ir nas manifestações puxadas pelas centrais sindicais, que em realidade parecem não terem nada de muito melhor para oferecer como crítica ao atual governo.
    Com relação à bandeira, ela é onipresente na argentina, tudo tem cor da bandeira, elas estão por todos os lados. Neste tipo de cacerolazo elas são de fato o último recurso dos canalhas, pois os poucos cartazes que apareciam pelas ruas eram vergonhosos por exporem a completa falta de unidade crítica ao governo, quando não apenas evidenciando o nível ao qual certos indivíduos chegam em seu ódio pessoal pela atual presidenta. Ao entrevistar 10 manifestantes diferentes se podia ver que eles não tinham a menor idéia do que se estava passando lá, um falando sobre segurança, outro sobre autoritarismo, outro reclamando das aposentadorias, outro querendo poder comprar mais dólares.

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