Por Michele Fernandes Gonçalves

Acho que não poderei fazer a prova porque tem um menino andando de skate encima dela. Precisamos urgentemente resolver esse problema! Agradeço sua compreensão.

Eram esses os escritos da prova de um aluno do segundo ano de um colégio público.

Acima dos escritos, desenhada bem grande por sobre as 10 questões com tema DNA, estava a figura de um menino sobre um skate. O desenho não chegava a ser artístico. Fora composto a caneta, com traço simples, o menino feito de “pauzinhos”. O contexto, entretanto, era pura arte.

Arte por parte de todos ali presentes.

Por parte dos alunos, em não fingir que se importavam com a nota da prova ou com o fato de ela estar em branco, sobre 80% das carteiras ocupadas.

Por parte da professora, em fingir acreditar que os alunos tinham qualquer tipo de condição de responder à prova sobre um assunto tão superficialmente, para não dizer ridiculamente, abordado.

Por parte da diretora, em fingir crer que a mãe do aluno se surpreenderia ao saber de sua criatividade “enviesada”.

Da minha parte, em me portar como espectadora dum filme holywoodiano frente à piada generalizada que se instaura, dia após dia, no sistema educacional brasileiro.

Essa foi a prova mais criativa que eu já vi. A diretora, entretanto, não parece ter interpretado assim.

“Não servirá nem para puxar carroça”, ela gritou, depois de ser chamada pela professora indignada com a astúcia do garoto.

Novamente eu fui artista, para não virar, de repente, terrorista. Pratiquei da minha arte patética do “filtro auricular e mental”, tão aprimorada nos meus muitos anos de graduação.

Internamente, pensei que talvez o autor da prova não fosse mesmo passível de puxar carroça. Pensei que ele poderia, depois de algum desesforço mental, virar diretor de escola. Ou, quem sabe, se se aprimorasse na arte criativa, pudesse ser um grande publicitário e no futuro ser até contratado para fazer o slogan daquela escola e seus grandes méritos no Saresp.

Divagações, patéticas na mesma medida da aula do segundo ano.

Esse foi o mesmo aluno que, não por coincidência, esteve por vinte minutos em pé de frente para a parede num dos cantos da sala, na última prova de biologia. O motivo era simples: por duas vezes pronunciou palavras ao vento, após ter terminado a prova. “Se vocês não sabem se comportar como adultos, serão tratados como crianças”, gritou a diretora naquela ocasião. Três outros alunos também estavam nos outros três cantos da sala, pelo mesmo motivo. E eu, enquanto conjecturava comigo mesma o tipo de entendimento que a diretora tinha sobre os direitos das crianças,  permaneci fisicamente confortável, imóvel sobre a cadeira, nos vinte minutos restantes de aula.

Mas crianças não têm ainda um sarcasmo muito refinado. Nem tampouco escrevem corretamente o português, ou ainda, escrevem com concordância verbal ou coerência discursiva. Não escrevem com a ironia que permeava a prova do aluno do segundo ano.

Confesso que esbocei um sorriso de canto ao ver a prova que a professora fez questão de mostrar, visto que eu ocupava a posição de segunda autoridade máxima da sala, como estagiária. Me senti, ao contrário da professora e da diretora, um pouco menos parte da palhaçada escolar ao detectar que o menino percebeu minha felicidade com sua arte, embora a intenção dele provavelmente tenha sido justamente o contrário de deixar qualquer um feliz.

Senti até um fio de esperança. Não por achar que o aluno estivesse consciente de seu protesto simbólico. Tampouco por achar que os outros 70 e tantos % da sala estivessem protestando silenciosamente ao não preencherem sequer o nome na folha de questões. Mas por ter a certeza de que no picadeiro estavam somente eu, a professora, a diretora e o São Paulo Faz Escola, e de que os alunos não queriam sequer ser os espectadores deste patético espetáculo chamado educação formal brasileira.

Crianças escrevem com inocência. Jovens ou adultos insatisfeitos utilizam-se por vezes da ironia. E aqueles que até a perspectiva da escrita já perderam, apenas continuam escrevendo…
(em veículos de comunicação  nos quais sabem que bem pouco serão lidos) .

Ilustrações: obras de A. R. Penck

4 COMENTÁRIOS

  1. Cara Michele,

    Tenho a mania (defeito) de escrever de sopetão. Eu gostei muito do seu texto. Ele é uma crônica, embora não sei se escrever uma tenha sido sua intenção. E postei alguns vídeos do Youtube como forma de dizer que tem muito assunto para crônica sobre a realidade escolar. Seria bom ler outros mais.

    Eu dou aulas com alunos no Facebook, alunos no Youtube, alunos ouvindo música. Já o fiz com alunos fazendo rinha na sala, dançando rap, cantando sertanejo, debatendo uma infinidade de coisas.

    Hoje, é normal que os alunos estejam fisicamente na sala e mentalmente no mundo, na rede (fica a dica de pesquisa para quem precisa de tema). Tenho um aluno que é um clássico de insucesso escolar. É a terceira vez que leciono para ele e ele não sai do primeiro ano do ensino médio. Mas é um sucesso no Youtube, produz vídeos,é humorista, e uma celebridade local, muito sucesso no relacionamento com pessoas. Sei que ele vai ser novamente reprovado – não por mim que devo ser o único que lhe dá notas e aguento opressão das professoras nos conselhos. Ao mesmo tempo, sei de todo o sucesso de que o menino é capaz.

    As escolas são boas como locais de encontro, pois é bom a socialização, os jovens juntos. Mas como máquinas de ensino funcionam limitadamente. Me parece que a molecada se empenha em pegar aquele básico realmente útil e com o restante fogem para a net ou para outros ambientes psicológicos mais. Mas se viram depois. Desenvolvem capacidades em outros cantos que as permitem sobreviver. A educação sentimental, por exemplo, muito importante para se forjar uma pessoa, passa ao largo do currículo oficial.

    Mas queria pontuar algo. Naquilo que é o grande fracasso de nossa tentativa de ser esquerda – do nosso fracasso moral ao fracasso técnico – salta aos olhos o fracasso no campo educacional. Não tem ninguém na esquerda preocupado com educação pública. Não há um único projeto, nenhum grupo, nenhum movimento significativo como em outras áreas. Há projeto rural, há projeto habitacional, de transporte, cultural, de mídia, mas ninguém tem projeto educacional. Os da esquerda que falam em “educação” falam de salários e sindicatos, coisas de fora. Ninguém fala de sala de aula, como em tua crônica.

    Esse desinteresse pela escola pública deixa marcas até em outros cantos. Num exemplo, Tragtenberg é muito louvado, lido e estudado. Mas todas as pesquisas se limitam ao Tragtenberg professor universitário. Até hoje, ninguém se interessou em estudar a vivência pedagógica do Maurício nas escolas públicas. E aí se cria um mito. Tragtenberg não foi um universitário que escreveu sobre educação. Mas um professor da rede que foi tão bom que pode ensinar na universidade. O que se passou naqueles anos, entre os alunos da rede, onde isso está documentado, estudado?

    Enfim, quando apontamos para a secretaria nada mais fazemos que esconder nossa ausência de projeto. E me parece que nenhum projeto vai surgir enquanto dentro da própria esquerda ser professor da rede básica seja visto como uma derrota pessoal. O professor não encontra espaço na própria esquerda – tente escrever nas revistas várias, tem que ser universitário. Assim, só vai ter projeto empresarial e clerical porque nos debates da esquerda nunca há espaço para quem é do chão de sala.

    Que o seu texto traga mais textos do povo que come giz. Saúde!

  2. Texto interessante e melhor ainda as críticas do Marcos.
    Afinal de contas, o que nós “comedores de giz” – minha principal refeição no ambiente de trabalho – temos de estratégias frente as adversidades??
    Que projeto de esquerda temos na área da educação?
    Se alguém souber favor, compartilhe.
    Estamos precisando.
    E muito.

  3. Parabéns Michele pelo texto.
    O texto consegue inverter a perspectiva da questão educacional. Pois ela é muitas vezes abordada do ponto de vista do profissional da educação. Essa abordagem da questão educacional feita pelo profissional da educação é bastante clara nas disciplinas dos cursos de licenciatura. Há em raros casos citações da parte dos professores nessas disciplinas de que o aluno não é apenas um sujeito passível na relação de ensino e aprendizagem. Mas é um indivíduo ativo nesse processo, que é afetado e também afeta.
    O que quero dizer com isso? Que para os profissionais que estão dentro de sala de aula no ensino regular e para os professores dos cursos de licenciatura o aluno não passa de tabula rasa.
    Logicamente se alguém fizer essa afirmação numa disciplina de um curso de licenciatura é capaz do professor fingir um infarto para discordar do comentador. Mas o que importa não é o fingimento, mas sim como na atuação pratica se é percebido o aluno.
    Essa perspectiva de perceber o aluno como tabula rasa vai incidir no pensamento dos profissionais da educação de que o mal comportamento do aluno é resultado apenas de sua falta de vontade para aprender, ou no jargão educacional “o aluno é preguiçoso”. A preguiça enquanto categoria explicativa. A tomada do termo preguiça como categoria explicativa do comportamento do aluno vai resultar em casos como o do comentário do Marcos, que diga de passagem é muito pontual, e em várias outras distorções.

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