O paradoxo maior, demonstrado por este caso, é que a “sacralidade” da própria ideia de propriedade privada, com a qual este sistema se defende, revela-se contornável consoante a sua eficácia na sustentação da desigualdade. Por Diogo Duarte


Imaginem que durante vinte cinco anos tinham pago, mensalmente, a casa onde habitam. No fim desse período sabiam que, por direito e por determinação contratual, poderiam finalmente dizer que essa casa vos pertencia. Durante esse tempo pagaram o que tinham a pagar e fizeram-no com esforço, muitas vezes com enormes sacrifícios, mas fizeram-no, cumprindo a vossa obrigação sem falhar. No entanto, a dada altura, aparece alguém que diz: sim, pagaram a casa, mas a casa não é vossa. Aparece alguém que vos vem cobrar uma dívida que sabe não ser vossa, alguém que sabe que pagaram a casa e nela vivem o dia-a-dia, alguém que sabe que essa casa é quase tudo o que têm e podem orgulhosamente considerar vosso depois duma vida de trabalho. Alguém que sabe, enfim, estar a cometer uma enorme injustiça ameaçando com um despejo. Se esse “alguém” for constituído, acima de tudo, por Bancos, mas também por um instituto público (uma pequena parte da dívida é reclamada pelo actual Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana), a injustiça torna-se mais evidente.

Esta é a situação que enfrentam mais de trinta famílias, moradoras em dois bairros conhecidos por “bairros dos trabalhadores”, construídos nos anos 80 por uma cooperativa de habitação e situados em Azeitão, perto da cidade de Setúbal, em Portugal. Os gestores da cooperativa a quem os moradores compraram a casa esconderam a dimensão do endividamento da instituição, até esta ter sido empurrada para a insolvência e até ser demasiado tarde para os moradores se protegerem. Apesar de terem as provas de que pagaram a casa e cumpriram a sua parte, faltou-lhes realizar a escritura que garante o reconhecimento de que a casa é sua pertença exclusiva. É com base neste “erro” que os bancos e credores procuram legitimar a sua expropriação.

Enquanto habitações de baixo valor e construídas a custo controlado serviram especialmente para alojar operários e trabalhadores assalariados da região – Azeitão, em particular, é uma zona marcada por grandes assimetrias sociais, pois com estes e outros bairros coexistem as grandes e luxuosas quintas que a tornaram conhecida e lhe deram fama de zona rica. Nos “bairros dos trabalhadores” permanece até hoje uma parte significativa dessa população que habita os seus prédios desde que foram construídos. Mas o tempo passou. Muitos desses habitantes deixaram de trabalhar e são hoje ex-operários e ex-assalariados com reformas baixas e nenhum outro rendimento. Embora se encontrem situações diferentes, entre eles há um grande número de doentes, idosos e viúvos ou viúvas. Juntam-se-lhes as novas gerações que aí nasceram e cresceram e que hoje deparam com a crescente precariedade do trabalho e com as enormes taxas de desemprego. Vivem nesses bairros, em suma, muitas pessoas que não têm recursos para comprar ou arrendar outra casa, pessoas que nunca poderão voltar a trabalhar, pessoas a quem nunca será concedido um empréstimo (porque – são lembradas constantemente – é a crise, porque são velhas, porque não têm dinheiro nem emprego).

É sobre estas famílias que paira a ameaça de despejo: uma ameaça feita da ganância dos bancos e dos credores que viram nesses habitantes a presa mais fácil para satisfazer os seus interesses, escolhendo-os para pagar uma dívida que não contraíram e pela qual não são responsáveis. Não querem saber se estas pessoas ficam a viver na rua, se são doentes ou saudáveis, ricas ou pobres, desde que o seu interesse material seja salvaguardado – um interesse que corresponde a um valor para elas irrisório mas que para estas pessoas representa muito daquilo que construíram ao longo das suas vidas. Aproveitam-se de ambiguidades legais, do desconhecimento das pessoas e da confiança que estas depositaram nas instituições com quem sempre cumpriram a sua parte. Na ânsia de recuperarem e, acima de tudo, de fazer mais uns tostões, culpam-nas duma dívida insuflada pelos juros dos empréstimos e pelas “facilidades” com que os bancos acenaram aos responsáveis para eventualmente pagar a dívida já existente.

Os moradores lutam agora contra o tempo e confrontam-se com as perspectivas limitadas que a Lei lhes oferece. Parente afastado da Justiça, o Direito privilegia o cumprimento da Lei independentemente da adequação desta ao seu propósito; e esta revela-se, assim, perversamente, um fim em si mesmo e não um meio para garantir a Justiça. Apesar de terem pago a casa, a solução que se encontra no horizonte dos moradores para puderem ver os seus direitos reconhecidos é a negociação com os credores sob a ameaça de despejo, o que implicará sempre pagar alguma coisa. Assim, debaixo da aparente neutralidade do sistema jurídico, esconde-se uma luta desigual que se procura contornar com a procura de uma saída que afirma proteger os interesses de ambas as partes. Aquilo que a frieza da lei parece não conseguir alcançar é a inexistência de um meio-termo entre, por um lado, o direito à habitação e à dignidade e, por outro lado, o egoísmo voraz e a avidez de lucro. Não há negociação possível entre quem habita uma casa e aqueles que nela vêem uma mercadoria. Por tudo isto, os moradores destes bairros parecem conscientes de que esta luta se travará, acima de tudo, fora dos tribunais. Negociar aquilo que é parte fundamental das suas vidas é, para além de sórdido, uma derrota.

Não estamos, somente, a falar de mais uma das consequências da “crise”, ainda que a conjuntura agrave a situação destas famílias. Estamos, sim, a falar de algo que deriva duma lógica que se foi hegemonizando nos últimos anos, assente na maximização do interesse individual a qualquer custo, anulando em absoluto qualquer resquício de “sociedade” e entregando a vida humana a um egoísmo desenfreado. É a consequência lógica dum sistema que joga com o mito da igualdade de condições para culpar os mais vulneráveis da sua própria situação. O paradoxo maior, demonstrado por este caso, é que a “sacralidade” da própria ideia de propriedade privada, com a qual este sistema se defende, revela-se contornável consoante a sua eficácia na sustentação da desigualdade. As pessoas têm um contrato, pagaram uma casa, nela viveram a vida inteira e, no entanto, continuam a não ter direito à mesma se a vontade dos bancos e até do Estado assim exigir. A “crise” é, quando muito, um pretexto. Esta não é, portanto, apenas uma luta dos habitantes dos “bairros dos trabalhadores”, mas sim de todos.

NOTA: Não é uma declaração de interesse, pois isto é muito mais do que uma questão particular, mas num destes bairros vivem muitos dos meus amigos de infância, vive a minha mãe e parte da minha família, vivem pessoas que fizeram parte da minha educação. Este foi o sítio onde cresci e vivi durante mais de 25 anos e a que continuo a chamar casa.

Os leitores brasileiros que não entendam certos termos usados em Portugal e os leitores portugueses que não percebam outros termos usados no Brasil
encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas.

8 COMENTÁRIOS

  1. Ricardo, são vários bancos: o Santander (creio que é o maior credor),a CGD e o Montepio. Para além destes credores, há, ainda, o actual IHRU (ex-INH), a que corresponde uma dívida menor e que não me parece que seja o maior problema(é um instituto público e a retórica e as prioridades são diferentes)

  2. Eu, leiga no assunto, pergunto: Se as pessoas pagaram durante 25 anos e o dinheiro não chegou aos bancos, onde é que ficou? Os maus da fita são os bancos que não receberam os pagamentos???

  3. Sendo eu moradara da referida cooperativa e estando eu muito revoltada/ desagradada com o comportamento da Direcção da referida Cooperativa. Toda esta situação é o espelho do nosso pais. Tinhamos um compromisso de palavra mas quando é que nós cumpridores sócios podemos ter um compromisso com pessoas que não têm palavra nem vergonha.
    Vamos lá tinhamos um acordo para pagar as referidas habitações por 30 anos isto na 1ªfase, pagamos sempre a renda habitamos desde 1984 cumprimos em em 1996 refiro 1996, fomos confrontados com a divida ao extinto INH e ao serviço de finanças e a possivel penhora de uma ou mais habitações. Quem conseguiu pagou estamos a falar de valores que em 1996 rondariam os 2.500 contos.
    Será que o dinheiro que nós pagamos nessa altura foi para pagar alguma casa ou para contruir mais.
    Houve um desviar dos caminhos onde se criou “empresas” para construir fases da cooperativa que já não eram a custos controlados e isso sim arruinou os pobres desgraçados que sempre pagaram as casas porque a 3ª fase de Vendas de Azeitão e as de Vila Nogueira, já não tinham este tipo de condições o dinheiro era pedido aos bancos e a divida era saldada com a Cooperativa.
    Os valores de pessoas com contratos de 30 ou 25 anos serão uma gota de água num oceano de desgoverno, onde pensamos estar acima da lei e onde nunca teremos que prestar contas.
    A culpa não é dos bancos, nem dos restantes credores, quanto muito atribuo culpa ao IHRU – que desde 1996 á 17 ANOS que não foi capaz de tratar deste assunto. A culpa é nossa enquanto sócios que entregamos dinheiro sem ter a noção que não tinhamos nada por escrito que alguns por ordem da direcção deixarão de pagar a renda mas a verdade é que não foi feita a escritura. O desconhecimento ou pouco caso desta situação leva a que sejamos enganados pela referida direcção da cooperativa. OS CULPADOS SÃO QUEM DURANTE MAIS DE TRINTA ANOS GOVERNOU A REFERIDA COOPERATIVA TENDO FEITO E DESFEITO A SEU BELO PRAZER. OS DIRIGENTES QUASE TODOS OU TODOS SÃO HABITANTES DE CASAS DA COOPERATIVA MAS JÁ A COMPRARAM, não são parvos. Parvos são quem cumpre.

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