Por Passa Palavra

 

Em Portugal, o período de férias é conhecido por silly season, um termo representativo de algumas notícias e debates acerca de temas e/ou acontecimentos de pouca relevância, que noutra altura do ano nem sequer viriam a público. O conceito é, por isso, útil, na medida em que categoriza qualquer assunto como irrelevante, independentemente do seu cariz. Este artigo parte exatamente de algumas peças de alegada importância duvidosa e que suscitaram pouco ou nenhum debate. O tema convocado é o trabalho, assinalando estas notícias pequenos momentos de um momento total, desenvolvidos à sua medida e imagem, com poucas ou mesmo nenhumas nuances.

1.

Na primeira metade de 2013, menos 195 mil trabalhadores passaram a ter a sua condição laboral regulada por contratos coletivos de trabalho, correspondendo ao valor mais baixo de sempre. A redução, que no espaço de uma década atingiu os 80%, prende-se não só com a diminuição do número de convenções coletivas publicadas mas igualmente com o menor número de portarias de extensão. Herança de um período em que o Estado procurava intervir de forma mais assertiva nas empresas, estes dispositivos garantiam, como o próprio nome indica, a extensão das regalias a trabalhadores não filiados nos sindicatos signatários dessa convenção, assegurando desta forma a igualdade de condições no setor. Impulsionada pela crescente ausência dos sindicatos em empresas cada vez mais pequenas, logo, com um cada vez menor número de trabalhadores – algo já diversas vezes aqui analisado (veja aqui) – a diminuição do número de contratos coletivos apresenta contornos interessantes. De acordo com fonte da União Geral de Trabalhadores, verifica-se agora uma predominância de acordos de empresa e acordos coletivos (celebrados por um grupo de empresas).

No atual contexto de crise económico-social e de aumento da precariedade laboral, este aumento não reflete, na nossa opinião, a reorganização sindical dos trabalhadores dentro das empresas. Como se fosse possível, em plena crise, inverter a tendência centralista de negociações entre empresas e sindicatos! Como tal, esses mesmos acordos de empresa(s) parecem corresponder, na sua maioria, aos poucos bastiões operários que restam aos sindicatos, não sendo de excluir fenómenos mais oportunistas. A resposta ao unilateralismo decisório do capital poderá ser realizada mediante a atenuação das reivindicações ou da sua parcialização, em benefício de uns tantos trabalhadores à custa da maioria. Este processo negocial, agora descentralizado, não deixaria de refletir as debilidades de quem, formalmente, representa os trabalhadores, ou seja, a possibilidade de alcançar, em sede de negociação, soluções de compromisso menos favoráveis para a generalidade dos trabalhadores.

2.

A 1 de Setembro deste ano entrou em vigor a lei n.º 63/2013, também designada como lei de combate aos recibos verdes. Esta fórmula contratual, teoricamente destinada ao enquadramento da atividade de empresários em nome individual, tem sido amplamente (e ilegalmente) aplicada nas empresas. O seu objetivo é duplo: por um lado, a diminuição dos custos de trabalho, uma vez que a «empresários» não se pagam subsídios de férias, alimentação ou férias; por outro, a inexistência de quaisquer entraves ao despedimento, o que coloca o trabalhador sob a constante pressão de superar os objetivos de produção ou sob uma política de tolerância zero em relação a faltas, horários ou, como é óbvio, reivindicações salariais (por mais tímidas que sejam). Fruto de uma proposta cidadã à Assembleia da República, esta nova lei prevê que, perante a deteção pela Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) de falsos recibos verdes, seja concedido um prazo de 10 dias à entidade empregadora no sentido de regularizar a situação, celebrando-se o contrato de trabalho. Para tal, não é necessária a intervenção do trabalhador, podendo o processo ser iniciado pelas autoridades competentes.

As vantagens acrescentadas por este diploma legislativo não devem merecer qualquer sentimento de indiferença. Contudo, tampouco devem suscitar clamores eufóricos de vitória. Por coincidência, ou nem por isso, o atual governo aprovou a renovação extraordinária dos contratos a prazo dias antes da entrada em vigor desta lei de combate aos recibos verdes. Deste modo, procede-se ao alargamento de 3 para 4 anos da duração máxima dos contratos a prazo, eles próprios sujeitos a renovações. Embora se mantenha o prazo de Dezembro de 2016, caso esta renovação venha a perder o seu cariz excecional será possível a um trabalhador manter este estatuto por mais de uma década. Além deste, são inúmeros os malabarismos contratuais alternativos ao recibo-verde: dos contratos semanais das empresas de trabalho temporário ao estágio não remunerado. A última novidade é o «convite» à constituição de empresas por parte dos trabalhadores, uma estratégia que, no fundo, pouco difere da consignada pelos falsos recibos verdes: a relação laboral passa a ser contratualizada com uma suposta empresa, assumindo ela todos os custos e responsabilidades. Existe uma tendência, no seio da esquerda, de se encarar a lei como o meio por excelência de combate. Embora não se possam simplesmente excluir as medidas legislativas dos combates a realizar, calcular todo o esforço estratégico em sua função é uma aposta perdida. Por cada medida legislativa que beneficia os trabalhadores, existem outras 30 a prejudicá-lo. Deste modo, importa recuar para que se possa avançar. O ativismo preocupado em arranjar assinaturas em prol de grandes medidas propende, por vezes, a esquecer os espaços onde se percorre o quotidiano: a escola, a universidade, a empresa, o bairro.

3.

O período compreendido entre Abril e Junho deste ano ficou marcado pela evolução positiva do número de empregados em relação ao verificado no trimestre anterior. Porém, das mais de 72 mil pessoas que arranjaram emprego, mais de metade (46 000) conseguiu-o na agricultura, sendo que 6 000, o segundo valor mais alto, foram contratados pela indústria da hotelaria. Dada a sazonalidade do trabalho e as parcas qualificações exigidas, os salários pagos aos novos empregados é bastante baixo, constatando-se neste período um aumento de 5,2% (correspondentes a cerca de 8 000 casos) dos salários inferiores a 310 euros.

Conclusões provisórias

O aumento do desemprego e da precaridade laboral, a crescente debilidade dos sindicatos sem que o seu espaço de influência seja colmatado por outras organizações de trabalhadores, ou o crescimento do emprego na agricultura e na hotelaria não podem ser meramente encarados como episódios conjunturais. Aos poucos, surge em cima da mesa a hipótese, cada vez mais credível, de uma divisão da sociedade em três grandes estratos sociais: i) no topo da pirâmide, uma pequena camada de gestores híper-qualificados, munidos dos diversos MBAs em gestão e economia pagos a peso de ouro, e de médios e grandes empresários, cuja rentabilidade advém da perpetuação das políticas de austeridade; ii) na base, uma grande camada de desempregados, trabalhadores sazonais (não apenas, e cada vez menos, imigrantes) ou empregados de uma economia informal; iii) entre os dois, uma camada intermédia, de olhos no topo mas socialmente próximo da base.

Referimo-nos a uma suposta classe média (categoria que, se no passado teve pouco sentido, hoje perdeu-o por completo) precária e endividada, com o ensino secundário e/ou com a licenciatura de três anos, graus de ensino que, atualmente, sofrem pressões no sentido de uma crescente especialização profissional. Na área dos call-centers, a título de exemplo, as condições oferecidas – níveis de qualificação adequados, conhecimentos de línguas, baixos salários e uma boa rede de infraestruturas tecnológicas – e o crescente interesse de algumas empresas transnacionais (Fujitsu, Xerox, Microsoft, Philips, BNP Paribas) fazem com que alguns CEOs da área não tenham pudor em reivindicar licenciaturas em operadores de call-center. Uma proposta que, tendo em conta a situação financeira das universidades públicas, apenas necessita de ser apresentada com o respetivo caderno de encargos.

Uma eventual saída do euro – e da União Europeia, refira-se – apenas tornaria este cenário mais evidente. A desvalorização da moeda, essa receita quase «milenar» do Fundo Monetário Internacional, e os demais critérios incentivadores do investimento são medidas que parecem corresponder aos ensejos dos negócios analisados. A alternativa para quem trabalha parece assim desenhar-se pela austeridade: ou o baixo salário por cada vez mais horas ou o «salto» – sem as benesses de mobilidade garantidas pelo Espaço Schengen.

Em Portugal, as perspetivas do futuro não conseguem ir mais longe do que a repetição de um passado que nunca foi suficientemente longínquo.

Os leitores brasileiros que não entendam certas expressões usadas em Portugal
e os leitores portugueses que não compreendam expressões empregues no Brasil
dispõem aqui de um glossário de gíria e termos idiomáticos.

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