Por Passa Palavra

1.

Como referimos várias vezes e em diversos textos, menosprezar a capacidade de organização da classe dos gestores só serve para manter os trabalhadores desorganizados e incapazes de compreender que a classe dominante é uma classe profundamente coesa e realista nos seus propósitos de expandir as relações capitalistas. Para além das tiradas moralistas sobre a ganância e a cupidez da banca e para além das tiradas ridículas sobre a finança como um agregado de novos senhores feudais, importa perceber que a esfera financeira é, acima de tudo, um campo de regulação do risco dos investimentos capitalistas. Daí que, para os capitalistas europeus, a união bancária seja o passo institucional mais premente.

O plano de uma união bancária vai incluir três pilares: 1) um Mecanismo Único de Supervisão (SSM em inglês); 2) um Mecanismo Único de Resolução (SRM em inglês); 3) um esquema de garantia de depósitos (DGS em inglês). O primeiro pilar já está a ser implementado e «deverá estar completamente operacional daqui a um ano». De acordo com Erkki Liikanen, governador do Banco da Finlândia, um dos principais objectivos da união bancária é o de «separar a garantia dos depósitos das actividades financeiras de grande risco». A este propósito, a experiência recente de Chipre, onde os depósitos acima de um determinado montante foram obrigados a pagar um imposto, poderá, afinal, estar na base do SRM. Isso significa que, aparentemente, a resposta que os capitalistas pretendem dar a situações de incumprimento ou de insolvência bancária passará do bail-out para o que chamam de bail-in. A diferença é considerável. No caso do bail-out, o Estado arcava com os activos desvalorizados dos bancos, o que fez explodir as dívidas públicas em quase toda a Europa. Por exemplo, a intervenção do Estado irlandês para salvar a banca cifrou-se no número astronómico de 450 mil milhões [bilhões para os brasileiros] de euros, o que, em termos absolutos, praticamente quadruplicou a sua dívida pública. Se este tipo de operações evitou, no imediato, o colapso do sistema bancário, a verdade é que as operações de bail-out aprofundaram o vínculo entre o soberano (o Estado) e a banca.

Com o risco de falência de Estados periféricos (Portugal, Espanha, Itália e Grécia à cabeça), o contágio à banca e, por conseguinte, a toda a economia surgiu como o mais perigoso efeito das respostas iniciais dos capitalistas à crise económica. Nesse sentido, o ensaio cipriota aparenta ter funcionado como um laboratório da nova política bancária europeia: o bail-in. Assegurando uma parte dos depósitos (no caso cipriota, depósitos abaixo de 20 mil euros), o bail-in opera por via da taxação de um imposto acima de um determinado montante, de modo a que o banco se refinancie pelos seus depositantes e pelos seus investidores. Desvinculando a banca do soberano, o objectivo é evitar que a falência de um banco contagie outras instituições e lance o pânico nos mercados financeiros. Ao mesmo tempo, a tese de que os títulos da dívida pública eram isentos de risco foi totalmente posta em causa, na medida em que o risco de insolvência de Estados da zona euro contém um potencial implosivo da própria moeda europeia. A acrescentar a isto, o efeito do bail-out é tal que as contas públicas desses Estados demoram anos a equilibrar-se, além do impacto recessivo que ficou por demais comprovado.

2.

De acordo com Christian Noyer, governador do Banco de França e chairman da Administração de Directores do Banco de Pagamentos Internacionais (Bank for International Settlements, BIS), existem três motivos principais para que os capitalistas tomem a união bancária como o passo seguinte para o aprofundamento da união monetária.

Em primeiro lugar, e como afirmamos anteriormente, a união bancária «quebra a ligação entre os bancos e os soberanos, ao trazer a supervisão bancária e a gestão da crise para o nível federal. Com a união bancária, os bancos serão considerados como instituições da área do euro», portanto, «acima e para além da sua nacionalidade; isso assegurará que as condições de crédito na zona euro não vão depender de onde se está, mas com quem se está, que é o que deve ser esperado de um mercado financeiro eficiente».

Em segundo lugar, a união bancária permitirá uma «reintegração do sistema bancário europeu. Uma supervisão supranacional está melhor colocada para lidar com os riscos das actividades transfronteiriças e, dessa forma, proteger e encorajar tais actividades», fundamentais para a expansão transnacional dos investimentos produtivos.

E, por último, em termos da política de estabilização de preços, o enquadramento europeu sobre o conjunto da banca permite a transmissão uniforme dos mecanismos da política monetária do Banco Central Europeu (BCE). Sabendo que «três quartos do financiamento da economia da zona euro consistem em empréstimos bancários», «uma união bancária pode restaurar uma dimensão federal da política monetária».

Repare-se na repetição reiterada de termos como “supranacional” ou “federal” no discurso dos gestores. Percebe-se como existe um evidente desfasamento entre as práticas e as propostas da classe dos gestores de integrar aspectos transnacionais na política económica europeia, e a gritaria da esquerda de que Portugal sairá do euro, seja pelo seu próprio pé ou pela dissolução iminente da zona euro.

Por outro lado, por razões históricas, a esquerda está habituada a redigir inúmeros documentos programáticos e a fazer deles meros horizontes utópicos de lutas futuras. Mas se a esquerda procede dessa maneira, os gestores capitalistas caracterizam-se por proceder de modo radicalmente oposto. De facto, os documentos que chegam ao conhecimento público apontam sempre para objectivos precisos e concretos. Naturalmente ocorrem ajustamentos, mas o fundamental está plasmado nos seus documentos. A utopia é sempre reduzida a frases de circunstância sobre o bem-estar dos cidadãos, e o realismo pragmático surge como a nota dominante. Entre uma classe que não sabe que fazer e uma classe que sabe o que faz e o que tem de fazer, vence sempre a segunda. Nesse sentido, o Relatório dos Quatro Presidentes (da Comissão Europeia, do Conselho Europeu, do BCE e do Eurogrupo) deve ser interpretado como parte substantiva dos propósitos reais da tecnocracia europeia.

Assim, a perspectiva gradual de constituição de uma união bancária; de uma união fiscal, com «uma estrutura orçamental integrada»; de uma união económica, com «uma estrutura integrada de política económica»; e de uma união política aprofundada é concebida como inevitável pela classe dominante.

3.

Com efeito, a tomada de consciência dos propósitos concretos dos capitalistas não é, de modo nenhum, uma concordância política com o projecto europeu dos capitalistas. O que está em causa, e esse é o maior objectivo deste artigo, é perceber que o nacionalismo económico não é mais uma possibilidade prática no mundo contemporâneo. De modo totalmente oposto, do ponto de vista económico, a transnacionalização do capital não é apenas um dado que interessa aos capitalistas. O facto é que o rearranjo das escalas de actuação dos gestores implica que a esquerda só tem duas alternativas possíveis. Ou faz como até aqui e pensa que pode voltar a um contexto fordista e pré-fordista em que a condução da política económica era executada fundamentalmente pelos Estados nacionais. Ou, de outra forma, perspectiva a transnacionalização das reivindicações, das lutas e das organizações como modo de se opor à transnacionalização do capital. Esta última via não apenas prossegue o património histórico da dimensão internacional das grandes vagas de lutas sociais do século passado (nomeadamente 1916-21 e 1965-80), como também é a única que busca colocar os interesses transversais dos trabalhadores num mesmo plano classista de reivindicação, despindo-os da ganga nacionalista que tem separado os trabalhadores por nações.

4.

Antes de voltarmos à discussão do projecto de integração bancária europeia dos gestores, queremos lembrar um aspecto determinante no comportamento da classe dominante. Não nos parece aleatório que Yves Mersch, membro da Direcção Executiva do Banco Central Europeu, comece um discurso com o resgate da seguinte frase de Jean Monnet, que foi, com Robert Schuman, o principal obreiro da actual União Europeia: «a Europa será forjada nas crises, e ela será a soma das soluções para essas crises».

Esta frase assenta em dois grandes pressupostos. Por um lado, a crise económica raramente é equivalente a uma crise da organização institucional das estruturas capitalistas. Isso significa que, para os capitalistas, uma crise económica não é um momento em que o capitalismo pode claudicar. De modo inverso, as crises económicas surgem como uma conjuntura onde aspectos da articulação institucional têm de ser revistos, aprimorados ou aprofundados. No caso concreto da actual conjuntura europeia, isso significa que a crise económica não corresponde em nada à visão demagógica e voluntarista de que os capitalistas estariam em pânico e de que o “sistema estaria ligado à máquina” (ver aqui e aqui). Aliás, não deixa de ser bizarro que o primeiro pilar da união bancária (o SSM) já esteja na sua fase final e a esquerda continue a actuar como se nada se tivesse passado.

Por outro lado, a mencionada frase de Jean Monnet sintetiza a articulação entre perspectivas de diferentes sectores dos tecnocratas. O que Monnet chamou de «soma das soluções» é, na realidade, a capacidade de os capitalistas irem avançando sempre através de consensos internos estáveis e aceites. Como se pode verificar por este artigo, os capitalistas caminham passo a passo, convertendo as crises em base para a construção seguinte, e assim sucessivamente. Esta forma de actuar permite criar uma coesão interna a uma classe social que se sobrepõe aos múltiplos interesses particulares dos diferentes Estados, sectores de actividade e empresas em competição nos mercados. Neste quadro, as instituições relacionadas com a definição da política monetária e da supervisão da actividade financeira e bancária devem ser vistas não como decorrências especulativas mas como esferas que buscam introduzir estabilidade, previsibilidade e coerência nos mercados. Nada disto retira a possibilidade de deflagração de novas crises no futuro. Mas este tipo de procedimentos têm dado o conforto suficiente para que uma publicação dos gestores como The Economist venha afirmar assertivamente que «não deverão ocorrer novas catástrofes do tamanho» das do «Lehman Brothers no futuro mais próximo». As crises económicas são inerentes ao modo de funcionamento do capitalismo. E os gestores sabem disso. Para a classe dominante trata-se apenas de evitar demasiados danos e de evitar que estes abrandem os desenvolvimentos económicos futuros.

5.

Nesse âmbito, a união bancária europeia dirigida pelo BCE «vai supervisionar directamente aproximadamente 130 bancos» europeus. Esses serão «menos de 5% de todos os bancos activos na zona euro […]. Contudo, eles cobrem à volta de 85% do total de activos bancários». Os grandes bancos escolhidos representam entidades com activos avaliados em mais de 30 biliões de euros, ou com mais de 5 biliões de euros mas que representem mais de 20% do Produto Interno Bruto (PIB) doméstico. A união bancária irá também contemplar a supervisão directa de qualquer outro banco pelo BCE, se este considerar necessário. Para os bancos centrais nacionais fica a supervisão dos restantes 6 mil bancos. Todavia, a supervisão nacional aos bancos mais pequenos obedece aos regulamentos do BCE e este tem acesso aos dados de todos os bancos da zona euro.

De acordo com Yves Mersch, o BCE «está perante um enorme desafio logístico. Existe um vasto trabalho preparatório que terá de estar concluído 12 meses após a regulação estar aplicável, incluindo: seleccionar pessoal altamente qualificado; estabelecer a lista final dos bancos significativos a serem directamente supervisionados pelo BCE; harmonizar as abordagens de supervisão; mapear o sistema bancário da zona euro; desenvolver um manual da supervisão e publicar uma moldura regulamentar após seis meses de consulta pública». O que Mersch invoca como um enorme desafio logístico já está «completo em cerca de 90%». Longe da berraria da esquerda e dos grupos aspirantes a vanguardas de povos nacionais, os capitalistas consolidam o seu poder e constroem as instituições de uma nova fase de expansão económica.

Um aspecto que os gestores consideram de grande relevância na presente conjuntura tem a ver com o objectivo de terminar «com o apoio a bancos insolventes através da liquidez do Banco Central [o BCE]», o que poderia levar à proliferação dos chamados bancos zombies. Nas palavras do gestor que temos vindo a seguir, tal procedimento, a reiterar-se continuamente, «enfraqueceria a credibilidade da supervisão bancária e, portanto, da união bancária como um todo». As declarações de Mersch são valiosas e demonstram até que ponto o capitalismo moderno não se compadece com as visões do burguês obeso, de cartola e de charuto.

De facto, o centro da classe capitalista encontra-se nos gestores e, neste ponto, os que se situam nos organismos de direcção dos bancos centrais. A visão do BCE é muito clara sobre o comportamento dos vários bancos. Quebrando o nexo entre a banca e os soberanos, o BCE e o BIS procuram modular a actividade de cada entidade bancária às necessidades de expansão geral do sistema económico. Repare-se que não se trata, de modo nenhum, de uma definição da política de administração de cada banco e de cada empresa a partir dos organismos centrais de regulação. O objectivo destes organismos é, do que transparece para o exterior, colmatar ao máximo os desvios particularistas de determinados agentes que, por via de fraudes ou especulações-sombra, possam criar problemas de sustentabilidade ao conjunto do sistema financeiro. Ao mesmo tempo, a actuação da supervisão bancária europeia endereçar-se-á para um objectivo menos velado mas por nós já sublinhado logo no início do artigo: a supervisão da emissão descontrolada de instrumentos monetários pelos intermediários financeiros. Por conseguinte, a linha do BCE não é contrária à actuação da generalidade dos bancos mas expressa a necessidade de controlar mais eficazmente as tendências centrífugas do sistema financeiro. O aviso está dado: «os accionistas e os credores serão os primeiros a lidar com os custos da resolução» de uma eventual insolvência. «Só se isto for insuficiente é que a indústria bancária como um todo agirá», pelo que a reposição de rácios de capital nos balanços dos bancos terá de «assegurar uma capacidade de absorção de perdas» e de «preencher um requisito mínimo de fundos próprios e de obrigações elegíveis a um bail-in».

Este discurso de Yves Mersch a 30 de Setembro passado não poderia ser mais claro sobre as novas orientações do BCE no âmbito da integração financeira europeia.

A série A estratégia dos gestores é formada pelos seguintes artigos:

1) Crise económica europeia e instituições de regulação
2) As palavras e as acções dos gestores europeus
3) E o Bundesbank?
4) Dois discursos de Mario Draghi
5) A federalização, a esquerda e os capitalistas

1 COMENTÁRIO

  1. Caros integrantes do Passa Palavra,
    Assim como o leitor Marcelo Lopes, gostaria de felicitá-los por essa série de artigos.
    Também venho refletindo sobre a intolerância à política econômica que muitos críticos do capitalismo possuem. Parece-me que negar a linguagem em que os capitalistas se expressam enfraquece a própria crítica.
    Seguindo a trilha da reflexão sobre a política econômica, eu poderia levar nossa discussão para o ensino de economia existente nas universidades. E ao pensar sobre tal ensino, arrisco a dizer que instituições de ensino e graduandos também não estão preocupados com a teoria e a política econômica. Mas não consigo desenvolver este assunto nas poucas linhas deste comentário.
    Por fim, conclusões finais eu não possuo, apenas passo a palavra e aguardo os próximos artigos.
    Ignácio Leão

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