Por Passa Palavra

1.

Neste quarto artigo abordamos dois importantes discursos de Mario Draghi sobre a via federalizadora na Europa. Ambos os discursos foram proferidos no espaço de dois dias, aquando da visita do chefe máximo do Banco Central Europeu (BCE) aos Estados Unidos. O primeiro discurso ocorreu no dia 9 de Outubro na Universidade de Harvard.

O tom de Draghi é o de alguém profundamente optimista sobre o futuro da zona monetária europeia. De um modo escorreito o presidente do BCE expõe a visão da classe dos gestores sobre o caminho federalizador a ser tomada no conjunto da União Europeia. Como porta-voz dos tecnocratas que dirigem as instituições europeias, Mario Draghi afima que «novas regras e instituições estão a ser criadas, que vão mudar a relação entre a União e os Estados membros».

Tal como Jens Weidemann, presidente do Bundesbank, referido no artigo anterior, Draghi considera que o grau de nacionalismo ainda se faz sentir no seio de grande parte da população europeia, fenómeno que comporta alguma inércia na evolução da união económica e monetária. «O preâmbulo do Tratado Europeu faz de uma “união cada vez mais estreita” o objectivo da União Europeia. Para algumas pessoas, isto cria ansiedade. Parece prometer um movimento inexorável rumo a um futuro super-Estado. Muitos europeus, com diferentes histórias e culturas nacionais, sentem que não estão preparados para tal».

Nesse sentido, Draghi e o conjunto dos gestores de topo consideram que a União Europeia não é apenas uma zona económica de comércio livre mas um mercado único. «Uma área de comércio livre é um acordo parcial e reversível. Em contraste, um mercado único é uma união universal e permanente». Esta afirmação é particularmente clara e demonstra que os capitalistas não estão orientados para abdicar do processo de integração europeia. De facto, só a esquerda é que recorre a esse falso argumento de modo a justificar a sua intenção nacionalista de conduzir os processos políticos europeus para soluções miserabilistas.

Draghi vai ainda mais longe na assunção da via federalista a tomar na União Europeia. «Enquanto uma área de comércio livre pode ser gerida através da cooperação intergovernamental, um mercado único requer uma organização supranacional». A escolha dos Estados Unidos para proferir este discurso não deve ser vista de modo displicente. De facto, as constantes comparações entre a União Europeia e os Estados Unidos demonstram que o modelo norte-americano está presente na mente dos gestores europeus. «Como se sabe, aquela frase da Constituição dos Estados Unidos, que dá ao Congresso o “poder para regular o comércio […] entre os vários estados”, forma a base de um corpo considerável de legislação federal de administração dos assuntos económicos».

Assumido o modelo e o objectivo de médio-longo prazo, torna-se possível estabelecer o desafio geral presente no conjunto da União Europeia: «a questão mais difícil na Europa tem a ver com o grau de poderes que devem ser transferidos para o nível supranacional que sustém o mercado único». E em termos mais concretos, isso significa que o «BCE tem defendido há muito tempo a mudança de regras mais efectivas para o domínio fiscal. Estamos convencidos de que elas são cruciais para a estabilidade da moeda comum a longo prazo». Uma dessas regras tem a ver com a passagem do controlo «para inspeccionar os orçamentos nacionais» para a alçada da Comissão Europeia, «antes de irem para os parlamentos nacionais». Uma alteração deste tipo reforça o poder da tecnocracia europeia sobre sectores dos Estados nacionais. Estes últimos incluem tanto franjas minoritárias das elites do aparelho de Estado, como as organizações parlamentares e sindicais da esquerda. Como não poderia a esquerda partidária e sindical ser contra a federalização, se o Estado nacional é o seu único sustentáculo financeiro e o único espaço onde vaidades pessoais e ambições de liderança da nação portuguesa podem encontrar vazão?

2.

O facto de Draghi ter discursado nos Estados Unidos não tem apenas uma simbologia de via única. Quer dizer, não se trata apenas de resgatar aspectos federais para a construção europeia mas também de atirar à cara de académicos como Paul Krugman ou Joseph Stiglitz que o poder dos gestores europeus tem uma base institucional própria. Neste ponto não deixa de ser desconcertante como um alto quadro da tecnocracia não se coíbe em adoptar um tom triunfalista, assumindo frontalmente as divergências com prémios Nobéis da Economia que, no passado recente, foram conselheiros de Bill Clinton. «Muitos comentadores deste lado do Atlântico olharam para a zona euro e estavam convencidos de que esta iria falhar […]. Eles estavam errados […] e viram erradamente o euro como um regime de paridade fixa, quando, de facto, ela é uma moeda única irreversível. E é irreversível porque nasceu do compromisso das nações europeias para com uma maior integração».

Draghi assume aqui o primado do pragmatismo e da condução de políticas económicas concretas, que funcionam para a reprodução da lógica capitalista, sobre as elucubrações académicas e formais que tendem a confiar em modelos passados para responder a novos desafios económicos. Esta é uma das grandes diferenças entre a condução das políticas pelos gestores tecnocratas e os académicos que as esquerdas europeias veneram. Enquanto os primeiros actuam na base de princípios práticos e pragmáticos, a esquerda e os académicos de esquerda actuam na base de princípios moralistas e na base da replicação de modelos económicos próximos do keynesianismo. Ora, não só o que veio a chamar-se de keynesianismo foi uma das múltiplas respostas das classes dominantes à Grande Depressão, como foi uma resposta circunstanciada a um problema específico da evolução da economia capitalista dos anos 30. Por conseguinte, para a esquerda que ainda se reclama do anticapitalismo, a compreensão das acções e das palavras dos tecnocratas tem a vantagem considerável de ajudar a perceber a evolução próxima do capitalismo. A actuação dos tecnocratas revela uma parte não negligenciável da evolução real do capitalismo. No extremo oposto, os intelectuais e os economistas-modelo da esquerda servem apenas para dar palpites. Como os próprios tecnocratas assumem, e ainda se dão ao luxo de os menosprezar chamando-lhes «comentadores», os economistas que têm servido de inspiração a grande parte da esquerda estão para a economia como os astrólogos estão para a astronomia.

3.

No segundo discurso proferido nos Estados Unidos, Mario Draghi orienta-se mais para temas económicos e prossegue o raciocínio dos seus pares europeus. Dentro deste quadro, destaque-se a orientação defendida pelo BCE no sentido de retirar poderes aos Estados nacionais, nomeadamente os poderes de política macroeconómica, fiscal e orçamental que levaram economias periférias a fortes desequilíbrios orçamentais, a um endividamento massivo (o endividamento total de empresas, famílias e do Estado em Portugal ultrapassa 400% do PIB) e a um desprezo por políticas económicas que incentivassem o desenvolvimento dos mecanismos da mais-valia relativa.

As palavras do presidente do BCE a este respeito são muito directas e elucidativas: «uma lição dolorosa dos últimos anos é que todos nós subestimamos o potencial destrutivo que as políticas nacionais míopes podem exercer no corpo colectivo da zona euro e na economia mundial como um todo». Mais uma vez, as avaliações dos tecnocratas são muito mais objectivas e importantes de apreender do que as dos economistas da moda. Enquanto estes últimos se dedicaram recentemente a advogar o fim da zona euro e a fomentar o recrudescimento do nacionalismo anti-alemão, os capitalistas no comando têm plena consciência dos efeitos profundos a nível internacional que a saída de uma pequena economia europeia poderia ter sobre o conjunto da economia mundial. Nesse sentido, os capitalistas consideram que «é tempo de remover as limitações institucionais que permitiram que desequilíbrios inflassem nas economias nacionais e se tivessem tornado em ameaças sistémicas». Escusado será dizer que se Mario Draghi se preocupa com os riscos que um colapso da zona euro traria para os triliões de euros que os capitalistas investem diariamente, do nosso ponto de vista um colapso económico nunca equivale a uma conjuntura de ascenso das lutas sociais dos trabalhadores. Enganam-se redondamente aqueles que vêem nas crises económicas momentos propícios ao acolhimento de propostas emancipatórias junto da maioria dos trabalhadores. Perante uma classe trabalhadora fragmentada nacionalmente e totalmente desorganizada nos locais de trabalho, e perante um colapso económico, quem arcaria com os custos económicos em cima seriam os trabalhadores.

4.

Isto leva-nos a outro ponto de discussão. Os debates à esquerda sobre a crise tendem a centrar-se no sucesso económico em geral e nos efeitos da austeridade na destruição da economia. Mas, de facto, não existe um sucesso económico em geral nem uma economia nacional e una. A economia é um espaço social onde distintas funções são controladas por diferentes classes. Por conseguinte, os resultados para uns diferem invariavelmente dos resultados para outros. Nos períodos recessivos o sucesso das medidas de destruição de valor e de reajustamento são aferidas de modo distinto pelos capitalistas. Onde os economistas adoradores da cartilha de Krugman e Stiglitz vêem na austeridade o fenecimento da economia, os capitalistas perspectivam as fases de recessão como momentos de reorganização institucional e económica. Por outro lado, como os capitalistas só desenvolvem determinadas políticas na medida em que estas possam ajudar a reorganizar a próxima fase do ciclo económico, não admira que eles vejam determinados resultados económicos como medida do seu sucesso.

Inversamente, os economistas da esquerda pensam que as medidas de controlo dos estragos causados pelas crises são as mesmas que se aplicariam em situações de crescimento económico: aumento do investimento público, ausência de limite para a emissão de massa monetária para financiar os défices estatais, inflação acima dos 3%, etc. Por isso é que os capitalistas menosprezam esta esquerda. Como esta esquerda se limita a raciocinar dentro do capitalismo, e portanto não serve de nada para mudar o que quer que seja, também os capitalistas não precisam desta esquerda, pois em momentos de crise não são necessários maus candidatos a gestores, que só servem para defender medidas económicas suicidas.

Só tendo isto em consideração é que se percebe como os capitalistas já vão vendo resultados positivos na actual conjuntura. Para Mario Draghi, a zona euro atingirá um pequeno excedente no final deste ano, lembrando a discrepância relativamente aos «défices primários dos EUA e do Japão» que, em 2012, se cifraram em «6 e 8%, respectivamente».

Do nosso ponto de vista, a discussão em termos dos indicadores económicos deve fundamentar-se na análise de acordo com as classes sociais e não em torno de temas vagos como a economia nacional ou a destruição da economia. Assim, em vez de procurar falar claro aos trabalhadores e dizer que o ajustamento dos défices públicos é feito à custa da compressão dos seus salários e dos seus empregos, a generalidade da esquerda acumula ódios nacionais (geralmente anti-alemães) e discorre sobre a economia que se afunda. Pelo contrário, quem se afundam são as condições de vida da esmagadora maioria dos trabalhadores, enquanto a economia capitalista se vai reorganizando. As palavras e as acções da classe dominante atestam isso mesmo. Quando a esquerda clama contra a destruição do país e da economia nacional não está a fazer mais do que confundir os termos da equação. Não é a pátria que está em perigo, são os trabalhadores que, por toda a Europa fora, estão a sofrer as consequências da austeridade. De que interessa fazer política pela salvação do país e da economia nacional se isso só serve para acentuar as divisões entre trabalhadores? É neste papel de fragmentação ideológica dos trabalhadores que a esquerda nacionalista e burocrática encontra a sua razão de ser dentro do capitalismo transnacional.

A série A estratégia dos gestores é formada pelos seguintes artigos:

1) Crise económica europeia e instituições de regulação
2) As palavras e as acções dos gestores europeus
3) E o Bundesbank?
4) Dois discursos de Mario Draghi
5) A federalização, a esquerda e os capitalistas

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