Por Passa Palavra
1.
A crise económica que se manifesta desde 2009 na Europa teve origem num conjunto de vários factores, entre os quais, problemas na expansão da produtividade no mundo ocidental e na regulação dos mercados financeiros. Sobre as dificuldades de expansão dos mecanismos da mais-valia relativa, os capitalistas têm tratado de rejeitar as teses de que a actual crise apenas derivaria de aspectos monetários e financeiros. Como afirma Erkki Liikanen, Governador do Banco da Finlândia e responsável pela comissão que desenhou a arquitectura da futura união bancária europeia, «no último fim-de-semana em Basileia, onde os governadores dos Bancos Centrais se reuniram no BIS [Bank for International Settlements, Banco de Pagamentos Internacionais], foi notado que tanto a tendência como o crescimento da produtividade começaram a abrandar antes da crise. Assim, a crise financeira aprofundou o abrandamento económico, mas não foi a única causa». E o mesmo alto quadro da tecnocracia europeia acrescenta: «a rigidez nos mercados de produtos e de trabalho vão de mão dada com uma produtividade e um emprego mais reduzidos».
De facto, os capitalistas têm plena consciência dos desafios económicos, financeiros e políticos que estão em cima da mesa na actual conjuntura europeia. Pelo contrário, a esquerda e a classe trabalhadora não têm tido consciência clara da substância da crise económica. A recorrente recusa em pensar a integração dos mercados financeiros no seio da economia capitalista só existe no plano ideológico e ilusório da esquerda. No caso dos capitalistas, a situação não podia ser diferente. E, no quadro dos conflitos sociais, quem percebe de onde vieram e para onde vão as coisas tem logo uma imensa vantagem política. O que o voluntarismo da esquerda chama de teoricismo é, inversamente, o pragmatismo da classe dominante a tomar as rédeas do processo económico. As palavras de Liikanen reflectem o pensamento comum dos capitalistas na actual encruzilhada europeia: o relançamento da actividade económica na Europa vai depender da articulação entre mecanismos da mais-valia absoluta (expressa na precarização da força de trabalho e nas críticas dos capitalistas ao que chamam de rigidez no mercado de trabalho) e da mais-valia relativa (a necessidade de aumentar a produtividade do trabalho). A enquadrar tudo isto encontra-se o objectivo de regular aspectos dos mercados financeiros.
2.
Mas se grande parte dos problemas associados à actual conjuntura de crise económica se encontra ao nível dos mecanismos da produtividade, também não é menos verdade que existe uma dimensão financeira associada. De facto, a explosão no fornecimento de meios de pagamento e o crescimento colossal na oferta de moeda, nomeadamente com a criação de dinheiro escritural a partir das entidades bancárias privadas e não tanto das moedas nacionais emitidas pelos bancos centrais, é um factor relevante a ter em conta.
«Como a história mostra e como Kaldor não deixou de recordar, se a emissão oficial de M [massa monetária, a quantidade de dinheiro em circulação] diminuir mais do que a economia pode suportar, surgem formas pecuniárias devidas à iniciativa dos particulares. Em circunstâncias normais, e exceptuando os casos extremos de guerras e catástrofes naturais, a população comum não gera nem põe em circulação substitutos monetários, excepto em âmbitos muito restritos e desprovidos de efeitos económicos globais, como sucede por exemplo com a transformação de vales de refeição ou de transporte em meios de pagamento aceites na loja da esquina. Já nos pagamentos de particulares a empresas o uso de cartões magnéticos pode acelerar V [a velocidade de circulação do dinheiro de mão em mão] e permitir que se efectue um maior número de transacções com o mesmo M. Mas é sobretudo nas relações entre as grandes empresas capitalistas que a situação muda radicalmente. Os substitutos monetários aumentaram numa dimensão nunca vista, graças aos derivativos e a toda a restante variedade de instrumentos bancários. Quanto mais os bancos centrais impõem restrições monetaristas à emissão de M, tanto mais os banqueiros e as suas equipas de economistas se dedicam a prodígios de imaginação para multiplicar os substitutos monetários».
Por conseguinte, na medida em que a expansão dos meios de pagamento ocorreu a um ritmo superior à expansão da produtividade e que a massa monetária criada foi de tal maneira galopante e incontrolada pelos bancos centrais, a ocorrência de qualquer perturbação nos mercados financeiros (por exemplo, a crise do subprime norte-americano) teria necessariamente de colocar em causa a excessiva alavancagem das entidades financeiras privadas. Aliás, a alavancagem foi de tal monta e a desregulação chegou a um tal ponto que, por exemplo no mercado de derivados, vários investidores chegaram a deter derivados de tipo CDS (credit default swaps) para cobrir a mesma propriedade imobiliária. Para o leitor ter uma noção concreta, é como se o seu automóvel — no caso de o leitor ter automóvel… — tivesse um sem-número de apólices de seguro. Se houvesse um esquema fraudulento com um amigo mecânico, imagine que, se esbarrasse o automóvel contra uma parede, os vários seguros iriam ser accionados para cobrir os gastos de um único acidente. Em suma, a desregulação dos CDS levou a que vários investidores apostassem em falências de modo a recolherem ganhos consideráveis em bolsa.
Nesse sentido, um dos traços fundamentais da actual crise económica relaciona-se com a débil regulação institucional que o sistema capitalista, no seu todo, exercia sobre as instituições financeiras e bancárias privadas, tomadas isoladamente. Como se teve oportunidade de referir num artigo publicado neste site ainda em 2010, a crise económica que afecta o capitalismo ocidental deve ser entendida também como uma crise de regulação, no sentido em que a «necessária coordenação entre os espaços nacionais e a transnacionalização económica» tem estado na base de algumas tendências centrífugas que fugiram ao controlo dos gestores.
3.
De facto, enganam-se aqueles que pensam que o capitalismo se constitui na base da «mão invisível» e da iniciativa privada de cada empresa como que isolada do restante tecido económico. O toyotismo trouxe ganhos de produtividade colossais ao capitalismo das últimas décadas e a possibilidade de colocar a produção de valor num patamar de elevada sincronização mundial. Nesse âmbito, o que alguns chamam de financeirização não é mais do que a expressão, ao nível do crédito, da sincronização e da articulação dos processos produtivos numa escala transnacional. Essa sincronização transnacional da produção e dos mecanismos de crédito do período toyotista implicou uma perda de poder por parte das estruturas do Estado nacional. De facto, a soberania das empresas suplantou em muito a soberania política dos Estados, o que permitiu ao capitalismo suplantar a rigidez institucional do fordismo, nomeadamente a rigidez ao nível da mobilidade de capitais e da fragmentação e especialização das cadeias produtivas.
Essa soberania das empresas não tem sido acompanhada pela criação de espaços institucionais de enquadramento global da sua acção. É inquestionável a relevância de inúmeras instituições transnacionais de coordenação da acção das empresas e dos bancos, mas as tendências centrífugas da actividade de cada empresa (ou de um grupo de empresas transnacionais) têm-se sobreposto a tendências centrípetas de enquadramento institucional mais vasto. Ambas têm ocorrido e ambas se têm ampliado, mas na esfera financeira é indubitável que, até à crise económica mais recente, o controlo exercido pelas instituições reguladoras era relativamente débil.
Porém, a crise financeira implicou a falência ou quase falência de grandes transnacionais (General Motors, Ford, etc.) e de grandes entidades financeiras (Northern Rock, Lehman Brothers, AIG, etc.) o que levou a um reequacionamento da forma como os investimentos vinham sendo desenvolvidos. No plano da banca, o BIS (Banco de Pagamentos Internacionais) desenvolveu os princípios Basel III (Basileia III) de modo a que as entidades bancárias limpassem os seus balanços e se recapitalizassem. Ora, uma leitura breve de um recente comunicado de imprensa do BIS sobre o assunto afirma muito explicitamente que a concretização dos seus propósitos de recapitalização da banca só ficará concluída em 2018-2019. Como afirmou um dos dirigentes do Bundesbank (banco central alemão), a Europa está perante um «ongoing deleveraging process» (Dombret), um «processo de desalavancagem em curso». Este é um dado muito significativo da extensão da alavancagem bancária realizada na primeira década do século XXI. Sendo assim, o equilíbrio sempre difícil e instável entre o fornecimento de crédito à actividade económica e a necessidade de absorver poupanças tem sido uma das principais preocupações dos bancos centrais. O mesmo é dizer que a classe dos gestores reage pragmaticamente às condicionantes que os ciclos económicos impõem.
Se o pragmatismo é o leitmotiv dos gestores, isso decorre do facto de a expansão das oportunidades de negócio no capitalismo estar associada a uma necessidade de expandir territorial e socialmente os mecanismos de produção de novas mercadorias. Por outras palavras, a transnacionalização da economia decorre de um duplo processo ao qual os capitalistas e as suas instituições tentam dar resposta. De um lado, a transnacionalização decorre da inerência expansiva do capitalismo. O que Marx e Engels chamaram no passado de mercado mundial não era uma metáfora mas uma realidade bem presente e que decorre da expansão quantitativa na criação de novos mercados. Mas, por outro lado, num movimento totalmente agregado ao primeiro, a expansão do capitalismo não ocorre apenas no plano macro. De facto, o núcleo da expansão económica situa-se no aumento da quantidade de bens e de serviços produzidos numa hora de trabalho e por trabalhador. Quer dizer, o aumento da produtividade implica expandir as possibilidades de produção em cada unidade de recursos mobilizada. A isto associa-se a aplicação deste princípio a cada vez mais esferas de actividade.
Assim sendo, o capitalismo expande-se num mesmo fôlego tanto no plano territorial mais vasto como no plano social das relações de produção em cada local de trabalho. A articulação entre os dois planos é realizada em boa parte pelas instituições reguladoras: o Estado, instituições transnacionais, bancos centrais, etc. A complexificação crescente do capitalismo nos planos produtivos macro e micro e no plano financeiro implica que as respostas a dar pelos gestores terão de se expressar numa hábil capacidade de enquadramento institucional. Todavia, chamamos a atenção que, para os tecnocratas situados nas instituições de regulação, esse enquadramento não se confunde com a planificação central. A regulação actua sempre no sentido de optimizar e de corrigir desvios na articulação entre os planos produtivos e o plano financeiro, não de se substituir a eles e muito menos de os coarctar. Até porque os gestores situados nas instituições de regulação transnacional (Banco de Pagamentos Internacionais, Banco Central Europeu, Organização Mundial do Comércio, Fundo Monetário Internacional, etc.) pertencem à mesma classe social dos gestores que controlam bancos, empresas e fundos de investimentos.
Ora, se os gestores são uma classe que coloca a heterogeneidade das actividades económicas ao serviço de uma estabilidade interna de classe, então qual é o sentido das teses que sustentam um antagonismo entre o capital especulativo e o capital produtivo? Como temos referido por variadas vezes, importa perceber que a oposição entre a finança e a economia só existe na cabeça da esquerda nacionalista. De facto, para os capitalistas as naturais diferenças entre os dois sectores correspondem a duas partes de uma mesma unidade económica do modo de produção capitalista.
«Eu gostaria de admitir que não faço uso do termo economia real – apesar de perceber de onde ele vem […]. Fazer uma distinção estrita entre a economia real e o sector financeiro é exagerar as coisas em vários aspectos. Nós necessitamos de ambos: de empresas e de instituições financeiras. Ambas são interdependentes e devem trabalhar em conjunto». Como correctamente lembra este alto quadro do Bundesbank, «as empresas são normalmente dependentes do capital emprestado para financiar investimentos e, dessa forma, tornar o crescimento possível». Assim, as críticas que vastos sectores da esquerda fazem ao parasitismo da banca apenas servem para obscurecer o poder das empresas. O mesmo é dizer que a omissão do poder das empresas corresponde a uma idêntica omissão das relações de exploração que os trabalhadores sofrem quotidianamente.
Aquela área política que se convencionou chamar de esquerda tem fundamentado as suas críticas ao actual contexto de crise económica e financeira unicamente em moralismos. Aliás, a sua autoconfiança no moralismo é tal que as suas críticas se focam em protagonistas políticos com nenhuma ou quase nenhuma capacidade de decisão. Em boa verdade, a esquerda nacionalista é tão estatista na sua forma de pensar e de ver o mundo que se dedica a perorar e insultar políticos do sistema que não passam de executores de políticas económicas definidas a montante pelos tecnocratas (1, 2). Para essa esquerda pode ser aliciante em termos eleitorais fazer o jogo demagógico sobre as trapacices do político A ou B mas, em termos substantivos para as lutas sociais, essa abordagem não traz qualquer vantagem.
Pelo contrário, enquanto o desespero das pessoas for canalizado para funcionários de quinta patente, as estruturas políticas e económicas do capitalismo passam invisíveis. Em suma, a concentração da crítica em figuras e em pessoas, para além de ser uma fulanização fascizante, apaga os vestígios da pegada estrutural do capitalismo na determinação total das práticas que modelam a vida dos trabalhadores.
4.
Nesse sentido, a evolução recente da crise das dívidas soberanas na zona euro parece confirmar a necessidade de, num mesmo processo, desalavancar a banca europeia e articular a expansão económica no plano transnacional. Isso significa que, ao contrário do catastrofismo vigente na esquerda nacionalista, a integração europeia vai prosseguir. Enquanto a esquerda cimenta posições nacionalistas, no plano económico e político os capitalistas estão a prosseguir a sua resposta institucional aos desafios que a complexificação do capitalismo lhes tem colocado. Esse até poderá ser o papel da maioria da esquerda oficial: atrelar as camadas mais rebeldes de trabalhadores precários a falsas saídas políticas, regulando assim o desespero social com as medidas de austeridade. Enquanto a esquerda dos gestores se diverte a canalizar a revolta dos trabalhadores contra alvos ilusórios, os gestores tecnocratas podem pacificamente reorganizar as instituições europeias. Para quem tem ilusões sobre o papel da esquerda dos gestores na salvação e na regulação do capitalismo, a actual conjuntura deveria deitá-las abaixo.
Nas próximas partes veremos de que forma os gestores têm concebido a reorganização do capitalismo europeu.
A série A estratégia dos gestores é formada pelos seguintes artigos:
1) Crise económica europeia e instituições de regulação
2) As palavras e as acções dos gestores europeus
3) E o Bundesbank?
4) Dois discursos de Mario Draghi
5) A federalização, a esquerda e os capitalistas
Meus parabéns ao Passa Palavra por este lúcido e necessário texto. Para muito além das sempre oportunas “provocações” a propósito dos limites e vícios da “esquerda nacionalista”, ocorre-me frisar que textos como esse artigo, cuja primeira parte ora nos é oferecida, lidam com um tema/uma abordagem que, curiosamente, parece cada vez mais distante de uma grande parcela da esquerda: a Economia Política. Especialmente entre os mais jovens – e entre muitos não tão jovens -, é notável e preocupante o desconhecimento e mesmo o desinteresse em matéria de análise e raciocínio político-econômico. Uma das causas disso é claramente ideológica, e a mim me parece que, vista como “chata” e “pouco charmosa”, a análise político-econômica veio a ser lamentavelmente confundida com o economicismo vulgar. Não é à toa, creio, que experimentamos, desde a década passada, no Brasil e em tantos outros lugares, um crescente prestígio da Antropologia acadêmica e dos “estudos culturais”, em nítido detrimento das análises político-econômicas. Parece que muitos não se dão conta, nem remotamente, de o quanto se desarmam dessa forma. Assim, ao “moralismo” mencionado no texto – péssimo e pobre substituto da análise rigorosa -, convém acrescentar também uma certa distorção “culturalista” que, muito frequentemente, aproveita o abuso (economicista) para desautorizar o uso e se mostra muitas vezes incapaz, inclusive, de politizar a discussão em torno da própria “cultura”.