Por Teresa N. R. Gonçalves

 

As questões suscitadas pela prova de avaliação de conhecimentos e capacidades (PACC), implementada pelo Ministério da Educação em Portugal, e as reações que despoletou por parte dos professores têm sido analisadas principalmente em termos das questões mais específicas e contextuais da natureza da prova e do momento em que ela surge. Nestas análises têm sido destacados aspectos como o facto de a prova não avaliar nem conhecimentos, nem competências exigidas para a função de professor, nem o núcleo daquilo que constitui a ação do professor — a prática em sala de aula. Também o facto de ser aplicada a professores que, provavelmente, na sua maioria, não entrarão no sistema de ensino e muito menos terão acesso à carreira nos tempos mais próximos, num contexto de cortes e mudanças dramáticas que estão a ser levadas a cabo no sistema de ensino público em Portugal, tem sido frequentemente referido para criticar a prova.

É inegável a humilhação e violência que ela representa, não só para os professores avaliados como para os que a vigiam e avaliam, patente nas diversas reações e testemunhos manifestados no dia ‘trágico’ da sua realização. A ideia de avaliação como mecanismo de controlo, punição e exclusão tem sido característica das políticas recentes do Ministério da Educação. No entanto, a gravidade da situação e as suas implicações para uma classe profissional que tem vindo a ser ‘fustigada’ pelas políticas de educação levadas a cabo pelo governo requer uma análise mais ampla e aprofundada de algumas questões ideológicas, conceptuais, sociais e políticas que lhe estão subjacentes. Estas, embora não se esgotem nem se expliquem apenas no quadro da política deste Ministério, constituem aspetos centrais da configuração da profissão docente e do entendimento da pedagogia nas sociedades contemporâneas, principalmente nos países ocidentais, que tornam os professores alvos fáceis de políticas de cariz neoliberal.

Um dos factores centrais do enfraquecimento da profissão docente tem sido a sua proletarização. Sob a bandeira da profissionalização e da definição do estatuto profissional docente, um conjunto de políticas tem contribuído para a ‘funcionarização’ dos professores através de mecanismos e discursos que tendem definir um controlo burocrático e técnico sobre a profissão, esvaziando-a da sua dimensão pedagógica e ética. Estas condições têm sido acentuadas pela redução de rendimentos, pela degradação do estatuto e pela perda de autonomia. A ação das organizações profissionais, nomeadamente dos sindicatos, cuja importância histórica e a força política em Portugal é inegável, tem provocado tensões e está a sofrer transformações que devem ser tidas em conta relativamente à sua capacidade e ao seu papel na luta pela autonomia, estatuto e condições de exercício da profissão. A questão da institucionalização das organizações sindicais, a sua relação com outras associações profissionais e movimentos sociais emergentes é uma questão central e um desafio crucial relativamente à natureza e relevância do serviço público que prestam e à necessidade de novas formas de ação, reflexividade e comunicação que acentuem a legitimidade dos interesses públicos que defendem, como no caso da luta dos professores. Todos estes aspectos têm levado à erosão da dimensão pública da profissão docente, no quadro de uma perspectiva mercantilista e uniformizadora mais ampla, que tem provocado uma erosão da esfera/vida pública e das preocupações com o bem comum a uma escala global, tornando a profissão mais vulnerável a tentativas de dominação e controlo.

As reformas recentes no campo da educação em Portugal têm sido movidas pelo ressentimento daqueles que receiam o poder transformativo da educação e que pretendem preservar o status quo social existente. A crítica aos ‘modelos progressistas’ e a defesa do ‘back to basics’ [regresso ao básico] são algumas das expressões desse ressentimento e impedem uma reflexão profunda e fundamentada sobre as necessárias transformações a empreender. As mudanças educativas são vistas como uma ameaça, são encaradas com suspeita e, por vezes, com ressentimento. A pedagogia, como campo de tensões produtivas e de reflexão e ação críticas sobre a educação e a sua relação com o bem comum, tem sido atacada e desvalorizada na sua capacidade de formular juízos sobre a educação. É sintomático o facto de a PACC não incidir sobre a componente pedagógica da função docente. Essa desvalorização retira aos professores a possibilidade de se (re)apropriarem da dimensão pedagógica da profissão, de (re)assumirem a natureza pública da sua ação, assumindo a sua responsabilidade pedagógica na partilha, construção e renovação de um mundo comum.

A proletarização da profissão docente e a desvalorização da pedagogia são duas faces da mesma moeda, que se traduzem no enfraquecimento da profissão e no esvaziamento da sua função pública. A revolta dos professores relativamente à PACC é a luta de um grupo profissional desapossado do seu estatuto e autonomia e dos instrumentos que lhes permitiriam aceder ao espaço público. Esta revolta expressa um sentimento de ‘aprisionamento’ entre um sistema de ensino transformado em máquina seletiva e burocrática e a possibilidade do professor aceder àquele que é o foco da sua ação e preocupação: os alunos, a relação com o mundo e a natureza pedagógica da sua função. O facto de serem os mais vulneráveis dentro deste grupo profissional a ser submetidos a esta prova representa mais uma tentativa inaceitável de domesticação e divisão, que põe em risco a radical oportunidade de renovação do mundo presente na figura do professor. Não pode ser coincidência que as tentativas de apagamento do professor como figura pública aconteçam em simultâneo com os ataques de que tem sido alvo a escola como espaço público.

A última fotografia é de Sérgio Azenha.

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