Não podemos separar a esquerda do Estado. Toda ela é Estado quer em termos de meios, quer em termos de fins. Por António, Luís e Sarmento
António: Até agora temos insistido no facto de o comércio no interior das companhias transnacionais ter atingido um volume tal que obriga a repensar a noção de comércio externo como comércio entre países. Ora bem, acabo de ler no Economist de 8 de Fevereiro um artigo, «Government-to-government trade. Unbundling the nation state», que abre perspectivas novas. É que governos e instituições governamentais estão a prestar serviços a outros governos, numa base comercial e não política. Ou seja, a submissão do funcionamento dos governos a uma lógica estritamente capitalista contribui para diluir as fronteiras da soberania nacional.
Luís: Mas, como temos discutido, a difusão de dinâmicas e processos transnacionais tem levado a uma expansão do nacionalismo. Em boa parte isso é perfeitamente compreensível: enquanto os capitalistas actuam calmamente no plano das relações económicas (e que atravessam fronteiras), os trabalhadores e a esquerda estão fragmentados nacionalmente no plano político e ideológico. Por outras palavras, isso sempre aconteceu no capitalismo: apresentar o contrário para que uma determinada realidade se mantenha oculta. Mas isto não chega para explicar. O que há a explicar é saber porque: 1) o nacionalismo é a principal ideologia de reacção aos fenómenos de expansão internacional do capitalismo; 2) existe um desfasamento colossal entre a processualidade socioeconómica e a percepção das populações. O caso suíço é gritante. Um país com um desemprego irrisório, dezenas de anos de imigração e quase 500 mil suíços a viver na União Europeia, e mesmo assim a ideologia nacionalista sobrepôs-se à dinâmica material, no que toca à avaliação de grande parte da população.
Volto ao início. Até certo ponto, é compreensível a difusão do nacionalismo na época da transnacionalização. De modo a que esta ocorra o mais suavemente possível, nada melhor do que colocar as pessoas a discutir a cor da camisola para que não vejam as costuras. Ou seja, há inquestionavelmente um interesse objectivo dos capitalistas num certo doseamento do nacionalismo. Isso permite fragmentar a classe trabalhadora, impedindo a sua unidade política, ao mesmo tempo que aproveitam o que mais lhes interessam: a mobilidade de força de trabalho de acordo com os seus interesses. Tirando alguns casos excepcionais (como o caso suíço), os fluxos migratórios nas principais economias têm respeitado o pulsar dos ciclos económicos das grandes empresas.
Mas este é só um lado da questão, na medida em que tenho a sensação de que o nacionalismo tem sido menos difundido pelos capitalistas e mais pela esquerda, pela extrema-direita e pelos próprios trabalhadores. Isso significa que os capitalistas têm reagido ao nacionalismo político e ao nacionalismo espontâneo popular e não o têm produzido de alto a baixo como acontece com outras ideologias: classe média, ideais do consumo de massas, etc. E saber porque o nacionalismo tomou conta da esquerda e dos trabalhadores, esse sim é o grande enigma. Talvez porque as organizações da esquerda não sejam mais do que formas organizacionais de manter a classe trabalhadora desorganizada. Mas aí também falta explicar porque o racionalismo, que animou a esquerda do século XIX e parte do século XX, foi substituído pelo ecologismo e pelo nacionalismo.
António: Luís, partilho a tua opinião de que desde o final da segunda guerra mundial os capitalistas têm-se aproveitado do nacionalismo dos trabalhadores mas não têm sido o principal agente da sua difusão. Esse agente tem-se situado na esquerda e entre os trabalhadores. Porém, o nacionalismo já não é o único factor de fragmentação. É-o em Portugal, mas no Brasil, um país com uma esquerda profundamente nacionalista, reina o multiculturalismo a um ponto que em Portugal não se suspeita, e esse é um factor de fragmentação ainda mais activo, enquanto que o nacionalismo brasileiro é mais subjacente. Tudo isto é muito complicado. De qualquer modo, o que eu queria chamar a atenção era para o facto de os próprios governos nacionais estarem a ser agentes de transnacionalização.
Luís: Sim, basta ver como o Estado chinês actua e como várias empresas estatais chinesas estão nas vinte-trinta maiores do mundo. E quem diz a China, diz o Brasil. Esse modo de actuação dos governos só demonstra a ampliação da soberania das empresas: colocar os Estados nacionais a actuar no mesmo modelo de práticas. Internamente, com os novos modelos de avaliação de desempenho, de contratação, de progressão na carreira, etc. os Estados funcionam cada vez mais como irmãos gémeos das empresas. Os Estados são empresas para as quais as restantes empresas (e as populações) pagam para que os primeiros forneçam serviços de auxílio e cooperação à ampliação das oportunidades de negócio das segundas. E quem diz os Estados nacionais, diz as grandes organizações e instituições internacionais de regulação que decalcam características dos Estados e das empresas. O bom Weber dizia que o Estado actuava em torno dos princípios da racionalização burocrática. Mas será que estes não surgiram primeiro nas empresas e o Estado moderno não derivará daí? Aqui estou apenas a abordar a parte estrutural e prática dos Estados, não a parte política e ideológica, que se articula de acordo com outros princípios: a criação de uma comunidade política nacional. O Estado será assim uma grande empresa que integra os princípios empresariais com os princípios da soberania política da modernidade. Os primeiros continuam a avançar, à medida que os segundos redundam em aparatos artificiosos e secundários. Curiosamente, os primeiros avançam e continuam relativamente omissos do grande público (como sempre estiveram), ao passo que os segundos constituem os motivos de conversa das pessoas e da maioria da esquerda.
Sarmento: O capitalismo vai necessitando de signos sendo, ao mesmo tempo, incapaz de os produzir por si mesmo. Veja-se naquela que, à primeira vista, parece ser uma das áreas onde um discurso transnacional é mais imperante: a gestão dos recursos humanos. Até aqui surgem paradigmas como este, bastante em voga, com o objetivo de ensaiar uma relação de identificação com aquilo que parece indiscutível: a nação. Não é à toa que o Mourinho é evocado como um gúru da GRH.
De resto, isto de Portugal ter sido um império e de hoje em dia se encontrar nas ruas da amargura não ajuda.
Luís: Sim, Sarmento, mas isso é o “normal” no capitalismo: apelar ao interesse nacional para esconder os antagonismos de classe. Isso sempre aconteceu e hoje continua a acontecer. Desde o Let’s get Ireland working [Ponhamos a Irlanda a trabalhar], ao creative nation [nação criativa] dos sectores criativos britânicos, etc. o toyotismo não deixou de utilizar o apelo nacional para insuflar uma coesão ideológica. Mas no plano dos recursos humanos o que prevalece é a colocação dos trabalhadores a trabalhar. E nisso os capitalistas têm sido extremamente bem sucedidos. Aliás, o que descreves é o efeito retroactivo dos capitalistas ao espírito nacionalista do tempo.
Mas o que mais me preocupa não é tanto esta reacção mas a génese do problema. Ou seja, quanto mais o Estado é uma empresa nos seus fundamentos práticos, e portanto mais a raiz soberanista do Estado perde força no contexto das estruturas capitalistas, mais o nacionalismo se descola da estrutura material do Estado e mais se incrusta na consciência colectiva dos trabalhadores. O nacionalismo é assim cada vez mais uma ideologia difusa mas difundida e menos uma política deliberada dos Estados. O Estado é uma empresa de serviços gerais para os capitalistas e um nacionalismo para os trabalhadores. Uma coisa implica a outra. Mas o pior é que a esquerda e os trabalhadores produzem tanto ou mais nacionalismo do que o Estado… E não é só em Portugal (que nem conta para nada), mas em toda a União Europeia e no mundo ocidental como um todo.
Sarmento: Não podemos separar a esquerda do Estado. Toda ela é Estado quer em termos de meios, quer em termos de fins.
Luís: Sarmento, concordo totalmente contigo sobre a esquerda. Aliás, a última parte de um artigo sobre Marx e a nação, que o Passa Palavra publicou, diz exactamente o mesmo que tu: a esquerda institucional é apenas a ponta esquerda da classe dominante (esquerda no plano dos princípios, porque na prática, como defende a mais-valia absoluta, ainda consegue ser pior do que os piores tecnocratas de Bruxelas e Frankfurt).
Mas quando eu me referia ao Estado estava a pensar apenas na estrutura burocrática central (governo, gabinetes e direcções-gerais, ministérios) e não nas instituições-satélite. Nesse sentido, na Europa, o Estado central é uma empresa, enquanto a esquerda é, na sua maioria, um repositório ideológico nacionalista. Só quando a esquerda promove a mais-valia relativa (Brasil, por exemplo) é que ela se constitui com traços fortes empresariais (exemplo, o capitalismo sindical que o João Bernardo analisou para vários casos, incluindo o brasileiro). Quando ela promove outro modelo de acumulação — estatista, isolacionista e retrógrado — aí ela é mais uma instituição ideológica do que empresarial. Creio que isso ajuda a explicar porque a CGTP [Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses] é uma instituição para-estatal e defensora de um modelo capitalista da mais-valia absoluta, mas sem nunca (que se saiba) ter enveredado pela posse e gestão de fundos de pensões.
Outra coisa. Creio que não podemos negligenciar o papel do jacobinismo na formação da esquerda europeia. É que isso contém desde o início a ligação de sectores operários a sectores capitalistas (traço típico da política marxista colando lutas dos trabalhadores à ascensão do que vieram a ser os gestores), a “religião” do Estado e das suas instituições, a “religião” da nação, a tomada de posição em favor de determinadas fracções das classes dominantes contra outras, etc.
António: Podíamos fazer disto um artigo, como aqueles diálogos da Renascença, neste caso um triálogo. Estou a falar a sério.
É dificíl encontrar neste site um artigo de Portugal onde não haja a confusão da pseudo-esquerda com a verdadeira esquerda anticapitalista.
Pessoal, a burocracia partidária ou estatal (inclusive sindical), em nada tem haver com a esquerda. Na verdade, nada mais são do que uma classe auxiliar da burguesia. Isto é, possui perpectiva e interesses opostos aos do proletariado.
Somente os trabalhadores podem mudar o mundo e não os que dizem representá-los como fazem os da pseudo-esquerda.
“O Estado será assim uma grande empresa que integra os princípios empresariais com os princípios da soberania política da modernidade.”
Sabendo que a origem de ambos é tão entrelaçada, talvez caiba explorar justamente o que de um há no outro. Pois se podemos aplicar conceitos como democracia direta tanto a locais de trabalho como a organizações políticas, significa que em algum ponto existem princípios de gestão que não se diferenciam em sua totalidade na hora de separarmos por um lado “a empresa” e “a soberania” (especialmente porque a empresa é um prototipo de gestão autônoma que desde então segue paralela ao Estado, retraindo e expandindo em sua independência do Estado de acordo com o contexto histórico).