A construção do poder popular sobre o transporte em seus dois aspectos, o da utilização e da operação, ainda está se dando de forma separada, sem comunicação. Mas pode ser o começo de um diálogo mais amplo. Por Passa Palavra
A greve selvagem
A sexta-feira, 16 de maio, foi um dia de caos na cidade de Goiânia e na Região Metropolitana. Cerca de 19 terminais de passageiros do sistema de transporte coletivo tiveram suas operações paralisadas, total ou parcialmente, desde o início da manhã, o que inviabilizou o funcionamento do transporte coletivo na capital goiana. No sábado, 17 de maio, ocorreu o mesmo quando apenas dois terminais estavam em operação. Tal situação se deu em decorrência da ação dos motoristas contra o acordo da data-base firmado no dia anterior, entre o Setransp (sindicato das empresas do transporte coletivo) e o Sindittransporte (Sindicado dos trabalhadores rodoviários do estado de Goiás), um dos sindicatos que disputam a representação da categoria.
O acordo firmado prevê um aumento de 7% no salário dos motoristas, além da passagem do vale-alimentação de R$ 375,00 para R$ 435,00, e um anuênio de 3%. Os motoristas que paralisaram a operação questionam o acordo e o fato do mesmo ter sido selado sem a consulta dos trabalhadores, já que o Sindittransporte não realizou uma assembleia para aprová-lo ou não. Segundo um motorista da empresa HP Transportes, eles ficaram “sabendo do acordo através de nota pregada nos terminais”. Eles reivindicam ainda um aumento de 15% nos salários e do valor do vale-alimentação para R$ 500,00. Outra reivindicação importante, talvez a principal, é a volta da chamada “manobra”, o serviço de transporte dos motoristas às suas casas e ao trabalho, após o fim e início do funcionamento do sistema, durante a madrugada. Os trabalhadores denunciam que as empresas cortaram o serviço e impedem a entrada dos mesmos nos alojamentos das garagens, obrigando-os a arcarem com as despesas de deslocamento ou esperar na rua pela volta do funcionamento do sistema, na manhã do dia seguinte.
A mobilização dos motoristas iniciou-se na quinta-feira pela manhã, quando se reuniram na porta do Ministério Público do Trabalho (MPT) para protestar contra a assinatura do acordo. O ato foi chamado pelo Sindicoletivo, outro sindicato da categoria, que conseguiu em última instância jurídica representar legalmente os trabalhadores, mas que ainda não detém a carta-sindical. A falta do instrumento burocrático o impede de mediar as negociações trabalhistas. Entretanto, membros do sindicato e trabalhadores presentes no ato conseguiram entrar na sala de reuniões e impediram que o acordo fosse ratificado com a procuradora do MPT.
Após o impedimento da assinatura do acordo, os motoristas decidiram sair em seus carros e motos por algumas das principais avenidas de Goiânia, em protesto contra o acordo dos dois sindicatos. Pararam por alguns minutos o centro da cidade e alguns terminais do eixo Anhanguera e se dirigiram ao terminal Padre Pelágio, um dos mais movimentados da cidade. O terminal foi totalmente paralisado durante uma hora, voltando posteriormente a funcionar a linha do eixo Anhanguera. Parte da população presente no terminal passou a atacar os ônibus que estavam estacionados, chegando a quebrar os vidros de alguns deles. O fluxo dos ônibus das linhas alimentadoras foi interrompido por quase toda a tarde, estendendo seus efeitos para outras linhas e terminais. Ao menos três manifestações de usuários ocorreram em distintos terminais da cidade.
Como Setransp e Sindittransporte mantiveram a disposição em manter o acordo sem consulta aos motoristas, no dia seguinte os motoristas decidiram parar as atividades em algumas garagens das empresas e em alguns terminais. O primeiro terminal a ser fechado com ônibus em suas entradas foi o terminal das Bandeiras. O fato levou os usuários a atacarem os ônibus e a paralisar as ruas das imediações, sendo impedidos à força pela tropa de choque da Polícia Militar. Diversos outros terminais registraram manifestações de usuários ao longo do dia, sendo que, segundo números divulgados pela imprensa, cerca de 82 ônibus foram depredados entre quinta-feira e sábado. Segundo um jornal da capital goiana, os motoristas decidiam a cada hora o que fazer e espalhavam as decisões por meio das redes sociais.
As paralisações fugiram ao controle do Sindittransporte, visto como um sindicato pelego pelos motoristas. Os motoristas no ato de quinta-feira acusavam inclusive o Sindittransporte de aceitar um valor de vale-alimentação abaixo do estipulado pela procuradora do MPT. Os principais motivos para a paralisação seriam o fechamento do acordo sem consulta à base dos trabalhadores e o fato de não haver sido definida a volta da “manobra” durante as madrugadas.
Por outro lado, a paralisação fugiu ao que era esperado pelas empresas e pelos órgãos públicos. Quando da assinatura e anúncio de um pacto pela melhoria do transporte coletivo, que garantiu subsídio estatal e aumento da tarifa às empresas do transporte coletivo, o secretário de Cidades, Infraestrutura e de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Goiânia e presidente da CDTC (Câmara Deliberativa do Transporte Coletivo), João Balestra, chorou e pediu orações publicamente para que não ocorresse uma greve no transporte coletivo na capital. O pedido de orações – que pelo visto não foi atendido – possivelmente indica o estabelecimento de um acordo que não foi tornado público, referente à articulação entre Setransp e Sindittransporte no que se refere à data-base dos trabalhadores. O fato do Sindittransporte afirmar que houve consulta aos trabalhadores nos terminais e garagens demonstra a tentativa de não tornar público o debate sobre o reajuste salarial e as condições de trabalho, uma prática que o sindicato vem recorrendo há no mínimo dois anos. Realizar o acordo sem a consulta aos trabalhadores era possivelmente um dos elementos necessários para o sucesso da articulação institucional das empresas com o Estado para garantir um subsídio mensal de R$ 4 milhões, além do aumento da tarifa. Assim, a paralisação dos motoristas superou o controle sindical e mostrou que as lágrimas e as orações do secretário foram em vão.
Reação das empresas e sindicatos
A reação do Setransp e do Sindittransporte foi imediata. Acusaram unicamente o Sindicoletivo pela paralisação, quando a ação não foi consequência apenas da denúncia deste sindicato, mas da insatisfação dos trabalhadores com o acordo firmado e da forma como ocorreu, além da melhora das finanças das empresas com a entrada do subsídio estatal e do aumento tarifário. O principal meio de veiculação das acusações foi a imprensa goiana, que não perdeu tempo em fazer coro ao Setransp e indicar interesses políticos partidários e eleitorais na ação sindical. Os membros do Sindicoletivo podem até ter seus interesses partidários, mas isso não deve servir para encobrir a insatisfação dos motoristas com a articulação dos dois sindicatos e com a política de gestão do transporte coletivo que vem sendo mantida na capital goiana.
Por outro lado, a ação foi muito similar à greve do ano passado, como indicado brevemente aqui. Uma negociação pela cúpula foi rejeitada pelos motoristas e os empresários, para manter uma imagem de normalidade operacional, insistiram até o fim no fato de que não havia greve nem problema nenhum… se não fossem alguns “grupos estranhos ao sistema” que estariam atrapalhando. Essa postura induziu os usuários da região metropolitana a utilizarem o sistema com a expectativa de que tudo fosse correr normalmente e que todos chegariam aos seus locais de trabalho e estudo no horário certo. Ao longo do dia, as empresas tentaram manter essa aparência de normalidade o tempo todo em suas declarações públicas.
Manifestações dos usuários
As manifestações de usuários que surgiram no contexto dessa disputa entre empresas e motoristas foram várias, em diversas regiões da cidade, e ocorreram de forma diferente na quinta-feira e na sexta-feira. Mas existem alguns elementos comuns: uma frustração muito grande com as empresas, em vista das promessas de melhoria e regularidade do serviço.
No primeiro dia, quinta-feira, em que os motoristas se utilizaram da carreata para afetar o sistema de transporte da Goiânia, foram surgindo reações onde a ação ocorria. No Terminal Praça A houve relatos de tensão entre usuários e motoristas. Já no Terminal Padre Pelágio, onde houve paralisação por cerca de duas horas, os usuários partiram para cima de ônibus e vários foram depredados. Também ocorreram vários protestos em terminais de regiões periféricas dos quais só é possível saber que houve algum conflito pelas indicações do consórcio que controla o sistema de que “o terminal está com a operação afetada”.
Já no segundo dia, sexta-feira, os protestos foram um pouco diferentes. A paralisação progressiva dos terminais foi pegando de surpresa milhares de usuários iludidos pelas promessas de normalidade da RMTC. Subitamente, todos se viram incapacitados de voltar para casa e de ir para o trabalho, concentrados às centenas ou milhares nos terminais de ônibus. No Terminal Bandeiras, começou um protesto às 6h30 da manhã que se traduziu mais tarde em uma paralisação das ruas ao redor, depois em um ataque às instalações comerciais do terminal e dos ônibus aos olhos impassíveis da polícia. A manifestação não se dirigiu contra a paralisação dos motoristas mas sim contra o aumento da tarifa e pedia melhoria na qualidade do transporte. A tropa de choque, que permaneceu impassível durante boa parte do protesto, resolveu atacar quando os manifestantes paralisavam parte da Avenida T-9, que fica nas imediações do terminal. Logo após o fim desse protesto, no Terminal Praça A ocorria outro protesto, contrário à interrupção da circulação dos veículos, que exigia o retorno imediato dos ônibus como condição para o fim da paralisação do trânsito da Avenida Anhanguera, uma das principais da cidade. Essa manifestação também sofreu intervenção da tropa de choque e foi dispersada.
Diferentemente do ocorrido ano passado, em que a marca foi o ataque aos terminais e a dispersão antes da chegada da polícia, dessa vez os usuários optaram por colocar reivindicações claras e públicas diante de uma situação que não se resumia àquele dia de transtornos. No Terminal Bandeiras, o protesto pautava a rejeição do aumento da tarifa e a reivindicação de “melhorias na qualidade”. Nesse terminal já houve três manifestações organizadas pautando justamente essas duas questões, duas delas organizadas por um coletivo local de luta que surgiu no último mês. Já no Praça A, também se protestava contra a qualidade do serviço mas a exigência posta era imediata, da volta dos ônibus. Essa reivindicação acabou gerando um conflito com os motoristas lá presentes de braços cruzados, mas a proteção da polícia aos trabalhadores fez com que a manifestação se direcionasse para fora, aos poderes públicos e empresariais.
Vimos que houve uma diversificação nas táticas e formas de comunicação das lutas espontâneas de terminal que possivelmente advém das experiências intensas nos últimos meses de luta nos terminais como relatadas pelo Coletivo Tarifa Zero Goiânia aqui. Um elemento interessante foi essa simultaneidade com os motoristas, mas a forma como essa ação simultânea se deu revela que a construção do poder popular sobre o transporte em seus dois aspectos, o da utilização e da operação, ainda está se dando de forma separada, sem comunicação. Mas pode ser o começo de um diálogo mais amplo.
Repressão
Houve dois lados da repressão nesses últimos dias de luta selvagem no transporte. De um lado, a repressão sobre os trabalhadores do transporte coletivo e o Sindicoletivo. De outro, a repressão sobre os usuários em luta que aproveitaram o momento para colocar suas reivindicações.
Do lado dos motoristas, a tática da repressão vem sendo usar meios judiciais para isolar o sindicato não-patronal dos trabalhadores. O Setransp chegou a pedir para a justiça que proibisse “manifestações, faixas e carros de som que perturbassem a paz e a ordem”, além de exigir que nenhum integrante do sindicato pudesse chegar a menos de 100 metros de qualquer ônibus, terminal ou garagem. Evidentemente, esse pedido não foi aceito, mas não faltou propaganda na imprensa para o fato de que os “motoristas dissidentes” estariam proibidos de se aproximar dos locais de trabalho. De qualquer modo, estabeleceu-se uma multa de R$50 mil ao Sindicoletivo no caso de descumprimento das determinações feitas: 1) término imediato da paralisação e 2) fim das “ações violentas impedindo o direito ao trabalho”. O sucesso dessas medidas foi duvidoso, uma vez que a paralisação continuou em grande parte, já que os motivos da greve transcendem qualquer dissidência sobre a carta sindical da categoria. A Polícia Militar ficou incumbida de “informar os motoristas das decisões judiciais”, acompanhada por um carro de reportagem da TV Anhanguera, filial local da Globo.
Já sobre os usuários, a repressão foi brutal e mais de 20 prisões ocorreram nas várias manifestações que se seguiram às paralisações laborais. Além da utilização da tropa de choque e do gás lacrimogênio para impedir a paralisação do trânsito, não faltaram as prisões por amostragem, muito tempo após qualquer ação. Na quinta-feira à noite, por exemplo, em Aparecida de Goiânia foram 4 presos, um com fiança de mil reais e outro que até agora permanece preso. Na sexta-feira, foram cerca de 20 presos juntando o Terminal Praça A e Terminal Bandeiras.
Os presos do Terminal Praça A foram forçados a pagar fianças de RS2.500,00 e R$1.480,00 pelos crimes de desobediência, resistência e incitação. No pedido de fiança da delegada, ficou claro o caráter político das prisões: uma presa foi condenada por “praticamente convocar as pessoas para se manifestar” enquanto outro foi condenado por “deitar no chão da rua”. “Já que não vivemos em um país comunista”, diz o documento de estipulação da fiança, “esses atos não são aceitáveis”. Um outro momento curioso foi quando os presos foram deslocados para outra delegacia sem avisar aos advogados onde seria. Esse deslocamento supostamente seria para “identificação”, uma detenção inconstitucional e uma identificação desnecessária, uma vez que a maioria dos presos portava documento de identidade.
Por meio da mobilização de familiares e militantes, foi possível tirar a maioria dos presos, com exceção desse que permanece no Terminal Veiga Jardim, em que o delegado se recusou a estipular fiança e o delegado plantonista se recusou a entregar o inquérito para que o advogado pudesse tentar soltá-lo. Mas fica a sensação de que instalaram-se nesses dias de instabilidade algumas medidas de exceção quanto às manifestações populares, além de várias denúncias de perseguição policial a militantes e vigilância ostensiva da polícia em reuniões convocadas pela Frente de Luta para discutir a situação do transporte público. Pela primeira vez em algum tempo, viu-se na sexta-feira de greve policiais militares fardados dentro da Faculdade de Educação da UFG, lugar tradicional de reuniões da esquerda goianiense, além de viaturas com giroflex desligado postados nas esquinas.
Existem novos caminhos a ser construídos?
A paralisação repentina dos motoristas demonstrou que eles têm uma forte influência no funcionamento da cidade, já que o deslocamento de centenas de milhares de pessoas foi comprometido ou interrompido, gerando consequências no trânsito como um todo. O fechamento e interrupção de um único terminal podem gerar efeitos em cascata por estar inserido em um sistema quase todo integrado. Essa situação demonstra que os trabalhadores do sistema de transporte coletivo podem deter um poder muito grande neste setor econômico do espaço urbano. De um lado, conseguem controlar o trânsito da cidade, mesmo que a paralisação apenas impeça seu funcionamento. Quais seriam as consequências de uma alteração no modo de funcionamento do sistema em outro tipo de manifestação que não a paralisação? A ação dos motoristas demonstra também que eles detêm um poder forte de pressão sobre empresários e autoridades do Estado. Mesmo que o discurso oficial seja de deslegitimar um dos sindicatos representantes dos trabalhadores, em dois dias os motoristas conseguiram reabrir as negociações sobre a data-base, contrariando os interesses de empresários, autoridades governamentais e sindicalistas pelegos. Além disso, fica evidente o esforço constante do Setransp e dos meios de comunicação de tentar jogar motoristas contra usuários, dificultando uma aproximação na luta comum.
A simultaneidade de manifestações de motoristas e usuários pode proporcionar as bases de uma atuação conjunta contra os gestores privados e estatais do sistema de transporte. O diálogo entre os dois grupos sociais pode proporcionar a elaboração de reivindicações e ações comuns, já que existe o interesse de ambas as partes na melhoria das condições de trabalho e uso do transporte coletivo. Mas este é um caminho árduo a se percorrer. Se no terminal das Bandeiras – local de algumas manifestações de usuários em semanas anteriores – houve uma crítica prática apenas contra os empresários (depredação de ônibus e máquinas no interior do terminal), no caso do terminal da Praça A a situação pareceu inversa. Houve um conflito entre o poder que vem sendo desenvolvido pelos usuários de controle do transporte, expresso na exigência de volta das linhas, e o dos motoristas, que estavam exercendo seu poder de paralisação. Aproximar estas reivindicações pode ser um caminho para fortalecer ainda mais a luta contra o controle empresarial sobre o transporte coletivo.
Os leitores portugueses que não percebam certos termos usados no Brasil e os leitores brasileiros que não entendam outros termos usados em Portugal encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas.
errata no começo do texto: sexta-feira dia 16 de maio, sábado 17.
Prezado Lucas,
Agradecemos o aviso. O erro já foi corrigido.
Cordialmente,
o coletivo do Passa Palavra