Por João Valente Aguiar

 

Se o que se diz por aí for verdade, o Bloco de Esquerda está cada vez mais próximo do fim.

As consequências, sendo fundados os maus agouros, poderão ter repercussões de peso. Se o Bloco se partir, veremos uns a juntarem-se ao Partido Socialista (PS), outros ao Partido Comunista (PC) e outros a fundarem partidos pequeninos como o Livre.

Por falar em Livre, a estratégia de Rui Tavares parece ter sido a de criar um espaço próprio que sugou parte significativa dos votos do Bloco e esperar que até às legislativas do próximo ano contabilize mais votos que, sem ele, iriam para o Bloco. Penso que os que forem do Bloco para o PC farão um caminho natural, pois terão uma base nacionalista transversal a unificá-los. Os que forem para o PS serão residuais, tal como todos os antigos provenientes do PC e da extrema-esquerda que foram para lá no passado.

O grande problema aqui é saber se o PS também se alinha numa perspectiva anti-euro. Creio que este será o objectivo daquele texto escrito por Francisco Louçã com o deputado do PS, Pedro Nuno Santos, entre outros. Mas, como a primeira parte do último artigo do Ricardo Noronha demonstra, o Louçã tem-se comportado de forma menos brilhante do ponto de vista táctico do que imagina. É que acabou sempre por cair nas armadilhas do PS (Alegre, Sá Fernandes, Roseta, etc.) e o mais provável é que isto aconteça de novo. Ao pensar que vai influenciar a ala esquerda (ou, mais exactamente, nacionalista) do PS, Louçã acabará por se afundar no meio. Só uma falência do Banco Espírito Santo (BES), que levasse a uma profunda deterioração política e a um rombo no sistema financeiro, é que dará chances a essas propostas de cisão da economia portuguesa da zona euro.

E, já que falo do BES, lembro que são hoje os tecnocratas do Banco Central Europeu e afins quem procura acabar de vez com a tese dos bancos too big to fail [demasiado importantes para poderem falir], como demonstram as palavras do Presidente do Banco de Inglaterra e de um sujeito do Bundesbank na segunda parte do meu artigo «Pé ante pé». E assim os capitalistas vão concretizando algumas das palavras de ordem da esquerda, mas de uma forma distinta — não querem que as coisas entrem em falência sistémica. Desse modo, os chavões contra a financeirização e pela falência da banca incumpridora tornam-se transversais à esquerda e aos tecnocratas, com a diferença relevante de que os segundos têm uma abordagem pragmática das coisas. Se, no lugar dos tecnocratas, fosse certa trotskista que conhecemos…

Curiosa convergência. Os slogans esquerdistas contra a financeirização encobrem os objectivos profundos dos capitalistas na actual conjuntura: corte da ligação entre o soberano e a banca; sistema de bail-in [*] que não utilize dinheiro estatal para compensar as falhas no balanço dos bancos; supervisão bancária central a partir do Banco Central Europeu; equilíbrio entre a integração bancária global e a compartimentação de entidades, de modo a que a falência de um banco não faça o sistema entrar em colapso. Ao mesmo tempo, enquanto a esquerda entretém os seus activistas e simpatizantes com as tretas do capital especulativo e da finança internacional, as relações de produção mantêm-se intactas.

Não me parece que este raciocínio seja descabido. O que não consigo perceber é como se opera uma homologia entre os slogans da esquerda e os procedimentos que os capitalistas têm levado a cabo. Sabemos que a esquerda cumpre funcionalidades específicas e relevantes para a consolidação do poder dos gestores. Mas ao nível concreto e empírico, que canais políticos, institucionais, económicos se estabelecem entre sectores que no dia-a-dia, tanto quanto se sabe, são incomunicáveis entre si? Dito de uma maneira mais prosaica, o que explica que muitos esquerdistas enveredem pela histeria contra a finança internacional e a corrupção dos políticos, e estes mesmos slogans, embora de maneira enviesada, digam respeito a acções que sectores hegemónicos dos tecnocratas têm levado a cabo na sequência da crise económica?

Não creio que isto se explique por via de qualquer conspiração. Há pelo menos duas dimensões estruturais associadas. 1) A da pertença da esquerda a uma fracção dos gestores que lhes permite penetrar no seio de sectores descontentes da classe trabalhadora e mantê-los desviados da luta fundamental. 2) Não sendo nacionalistas, os capitalistas utilizam e retiram vantagem do nacionalismo propagado pela esquerda, para manterem as suas operações supranacionais intactas enquanto os trabalhadores ficam nacionalmente fragmentados. Estas duas dimensões estão associadas, mas enfermam de duas limitações.

A segunda dimensão explica a funcionalidade do nacionalismo, mas não explica por que surgiu o nacionalismo e não outra ideologia qualquer. Se na época fordista os pais da esquerda, que hoje criticamos, eram nacionalistas, a sua ênfase incidia sobretudo no plano reformista e na gestão directa do processo produtivo. Hoje a funcionalidade dessa esquerda é simplesmente ideológica e já não parte de um corporativismo prático e activo para o enquadramento institucional, e não só ideológico, da classe trabalhadora. Ainda que esta dimensão não seja completamente satisfatória, é a que me parece ser mais sólida.

Quanto à primeira dimensão, ela deixa-me mais insatisfeito, porque não é o resultado que explica a origem. Ou seja, como se produz a transversalidade de propostas genéricas (apesar da grande diferença na sua operacionalização; se fosse essa esquerda a governar a situação seria ainda pior e mais catastrófica) entre a esquerda miserabilista e os principais procedimentos dos tecnocratas? Ou será simples coincidência entre o nacionalismo de uns e a recuperação das vantagens que isso traz aos outros?

Estou aqui cheio de interrogações e às tantas as coisas até poderão ser mais simples. A esquerda é nacionalista e os capitalistas, na base da mais-valia relativa, não a aniquilam mas apropriam-se do que mais lhes convém, as vantagens políticas do nacionalismo. É que se os capitalistas determinam de alto a baixo as configurações institucionais e económicas das empresas, é a inexistência de um poder absoluto e unidireccional que lhes permite introduzir flexibilidade e adaptabilidade no sistema. Mais do que ter um Estado pesado a controlar tudo e todos (típico dos regimes mais avançados da mais-valia absoluta), os capitalistas deixam existir manchas relativamente autónomas no tecido social. Se no campo económico é isso que explica o seu entusiasmo pela profusão de pequenas empresas dinâmicas e criativas (para depois adquirirem as suas invenções, renovar a classe, etc.), no campo político é isso que lhes permite ir controlando as insatisfações da população. Creio que uma perspectiva que visualize o capitalismo como uma combinação do autoritarismo das relações de trabalho com a plasticidade institucional dentro e fora das empresas poderá contribuir para explicar como os capitalistas operam a ligação entre os seus interesses e os de outros sectores da sociedade que ideologicamente dizem ser-lhes opostos e que na vida concreta aparentam não ter qualquer contacto.

Nota

[*] O termo bail-in foi popularizado primeiro por The Economist e classifica uma situação em que os credores de uma instituição, neste caso de um banco, são obrigados a prescindir de parte do que lhes seria devido, contribuindo assim para salvar a instituição. O bail-in opõe-se a um bail-out em que a instituição é salva por fundos públicos, disponibilizados pelo Estado.

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