Em reunião para pensar em estratégia conjunta de enfrentamento à repressão penal sobre manifestantes, o dirigente de determinado partido, ao questionar a proposta colocada pelo movimento que chamou a reunião, afirma: “O momento é grave. Estamos prestes a ter o primeiro preso político desde a entrada de Dilma na presidência. Nossos militantes estão em estado de alerta. Precisamos nos preparar para enfrentar a volta do Estado de Exceção”. Inquieto com a fala do dirigente, um membro do movimento rebate: “As primeiras prisões políticas do Governo Dilma ocorreram exatamente no momento em que ela assumiu o posto. A seletividade racista e classista do sistema penal é antiga e seguiu com a entrada da presidenta. Hoje temos mais de 500 mil prisões políticas no país. Não podemos fazer uma crítica parcial ao sistema penal”. O dirigente abaixa a cabeça, retoma o fôlego e prossegue: “Mas estou de acordo com a proposta de vocês. Pode contar com o nosso apoio”. Um Observador
O mito de que todo o preso comum é um preso político tem raízes antigas e encontra-se já no romantismo francês da primeira metade do século XIX, nomeadamente através de um dos personagens centrais da Comédie humaine. Nos finais do século XIX e até à primeira guerra mundial esse mito adquiriu uma grande relevância entre os anarquistas, e continuou a prevalecer entre os anarquistas catalães até à guerra civil. A noção de acção directa confundia-se nessa época com atentados individuais e roubos. Seria bom que quem hoje defende esse mito estudasse aquelas manifestações práticas e o seu contributo para a difusão do anarco-individualismo, e seria interessante também que estudassem o papel desempenhado pelos criminosos comuns na constituição das milícias fascistas em Itália e na Alemanha e na colaboração com as autoridades policiais nazis na França ocupada, em 1940-1944. Não faria mal se estudassem ainda como a luta dos presos políticos contra os presos comuns — uma luta mortal — foi uma parte indispensável da resistência antifascista nos campos de concentração do Terceiro Reich. Neste contexto, conviria igualmente estudar a constituição do Sonderkommando dos SS, a sua composição e as suas funções. Também não faria mal se estudassem a difusão do mito de que todo o preso comum é um preso político no movimento negro norte-americano e a forma como contribuiu para que este movimento adoptasse as posições que hoje adopta. Assim como seria conveniente estudar o papel desempenhado pelas organizações de criminosos comuns na manutenção da ordem social no Japão actual. É uma grande leviandade não usar as lições da história, sobretudo quando se quer definir programas práticos, e se a história não servir para avaliar as consequências de certas ideias, então não servirá para nada. Somar o desconhecimento à ingenuidade quando se trata deste tipo de questões é muito perigoso, e é catastrófico quando se corre o risco de levar outras pessoas atrás.
No Brasil dos nossos dias, a tese de que todo o preso é um preso político implicaria de imediato uma aliança entre os movimentos sociais e o tráfico, que, se fosse efectivada, forneceria à polícia os informadores e provocadores de que ela necessita, além de outras coisas. A curto prazo os movimentos sociais seriam destruídos a partir de dentro. Os defensores desta tese estarão preparados para isso?
Bastaria olhar em redor para ver a ingenuidade de teses como esta, mas há pessoas que andam com a cabeça embrulhada nas faixas das manifestações.
Abaixo, alguns observações de Foucault que acho extremamente pertinentes e lúcidas sobre a relação estreita entre crime, polícia, política e repressão:
“Relançado sem cessar pela literatura policial, pelos jornais, pelos filmes, atualmente, o apelo ao medo do delinquente, toda a formidável mitologia aparentemente glorificante, mas, de fato, atemorizante, essa enorme mitologia construída em torno do personagem do delinquente, em torno do grande criminoso tornou natural, naturalizou, de algum modo, a presença da polícia no meio da população. A polícia, da qual não se deve esquecer tratar-se de uma invenção igualmente recente, do final do século XVIII e começo do século XIX. Esse grupo de delinquentes assim constituído e profissionalizado é utilizável pelo poder, para muitos fins, utilizável para tarefas de vigilância. É entre esses delinquentes que se recrutarão os delatores, espiões etc. É utilizável também para uma quantidade de ilegalismos vantajosos para a classe no poder. Os tráficos ilegais que a própria burguesia não quer fazer por si, pois bem, ela os fará muito naturalmente por meio de seus delinquentes. Portanto, vocês veem, com efeito, muitos lucros econômicos, políticos, e, sobretudo, a canalização e a codificação estreita da delinquência encontraram seu instrumento na constituição de uma delinquência profissional. Tratava-se, então, de recrutar delinquentes, tratava-se de fixar pessoas à profissão e ao status de delinquente. E qual era o meio para recrutar os delinquentes, mantê-los na delinquência e continuar a vigiá-los indefinidamente em sua atividade de delinquente? Pois bem, esse instrumento era, bem entendido, a prisão.” (Pontos de Vista, conferência proferida em 1976 )
“De fato, rapidamente percebemos que, longe de reformá-los, a prisão apenas os constituía [os delinquentes] em um meio: aquele em que a delinquência é o único modo de existência. Percebemos que essa delinquência, fechada sobre si mesma, controlada, infiltrada, poderia se tornar um instrumento económico e político precioso na sociedade: é uma das grandes características da organização da delinquência em nossa sociedade, por intermédio do sistema penal e da prisão. A delinquência se tornou um corpo social estrangeiro ao corpo social; perfeitamente homogénea, vigiada, fichada pela polícia, penetrada de delatores e de “dedos-duros”, utilizaram-na imediatamente para dois fins. Econômico: retirada do lucro do prazer sexual, organização da prostituição no século XIX e, por fim, transformação da delinquência em agente fiscal da sexualidade. Político: foi com tropas de choque recrutadas entre os malfeitores que Napoleão III organizou, e foi o primeiro, as infiltrações nos movimentos operários.” (Na Berlinda, 1975)
a tese de que todo preso é um preso político me trás muitas dúvidas. Talvez assim seja por me faltar estudo na área jurídica, mas aí vai:
1) Se o sistema penal é político, também o são todos os demais sistemas jurídicos. Todo individuo multado é um multado político? O cidadão que é obrigado pela justiça a pagar pensão à mulher, também ele é vítima de um sistema político disfarçado de jurídico?
2) A Constituição também é um sistema político. No entanto eu não vejo que se faça críticas aos que defendem o direito à moradia garantida por esta mesma Carta. Apontar medidas de Estado de Exceção, as inconstitucionalidades das ações dos governos de turno, o incumprimento de certas prerrogativas constitucionais… enfim, usar a Constituição como instrumento para conquistar vitórias para os trabalhadores, seria isso uma “crítica parcial” à democracia liberal? Coisa de reformistas “filo-constitucionalistas”? Para esse caso em especial a crítica parcial é válida?
(aliás, não entendo “crítica parcial” no caso citado acima. Até onde entendo, o apelo contra a prisão política não é uma crítica ao sistema penal, em último caso é uma crítica à mentira que permite que seja usado este código contra o militante. O preso político é alguém que justamente não cometeu crime algum, está sendo perseguido por sua posição política. Se se tratasse de um militante sabidamente homicida o qual se está tentando tirar da cadeia pelo mero fato de pertencer a um ou outro partido, aí sim entendo que o que se está buscando é um privilégio, uma clara separação entre o criminoso comum e o criminoso de partido. Para isso servem as anistias, as restritas e as irrestritas. Serão críticos “parciais” aqueles que defenderam em seu momento a anistia para ex-guerrilheiros?).
Tentando esquematizar: como é que “lutar por outro modelo de justiça para aqueles que cometem infrações” se contrapõe à “lutar para que aqueles que não cometeram infração nenhuma deixem de enfrentar processos de justiça”?
Estou ciente de que ambas lutas podem e devem ir juntas, o que não entendo é como alguém pode achar que uma é contrária à outra.
Achei pertinente a observação trazida por humanaesfera, em especial esta passagem: “Percebemos que essa delinquência, fechada sobre si mesma, controlada, infiltrada, poderia se tornar um instrumento económico e político precioso na sociedade”(…). Talvez não seja uma verdade absoluta, mas, me parece, coerente, especialmente se observada a realidade de que, na sociedade contemporânea o medo, em suas mais variadas formas, possui um papel central na formação e na própria vivência humana. É o “paradoxo” de Hobbes: se o contrato social se fundava no apaziguamento da luta de todos contra todos, o capitalismo se funda e se realiza justamente na luta de todos contra todos. Assim, apenas para exemplificar, o “ladrão” pode roubar porque tem fome, mas a fome existe porque o sistema é necessariamente excludente. O “ladrão” pode roubar, não para comer, mas para realizar as “imperiosas” necessidades fetichizadas a todos impostas. Mas este “ladrão” é um tanto quanto conveniente ao sistema econômico e político, afinal, também só para exemplificar, o que seria da governança se não lhe fosse permitidas suas milícias militares “institucionalizadas”? O que seria das empresas de seguro, de vigilância, de transportes de valores, dos bancos se não existissem os”larápios” de toda ordem? O que seria da imprensa hegemônica se não fossem os bandidos, vândalos, terroristas, esquerdistas?
A mesma “coragem” que nos anima buscar um lugar ao sol no “capitalismo da abundância”, mescla-se com o pavor da perda não propriamente do lugar, mas da “mera busca” por esse tal lugar ao sol ou das “ilusões necessárias” e, por isso, o império do medo propocia um campo de possibilidade as mais variadas às”deliquências” (políticas, econômicas, sociais, etc) e a consequente desarticulação e fragmentação das lutas dos trabalhadores.
A delinquência organiza-se não só nos sistemas penais e prisionais, mas também, e talvez mais gravemente dentro, por exemplo, de muitos sindicatos, cujas direções entregacionistas se perpetuam no poder destas instituições e do próprio estado. Outros, por sua vez, são natural e indissociavelmente deliquentes como os patrões e gestores.
Abraços fraternais,
Beto.
Teorias da Mais-Valia – Parte II (Karl Marx):
“O criminoso produz, além disso, toda a polícia e toda a justiça penal, os beleguins, juízes, carrascos, jurados etc. […] Enquanto o crime retira uma parte da população supérflua do mercado de trabalho e assim reduz a competição entre os trabalhadores […] a luta contra o crime absorve outra parcela dessa mesma população […]. O crime, pelos meios sempre renovados de ataque à propriedade, dá origem a métodos sempre renovados de defendê-la e, de imediato, sua influência na produção de máquinas é tão produtiva quanto as greves.”
As suas sugestões de resgate histórico, João, são bem interessantes e, sem dúvidas, contributivas com o debate.
Penso, no entanto, que há uma lição histórica mais próxima e ainda viva que, nessa medida, parece ser mais determinante a uma análise consequente para esse entrave de consignas: a luta dos “presos políticos” da Ditadura brasileira, sua formação como campo político-partidário (campo democrático popular) e sua (im)compostura com os artificialmente denominados “presos comuns”.
A uma pessoa desavisada, é fácil crer que a Ditadura brasileira exterminou, torturou e prendeu apenas “militantes”, e não as centenas de milhares de jovens negros e indígenas igualmente esmagados pelo sistema penal.
É nessa mesma marcha que aquela tal esquerda ignora ou faz secundar, amplamente, o aprisionamento massivo e seletivo operado, desde o início dos anos 90, junto a uma contundente política de extermínio. Parece que, não à toa, os tais “presos políticos”, chegando ao poder, pouco fizeram para desarticular esse moinho de moer carne negra (bem pelo contrário, modernizaram um tanto esse moinho, fazendo emergir algo que deveria ser bastante óbvio: como é também comum os tais “presos políticos” se aliarem às forças repressoras…).
Veja bem: “toda prisão é uma prisão política” é uma consigna medida não pela consciência política dos alvos das algemas (mensuração que me parece pra lá de absurda e pedante), mas pela estrutura classista, racista e patriarcal do sistema penal. Se algumas e alguns militantes caem atrás das grades após se organizarem a ponto de desestabilizar a ordem, as pessoas alvejadas pelo sistema penal cotidianamente assim o são exatamente para serem enquadradas antes mesmo de qualquer movimento subversivo.
Bom esclarecer outro ponto: a consigna não é uma tese. É um mote contra o elitismo classista e racista recôndito na reivindicação de “presos políticos”. Não houvesse essa reivindicação, o mote ficaria a ver navios, sem ter ao que se opor. No máximo, é uma tese sobre o vanguardismo que estrutura essa defesa de “presos políticos”.
Outra questão de relevo: a consigna, como outra qualquer consigna, é incapaz, por si só, de produzir consequências políticas relevantes. Ela é, antes, expressão de um processo político real, esse sim produtor de consequências. Se o avanço do capitalismo monopolista fomentou o encarceramento em massa e o genocídio, trouxe, contraditoriamente, as condições para que movimentos de vítimas do Estado e de familiares de pessoas presas surgissem. É da articulação entre esses movimentos com outras lutas populares e do contraponto à vaidade da criminalização diferenciada, recorrente nos movimentos hierarquizados e nos partidos, que emerge a consigna. Não se trata, como você sugere, de diletantismo ingênuo e inconsequente.
O que mais restaria pra dizer já o disse noutra oportunidade. Reproduzo para não chover no molhado:
A distinção entre “preso político” e “preso comum” não é mais do que uma concessão do capital, por meio da sua forma político-jurídica, às forças organizadas contra ele. Não à toa a definição de “preso político” que você defende pode ser encontrada, em termos idênticos ou em termos outros, em manuais de direitos humanos, de direito internacional e até mesmo em (“imperdíveis”) obras de direito penal…faz parte da doutrina do garantismo e, portanto, das teorias legitimadoras do sistema penal.
Reivindicar essa expressão é, pois, reivindicar um aparato jurídico gentilmente cunhado a um propósito nada ingênuo: separar artificialmente “o joio do trigo”; algo como o que se tenta fazer hoje quando se (tergi)versa sobre “manifestantes pacíficos” e “vândalos”…
É mais do que isso, ainda.
O crime não é algo dado, ontologicamente preconcebido e, desse modo, aistórico. A visão jurídica do que é crime é datada e provém das determinações específicas do capitalismo. Não apenas na definição legal (criminalização primária), mas sobretudo na operação das agências repressoras (criminalização secundária), é construída a versão oficial do que é crime e de quem é a/o criminosa/o – e isso vale igualmente quando se trata de reprimir organizações políticas.
Na medida em que funciona embalado pelos ritmos do capital e é, portanto, uma estrutura de classe, o sistema penal opera seletivamente: PERSEGUE quase que exclusivamente aquelas e aqueles que representam potencial perigo/oposição ao capital – as massas de expropriados, escravizados e excluídos.
Desse modo – e a tomar como exemplo o Brasil – apesar de termos uma gigantesca coletânea de crimes legalmente definidos (talvez algo próximo ou sobejante a mil), 80% da população prisional é acusada/condenada por crimes contra o patrimônio ou pequeno tráfico de drogas (e, aqui, valem os parênteses: é bastante equivocada a visão do João sobre quem são, oficialmente, as/os traficantes. O Legume é bastante certeiro quando os qualifica como trabalhador@s – em geral, extremamente precarizad@s, diga-se. Obviamente, grandes financiadores do tráfico sequer tangenciam as grades, contando com o farto exército de jovens negr@s que se sucedem nos postos mais baixos, precários e perigosos da cadeia do tráfico para servirem de bode expiatório da “guerra [do capital] às drogas [igualmente do capital]“).
Há aí o que se convencionou chamar na crítica ao sistema penal de “cifra oculta”: a parte massiva dos crimes cometidos – nos termos do que a legislação determina – não é, paradoxalmente, considerada crime, vez que passa ao largo do aparentemente neutro trabalho das agências repressoras.
Nesse sentido, é evidente que não há prisões dentro da regra, salvo se , conscientemente, já se assimila como “dentro da regra” a regra estruturante do sistema penal: a seletividade.
Não faz sentido falar de um sistema penal que funciona “normalmente”, “dentro das regras” (e haveria de ser perguntar ainda: regras feitas por quem e voltadas a quem?), e outro que funciona “excepcionalmente”.
O sistema penal é um só e tem objetivos materiais bem concertados: garantir a propriedade capitalista, reprimir organizações insurgentes, submeter potenciais grupos insurgentes, desatar laços de solidariedade e – aqui é importante sublinhar – FORJAR E MANTER A CRIMINALIDADE OFICIAL.
Fragmentar presos em políticos, comuns, geopolíticos, ilegais, etc, equivale, ainda que de forma indireta, a fragmentar a classe proletária/subproletária.
Pralém disso, serve à legitimação de um sistema penal que se sustenta a partir de absurdos objetivos formais de ressocialização, quando, concretamente, reproduz e aprofunda as condições de desigualdades próprias da lógica exploratória e predatória do capital.
É nesses termos, contra uma tradição equivocada herdada da esquerda que se ergueu bravamente contra a Ditadura Militar, que se reivindica que toda prisão é uma prisão política.
Toda prisão é uma prisão política porque a prisão serve exclusivamente à dominação de classe e não, como anunciam os agentes da ordem, ao combate da criminalidade.
Toda prisão é uma prisão política porque, pra lembrar de Pasukanis (executado por Stálin em razão da radicalidade de seu pensamento), “a jurisdição criminal do Estado burguês é o terror de classe organizado que só se distingue em certo grau das chamadas medidas excepcionais utilizadas durante a guerra civil”*.
Ao contrário do que defende o João, a consequência dessa “pretensão” não é desmobilizar a defesa de militantes pres@s, mas sim a de politizar tal defesa e, quiçá, provocar saltos de consciência crítica ao fetiche da forma jurídica.
Em tempo, vale a dica fisgada da página do Maxi Postay:
“Dejen de usar la categoría “preso político” compañeros militantes.
Dejen de ser racistas, sectarios.
Dejen de discriminar. Salgan del dogma decimonónico.
Caminen la calle y dense cuenta que su “lucha parcial” no siempre significa un avance.
Dejen de pensar que todos los males habidos y por haber los originó la última dictadura militar.
Dejen de interpretar la historia universal desde microclimas nacionales.
Dejen de hablar de memoria desde la desmemoria y la descontextualización.
Dejen de cuantificar el dolor. De jerarquizar el llanto de unos en detrimento de las lágrimas de otros.
Dejen de hablar de derechos humanos en contextos inhumanos.
Dejen de citarse a ustedes mismos. Dejen de vender libros. Dejen de hacer negocios con el “cambiamos un poco para no cambiar nada”.
Dejen de creer en santidades académicas. Dejen de buscar el aval de “su santidad”.
Dejen las plumas, el conchero y la marquesina.”
Tantas palavras, as de Rodolfo, para não responder a um único dos casos concretos que eu evoquei.
Quanto ao caso concreto que Rodolfo evocou, dos presos políticos e presos comuns na ditadura militar brasileira, será interessante estudar como das tentativas de convergência que então tiveram lugar resultou o fortalecimento do crime organizado no Rio de Janeiro. E o crime organizado não é anticapitalista, pelo contrário, é um instrumento de defesa do capitalismo.
Tão poucas palavras “evocadas”, as de João, para, pela segunda vez, esquivar do que coloquei. Pior: sugere que o “crime organizado no Rio de Janeiro”, sem sequer tomar o cuidado de definir criteriosamente o conceito, foi fruto “das tentativas de convergência que então tiveram lugar”…
É de um simplismo comovente.
Uma, duas tentativas de debater seriamente…ficamos por aqui.
Ué Rodolfo, qual é a dificuldade em compreender o que se trata do crime organizado no Rio de Janeiro?
O ponto não são necessariamente as premissas de onde parte (eu tenho acordo com muitas, acho outras pouco precisas e algumas outras equivocadas), mas as conclusões a que chega. Então o caminho, para não virarmos um debate acadêmico, é mostrar alguns pontos que baralham a sua conclusão.
Falando das frações do Rio:
A mais famosas de todas as organizações do crime organizado no Rio é o Comando Vermelho (CV), que eu acredito, a julgar pela notoriedade de filmes e livros produzidos sobre o assunto, que não seja preciso explicar como essa organização se formou a partir da convergência entre presos comuns (desorganizados) e presos políticos.
Depois, surgido como um racha do CV, se formou o Terceiro Comando (TC).
Em 1994 quando Uê foi expulso do CV após tramar o assassinato de uma de suas “lideranças”, formou-se o Amigos dos Amigos (ADA).
Só que em um momento onde foi necessário juntar forças das facções contra a polícia surgiu o Terceiro Comando Puro (TCP), um racha daqueles contrários à aliança tática entre TC e CV, somados com membros egressos do ADA.
Além destas organizações típicas do crime, no Rio existem as milícias, que hoje estão ocupando um espaço considerável do espectro do crime organizado na cidade.
Tendo estas coisas em conta dá pra fazer algumas considerações. Se admitirmos, como faz boa parte da esquerda, que aquelas organizações do crime organizado são uma das consequências da forma como a ditadura militar geriu seus presos, admitindo também, como faz boa parte da esquerda hoje, que o crime organizado é uma das principais justificativas de aumento do aparato policial, conclui-se, como todos, que a ação daquelas organizações do crime fez surgir posteriormente a necessidade (mesmo que ideológica) do fortalecimento das polícias.
Agora, se considerarmos também, como faz a quase totalidade das pessoas, que as milícias são formadas quase que exclusivamente por policiais e ex-policiais, é possível fazer uma linha do processo histórico e perceber que parte significativa do que entendemos hoje como problemas que se apresentam a maior parte da população pobre e periférica (e não só!!) é fruto de uma convergência que se mostrou muito mais do que desastrada. Não?
Talvez há confusões muito grandes na ideia de que todo preso é um preso político. A intenção, creio, é de mostrar que são situações políticas que fazem com que certos setores sociais se marginalizem e que alguns se criminalizem para que consigam um espaço ao capitalismo… portanto toda prisão é política porque o que leva um jovem de periferia à criminalidade são as falhas dos serviços sociais, por exemplo; ou que a prisão de um trabalhador negro reflita a formação racista da sociedade brasileira. Mas acho que isso não caracteriza uma prisão política, ou uma prisão por “crime contra o Estado”. Mas ainda assim eu concordo que toda polícia TAMBÉM é uma polícia política – vide “Operação 2,80” em Goiânia.
Tenho medo de quando as coisas se misturam. De fato não se pode negar qual é o perfil da maioria dos presos comuns e que isso é indicador de tudo o que falaram aí. Aí cabem as críticas de esquerda ao sistema penal e as reflexões acerca dos direitos humanos.
O problema é essa generalização da frase: quando se diz que todo preso é um preso político, vamos ter que cerrar os punhos em apoio a um Roger Abdelmassih?
“sou traficante e militante, como fico?”
Gostaria que o João Bernardo e demais defensores de que há uma separação clara entre presos políticos e presos “normais” esclarecessem, sem titubear, o uso dos autos de resistência enquanto justificativa para assassinar jovens negros Brasil à fora, os desaparecimentos de homens adultos e jovens em UPP’s, assassinatos de menores por policiais em valas afastadas do centro, o forjamento de provas para tentar eliminar “elementos não desejáveis” de certas paisagens, entre muitos outros casos que podemos citar do aparato repressivo funcionando “fora de suas regras” ou dentro dela, como no primeiro caso. É interessante lembrar que para ser preso, basta o testemunho do policial sobre o condenado. A seletividade não é mesmo a regra do nosso sistema penal?
Se Samuel estivesse tão interessado em conhecer a minha posição, decerto teria lido o que escrevi nos comentários aos dois textos em que este problema está a ser discutido. Recordo que num dos comentários (3 de Setembro, 07:04) ao artigo «Seletividade do juízo: o caso de Rafael Braga Vieira» escrevi, entre outras coisas: «A luta contra o sistema policial, judiciário e penal vigente é indispensável, tal como o é a luta contra a disseminação do punitivismo, incluindo linchagens e escrachos. […] Mas a defesa dos presos por motivos políticos deve ser feita em termos distintos da defesa dos presos comuns, recorrendo a uma argumentação diferente e invocando outro tipo de critérios. Ainda mais importante do que isto, deve haver uma completa separação organizacional entre a defesa dos presos políticos e a defesa dos presos comuns». Lutar contra o sistema policial, judiciário e prisional existente não implica que todos os presos devam ser considerados como presos políticos, e muito menos como presos políticos de esquerda.
Já agora, e como houve quem pretendesse que eu desconhecia os aspectos práticos do problema, quero dizer que fui preso político e fui preso comum. Fui ambas as coisas. Não sei se algum dos intervenientes no debate pode dizer o mesmo.
RESUMO DA ÓPERA:
Em confronto, há duas linhas de argumentação: uma, prática e conceitualmente comprometida, classista no sentido igualitário e libertário do termo; a outra, ideológica e casuisticamente submissa à empulhação pós-modernista.
A primeira linha é a de João Bernardo; na segunda, amontoam-se os seus contraditores mais ou menos desinformados.
Os comentários do João Bernardo dão conta da questão prática e concreta da polêmica. Mas como eu tenho a intuição de que se trata de um problema linguístico para a maioria dos defensores da tese, já que a polêmica surge contra uma consigna e não contra uma prática, gostaria de perguntar ao Samuel:
O mesmo Estado gasta parte de seu orçamento em saúde pública e também em balas que matarão os jovens negros de periferia. Combater uma faceta deste Estado demanda que as demais facetas sejam encaradas exatamente da mesma forma?
Combater as diferentes facetas do direito penal demanda abordagens que respondam aos objetivos e métodos disponíveis. Do contrário incorre-se no risco de achar que qualquer coisa que é feita “em oposição” ao sistema penal e à polícia nos leva pela senda do socialismo, e neste quesito nos remetemos diretamente aos recentes Black Blocs e a ideia de que “sair na mão” com a polícia expressa em si a luta pelo socialismo. O que é notavelmente falso, especialmente claro para quem mora em cidades com grandes torcidas organizadas que se confundem com máfias.
Que a polícia mate cidadãos comuns para revidar em sua guerra contra o PCC e demais organizações do crime, isso é um desastre que advém da estratégia deles, não de um erro tático da esquerda em se usar as palavras erradas na hora de buscar a liberdade de seus militantes presos. O erro dos militantes dos anos 70 no Brasil não foi ter se isolado da população no âmbito linguístico, mas sim no âmbito concreto.