Questionar os rumos tomados pelos distintos feminismos é estritamente necessário. Assim como de qualquer outro movimento e lutas que se propõem à superação desse sistema e desse mundo, o valor que deve nortear as organizações é o da autocrítica permanente. Por Suellen

Nas lutas contra o capitalismo, contra o machismo e o patriarcado é importante estar atento à totalidade que estamos combatendo e não apenas alguns dos seus aspectos particulares mais visíveis. “O Estado capitalista não é formado só por algumas das peças de jogo, mas, sobretudo pelas regras de jogo” [1]. Nesse sentido, uma parte da militância feminista que não atenta para a totalidade do sistema que combatem em algumas de suas especificidades acaba por se valer da prática do inimigo e, desta forma, reproduz internamente o sistema: não só se submete ao Estado capitalista e ao sistema enquanto um todo integrado, mas pior, se integra nele. A luta acaba, então, sendo assimilada, e passa a cumprir funções de legitimação do sistema causador das demandas que a luta inicialmente buscava ver atendidas.

O feminismo não é experiência nova, como se num ato, num evento ou data o assunto estivesse em pauta. Durante a segunda metade do século XIX e XX podemos encontrar mulheres que lutaram e contribuíram para a perspectiva feminista. Como exemplo, e seguramente não como marco inicial, em 1885 já apareciam reflexões como no periódico italiano La questione Sociale que abordavam temas como família, relações livres, exploração do trabalho fabril e diversas formas de violência conjugal.

É de grande importância também apontar que não existe apenas um tipo de feminismo, mas muitos feminismos, dentro das correntes existentes algumas se reivindicam liberais, marxistas, libertárias, radicais, as feministas da igualdade, pós-feministas, multicuturalistas, antiessencialismos, enfim são muitas as correntes. Numa simples interpretação poderia-se resumi-las em feminismo classista ou não. Ao longo deste breve apontamento de ideias isso ficará mais claro.

Para a feminista brasileira Heleieth Saffioti, por mais progressista que tenha sido o movimento feminista pequeno-burguês, não se contentando com conquistas dos direitos formais, a mulher não chegou, contudo, a “encarar a questão da igualdade entre os sexos em função de um tipo estrutural negador desta igualdade” (2013: 190). Isto é, não relacionou a questão de gênero com a questão de classe que perfaz a totalidade da dinâmica social capitalista [2]

Tendo em vista a totalidade do sistema, a relação a ser contestada pelas mulheres organizadas não é apenas a de submissão ao sistema patriarcal, mas a simbiose de dominação-exploração.

Isso facilmente se verifica ao atentarmos para o fato de que as mulheres negras estão entre as parcelas de maior pobreza e privação do Brasil, e não é preciso uma análise empírica exaustiva para supor com realismo que a situação se repete noutros países. Possuem menor escolaridade, com taxa de analfabetismo três vezes maior que as mulheres brancas, além de menor expectativa de vida. Outros indicadores (IPEA, 2011) explicitam que no contexto da informalidade 21,4% das mulheres negras estão no trabalho doméstico e nas menores proporções de trabalho com carteira assinada (23,3%) ocupando, assim, como confirmam os dados de renda, a pior posição na escala social. A situação das mulheres negras explicita de modo gritante o caráter simbiótico da lógica capitalista de dominação e exploração, uma vez que neste sistema a dominação patriarcal atinge o ápice de hierarquização em detrimento das mulheres e, ao mesmo tempo, se aproveita e reproduz essa dominação tendo em vista melhores patamares de exploração da força de trabalho feminina e negra. Se o capital reproduz essa situação histórica e se aproveita da lógica da dominação para auferir maiores lucros, seria o caso das lutas feministas se organizarem tendo em vista o enfrentamento simultâneo de todas essas “demandas específicas”, sem repetir nas lutas a lógica da hierarquização, pelo simples fato de que, sem deixarem de ser demandas específicas com algum grau de “separação” entre si, na realidade concreta essas questões se fundem e originam de uma mesma base hierárquica de dominação e exploração dos trabalhadores e trabalhadoras pelo capital enquanto sistema totalitário que inunda todas as esferas de nosso cotidiano. O inimigo é um só, mas a luta insiste em se organizar aos fragmentos.

Para além de ressaltar que as relações sociais no capitalismo estão permeadas pela lógica patriarcal e que tais demandas são perseguidas de modo cindido, o que gostaria de colocar em discussão, neste momento, é o processo de recuperação ou assimilação do símbolo do feminismo pelo capitalismo. Especificamente, a cooptação de bandeiras e da radicalidade das lutas feministas aos setores governistas, progressistas e afins!

Dois exemplos, que não são fatos isolados, para ilustrar.

Revistas empresariais que ditam comportamentos e modas para mulheres com capas “o novo feminismo”, sites comerciais que se propõem a discutir desde relações abertas a orgasmo feminino, tudo que num passado indicava um lado radical das propostas da esquerda hoje é facilmente editado por jornalistas da mídia de massas. Muitos veem esse processo como um avanço civilizatório resultante das lutas sociais feministas. Será? O próprio fato de que tais ideologias pretensamente progressistas vêm sempre acopladas a algum tipo de orientação mercadológica e consumista nos põe a pensar sobre o caráter de tal “radicalidade” de ideias e que tipo de emancipação feminina se está a fomentar nestes meios.

Não somente dentro desses veículos de comunicação conformes à lógica da mercadoria é que se mostram as contradições. Na própria esquerda podem-se constatar situações similares, igualmente criticáveis. Em fotos da Marcha das Vadias podemos encontrar cartazes como: mulheres machistas criam monstros estupradores. Para além da intenção, que talvez seja inocentemente boa, vale a reflexão: será o “lado biologizante” gritando mais uma vez que todas as pessoas do sexo masculino são potencialmente estupradores, ou também será a culpa da mulher = mãe?. Em todo caso, o próprio cartaz contém implícita uma cisão interna que não tem nada de inocente: aquela que o escreveu certamente não se considera uma “mulher machista” e sim uma mulher feminista, feminista de verdade, feminista revolucionária, ou coisa que o valha. Trata-se, portanto, de uma manifestação daquele “feminismo excludente” que tantos males causa à luta feminista (ver aqui). Além disso, de todas as possibilidades de denúncia ou grito de luta ou expressão de protesto etc. a pessoa que escreveu tal cartaz optou por culpabilizar algumas mulheres como “criadoras” dos monstros estupradores, o que por si só já bastaria para constatar o grau de confusão ideológica que está presente tanto na mídia burguesa quanto nas lutas da esquerda: num caso busca-se aumentar as vendas de certas mercadorias associadas à “nova mulher” etc., no outro busca-se uma diferenciação de cunho moral ou ético, interna à luta feminista, e tão ou mais prejudicial à luta pela emancipação da mulher.

Claro que não negamos o sentido político progressista destas marchas, pois não negamos o papel político dos movimentos feministas. O choque contra a moral religiosa numa sociedade tradicionalmente cristã; o questionamento do corpo da mulher como uma mercadoria a ser usada e consumida sem autorização; como também a luta pelo reconhecimento social do direito ao prazer, à escolha dx(s) parceirx(s) nos relacionamentos íntimos e a liberdade feminina como um todo, foram e são bandeiras necessárias.

Entretanto essa necessária resistência pode ser feita por outras vias. Imagino ser preciso superar o midiatismo, de uma sociedade de espetáculos, construindo assim o avanço na discussão, pois ainda estamos no campo da culpabilização do individuo, do caráter punitivista, e vale lembrar que os movimentos feministas a partir da década de 70 já incluíam em suas plataformas bandeiras de punições aos que cometeram atos de violência.

Obviamente não é um desejo a desresponsabilização dos assuntos relativos às mulheres. Não superamos o machismo sequer no âmbito interno às lutas e organizações que se propõem a instituição de um mundo sem machismo. Questionar os rumos tomados pelos distintos feminismos é estritamente necessário. Assim como de qualquer outro movimento e lutas que se propõem à superação desse sistema e desse mundo, o valor que deve nortear as organizações é o da autocrítica permanente.

Um olhar atento à bagagem histórica das lutas feministas pode muitas vezes indicar caminhos. Os movimentos que tentaram articular na luta a simbiose entre dominação e exploração, tais como os Panteras Negras, utilizariam as mesmas regras do jogo do Estado capitalista para a resolução dos conflitos, ou nos mesmos marcos colocados pelo sistema. Como procederiam quando houvesse violências contra as mulheres, ou homofobia, dentro da própria organização feminista? Como tratariam estas questões?

Numa entrevista feita em 2004 Angela Davis problematizou:

“Punição, para ser breve, pode ser vista em conexão com a vigilância. Mas é frequentemente resultado de uma vigilância maior. Aquelas comunidades mais sujeitas à vigilância da polícia são muito mais propensas a produzir mais corpos direcionados à prisão. E, mais importante, a instituição da prisão, parece-me, tem evoluído ao longo dos séculos, mas especialmente nos últimos vinte anos, para uma solução punitiva a toda uma gama de problemas sociais que não estão sendo tratados pelas instituições e que poderiam fazer a vida das pessoas melhor. Ao invés de construir moradias, jogue os sem-teto na prisão! Em lugar de desenvolver o sistema educacional, atire os analfabetos na prisão, como também os que perderam empregos por conta da desindustrialização relacionada à globalização do capital e ao ajustamento estrutural. O senhor sabe, livre-se deles! Eles são considerados populações dispensáveis. Assim, a prisão torna-se um meio de desaparecer com as pessoas e com os problemas sociais associados a elas.” [3]

Lembremo-nos do seguinte caso de violência a uma mulher e a forma como coletivos de esquerda lidaram com a situação, nesse caso em específico o fato ocorreu na Rádio Várzea (esse comunicado pode ser visto na própria página de facebook da Rádio).

“…Na sexta-feira (03/10) quatro integrantes do coletivo Rádio Várzea Livre receberam uma denúncia de agressão à uma mulher por parte de um novo integrante do coletivo. A denúncia foi realizada pela própria vítima. A agressão foi anterior à participação do denunciado na Rádio Várzea Livre e até então era desconhecida por todxs – já que o caso estava sendo mantido em sigilo pela vítima. Ao tomarem conhecimento da agressão, os integrantes se colocaram ao lado vítima e se comprometeram (em nome do coletivo) a respeitar o encaminhamento proposto (isto é, pela vítima): expulsão do agressor do coletivo e de seus espaços; e manutenção do sigilo da denúncia e da vítima. Na segunda-feira, 06/10, foi solicitado ao agressor o seu afastamento do coletivo até que a denúncia se tornasse pública para os demais integrantes, o que ocorreu em reunião na quarta-feira, 08/10 (conforme acordado com a vítima e a partir da avaliação, feita em conjunto com a própria vítima, sobre a sua segurança)…”

A violência contra qualquer mulher não pode ser tolerada, mas é esse tipo de resolução de problemas que a esquerda adota? Atitude: Expulsão! Etiquetamento: Agressor Carlos Henrique Almeida!!

Se são os espaços autonomos-libertários que propõem outras formas de sociabilidade, como podem reproduzir o mesmo Estado Penal? Esta é a resposta aos papéis de gênero construídos historicamente… a patologização do agressor. Podem também justificar junto com Lombroso que existem estereotípicos.

Um senhor muito conhecido por nós dizia ainda em meados do século XIX que “a crítica não arranca flores imaginárias dos grilhões para que os homens [e as mulheres] suportem os grilhões sem fantasia e consolo, mas para que se livre deles e possam brotar as flores vivas”. [4]

Detendo-se a discussão primeira, me parece óbvio questionar as pautas e a que se prestam tais movimentos feministas, como a nota em defesa da presidenta Dilma pela violência machista sofrida na abertura da Copa do Mundo, já comentada nesse site. Ou a utilização eleitoreira da legitimidade das lutas e bandeiras feministas

Em 26 de setembro de 2014 o site Viomundo publicou uma matéria graciosamente intitulada: Feministas apoiam Dilma: “Os avanços não podem parar” [5]. Ali foi defendida a ideia governista de que as lutas feministas teriam avançado muito durante e em comunhão com o atual governo. A nosso ver o que aquelas feministas apoiam é o desenvolvimento econômico capitalista, só que com uma pequena palavra somada: a inclusão social. Com tal apoio dado por feministas e órgãos de luta pautados pela bandeira feminista tem-se o fortalecimento de iniciativas e políticas públicas de institucionalização das bandeiras. Algo similar ocorre no âmbito da bandeira da Reforma agrária, quando lutadores e órgãos de luta pautados nessa bandeira defendem o governo alegando que o PT defende a agricultura familiar. Fecha-se os olhos para a decidida opção governista de privilegiamento do agronegócio em detrimento das lutas de base dos movimentos rurais por outro modelo de desenvolvimento econômico, político e social. Aliás, essa falta de olhar crítico sobre as mazelas e déficits do governo é uma marca registrada na quase generalidade dos discursos da ala governista. Cooptados e assimilados pelo governismo, alguns órgãos de luta colocam de bandeja, no colo do governo, o que foram demandas históricas expressas na prática das lutas, de diversos setores e movimentos sociais, organizações de bairros, reproduzindo a lógica de paternalismo/maternalismo estatal e governamental, e permitindo a reorientação e metamorfose dessas bandeiras para uma nova configuração conforme a lógica do lucro, ou seja, esvaziando as bandeiras de qualquer conteúdo radical contestatório do sistema como um todo.

Mas tudo isso não vem ao caso para certos feminismos excludentes, uma vez que se passa por cima das contradições baseando-se na justificativa do quão brilhante e glamouroso é para o avanço feminista (e para seus próprios cargos em secretarias, etc.) ter “uma mulher dirigindo o pais”, ou seja, gerindo o capital por meio da esfera estatal. Toda contradição se apaga de antemão quando aparece esvaziado de conteúdo o discurso da igualdade de gênero, que passa a compor o ideário das políticas públicas do governo da presidenta Dilma. O apoio indiscriminado ao governo Dilma, por ser ela mulher, tal como o apoio indiscriminado ao governo Obama, por ser ele negro, compõe um dos indícios do quão assimiladas foram as bandeiras feminista e negra, ou, o que dá na mesma, indica o quão competentes foram os governos em sua prática de recuperação e assimilação de bandeiras históricas da luta da classe trabalhadora contra a opressão, dominação e exploração, seja em seus componentes de gênero, raça ou classe.

Até que todas sejamos livres?

Ainda atenta às bagagens históricas das lutas feministas, não só Bakunin poderia ressurgir nas mobilizações de rua, mas algumas feministas que desenvolveram importantes atividades autônomas e que teriam muito a nos ensinar…desde modos de alfabetização, cursos sobre as condições das mulheres que se prostituíam, até a construção de um hospital maternal denominado Louise Michel (a revolucionária francesa que participou da Comuna de Paris) realizando do pré-natal à discussões sobre sexualidade. Estas foram experiências do coletivo Mujeres Libres (à época da Guerra Civil espanhola).

Um outro exemplo histórico que muito tem a nos dizer, embora dentro de seus limites, foi a Revolução Russa. O desafio de pensar a organização da sociedade para além do núcleo familiar, em uma perspectiva coletiva norteada pela atuação do Estado enquanto “Ditadura do Proletariado”, foi certamente uma experiência que merece um olhar atento, seja pelo positivo ou negativo. Recentemente traduzido no Brasil, o livro “Mulher, Estado e Revolução” de Wendy Goldman [6] traz uma aprofundada pesquisa sobre os avanços e limites daquela experiência pós-capitalista. Compreendemos que este processo se dá em meios temporais diferentes, mas abre veredas, pequeninas janelas, para novas perspectivas que certamente podem, de algum modo, lançar luz sobre nossa prática militante no contexto atual. Temas de muita atualidade nas lutas feministas contemporâneas já foram debatidos e tiveram tentativas de solução postas em prática há quase 100 anos na URSS. Se a persistência dos problemas ao longo de tantas décadas às vezes desanima, não deixa de ser inspirador constatar os avanços teóricos e os muitos ensinamentos que precisamos o quanto antes aprender, para não repetirmos os mesmos erros.

A abolição da família, em vez do conflito de gêneros dentro dela, era pensada como a chave da emancipação das mulheres. A socialização do trabalho doméstico eliminaria a dependência das mulheres para com os homens e promoveria uma nova liberdade nas relações entre os sexos. (GOLDMAN, 2014, p. 24).

Para os sujeitos daquele tempo histórico a necessidade era de criações de lavanderias públicas, alimentação em restaurantes coletivos, assim como as crianças estariam sob a criação e responsabilidade pública.

No contexto atual tudo isso pode até parecer utopia, ainda assim pensar outras formas de organização da família traz a lucidez do restrito campo de luta defensiva em que estamos inseridos. Perceber onde estamos e para onde precisamos ir na luta pela emancipação da mulher, bem como os distintos caminhos velhos e novos dessa luta, é um começo essencial.

Notas:
[1] BERNADO. João. A autogestão da sociedade prepara-se na autogestão das lutas. Publicado em Piá Piou!, Novembro de 2005, nº 3.
[2] SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Ed.Expressão Popular. São Paulo, 2013.
[3] Disponível aqui.
[4] MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução. Temas de Ciências Humanas n° 2. São Paulo, Grijalbo, 1977.
[5] Disponível aqui.
[6] GOLDMAN, Wendy. Mulher, Estado e Revolução. 1ed. São Paulo: Boitempo, 2014.

13 COMENTÁRIOS

  1. Cara gostei do texto mas gostaria de saber quais as propostas de se lidar com violência de gênero dentro de coletivos… vc chama o afastamento d agressorxs dxs coletivxs como reproduzindo o estado penal, mas qual é a proposta pra se fazer diferente? O que acontece com as sobreviventes? Vlw

  2. Não sei qual será a resposta da autora à pergunta dx “mah”, mas recentemente alguns casos de “escracho espontâneo” me chamaram a atenção, e fiquei a pensar o quanto essas formas de punição usadas pela esquerda refletem a própria incapacidade nossa de tratar e resolver essas questões por mecanismos mais, digamos, “produtivos”. É como se fosse uma substituição: uma destilação de rancor de quem foi incapaz de resolver de outro modo a questão. Por exemplo: escracho na frente da casa de um torturador da ditadura, como a resposta de uma esquerda que não teve força para impor a comissão da verdade e justiça. Escracho virtual do blogueiro que usava de seu status para paquerar mulheres casadas e alunas (ver aqui: http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2014/11/se-ele-fosse-assim-publicamente-nao-lhe.html). Ou o escracho recentemente aconteceu na UERJ: um aluno foi machista com uma moça dentro de um CA. Esta saiu do CA, trancou a porta com o machista dentro, buscou reforços em outro CA e fez o escracho na hora, com direitos a cusparadas e tudo. Posso estar exagerando, mas pra mim esses escrachos e formas de punição espontânea tem um pezinho no fascismo.

  3. Gostei do texto! Sempre bom, em tempos de machismo no interior da esquerda e das lutas, pensarmos estratégias de enfrentamento da violência sexista para além da dinâmica da vítima e do monstro e da delegação da resolução dos nossos problemas para a esfera estatal, que não faz mais do que reproduzir e assegurar as desigualdades sócio-sexuais e raciais.
    Pensando nisso, inclusive, gostaria de prosear um pouco sobre o assunto.

    Sobre a parte do texto que trata do punitivismo, acho acertada a aposta numa resolução dos conflitos e do enfrentamento da violência fora dos marcos da punição. Queria começar compartilhando minha impressão de que o problema do punitivismo em casos de violência doméstica não é a punição do homem, até porque dificilmente ela acontece, mas sim a NÃO PROTEÇÃO DAS MULHERES. Ainda que seja notável e consideremos o aumento do numero de homens presos, desde a promulgação da lei maria da penha, por crimes cometidos em contexto de violência doméstica, o fato é que, na imensa maioria dos casos, a possibilidade de punição do homem se perde no primeiro atendimento da mulher no distrito policial. Ao mesmo tempo, desde o advento da lei, não se pode observar redução das taxas de violência doméstica e tampouco a solução construída via sistema de justiça criminal tem se desdobrado em efetiva proteção para as mulheres.

    Isto porque proteção nada tem a ver com crime e é leviano condicionar a proteção das mulheres à existência de crime, a registro policial, inquérito, processo penal, condenação criminal. Aliás, nem a própria lei maria da penha estabelece essa vinculação de crime a proteção. Essa vinculação foi uma estratégia de luta construída pelo movimento feminista. Foi uma aposta, aposta que até eu fiz em certa medida, mas que, após 8 anos, tem se revelado tão ou mais perversa para as mulheres do que a própria violência, pois fomenta uma ilusão.
    Portanto, acredito que já é hora de pararmos para observar os resultados obtidos, seus avanços e, sobretudo, seus imensos limites e reavaliarmos a continuidade da aposta nessa estratégia, bem como sentarmos pra prosear sobre outras possibilidades de fazer esse enfrentamento, que desemboquem em proteção efetiva.

    Não nos esqueçamos que somos nós mulheres, de movimentos, organizações e, muitas vezes, trabalhadoras dos serviços de atendimento a situações de violência, que estamos enviando essas mulheres pras masmorras das delegacias de polícia para um atendimento que já sabemos que só servirá para a sua revitimização.

    Precisamos parar de acreditar e alimentar a ilusão de que algum dia a delegacia será o espaço de acolhimento dessas mulheres. Não será, porque é nesse mesmo local, e depois nos foruns e nos presídios, que se criminalizam mulheres pelas mesmas razões pelas quais os homens agridem essas mesmas mulheres. Da mesma maneira que o sistema de justiça seleciona mulheres pretas e pobres, consideradas, por sua própria condição, transgressoras da ordem patriarcal e dos padrões de gênero, seja para lotar os presídios ou se enfileirar na porta deles, ele não seleciona a vida das mulheres como um bem a ser protegido.
    Isto porque o Estado se estrutura a partir das desigualdades sócio-sexuais e serve para reproduzi-las e assegurá-las não para enfrentá-las.
    Nossa proteção somos nós que construímos!

    Nesse sentido e já tecendo considerações sobre outra passagem do texto que trata das soluções dadas para esses casos no interior da esquerda, de movimentos, organizações, ocupações e nas quebradas, quero dizer que vejo como um avanço quando as mulheres e homens saem em defesa da mulher violentada, interferindo no conflito em favor dela. Ficar ao lado da mulher coloca em prática uma série de enfrentamentos que temos feito historicamente, especialmente no que diz respeito à mulher encontrar amparo e respaldo no Outro (vizinho, camarada, familiar, amigo) de se dar conta que o que vivencia é violência, que o homem por quem nutre afeto está cometendo violência (o que não é o mesmo que dizer que ele é um monstro) e que não quer mais viver dessa forma. É preciso receber esse amparo que implica muitas vezes em se distanciar desse homem e receber ajuda para conseguir manter esse distanciamento.
    Essa solidariedade é ainda mais fundamental na situação concreta de violência, especialmente quando está havendo agressão física. Nesse momento, não há outra forma de agir que não separar o homem da mulher, retirá-lo do local em que a mulher está no seu campo de visão, evitar um dano maior e proteger de fato ela. No dia seguinte, essa situação dificilmente se reverte, é preciso tempo pra ir conversando com ambos e separadamente.Por isso, acho necessário assegurar a permanência da mulher agredida no local e o afastamento dele, assegurando a proteção dela a partir da rede de cuidado e organização das demais pessoas que se estabelece para protegê-la. Manter o homem ali é fazer com que ela permaneça em risco. Em caso de estupro de criança, é igualmente prejudicial pra esta mantê-la em contato com o homem. É preciso tempo e que outras pessoas também o acompanhem, conversem com ele, acolham.
    Separação física e condução do diálogo e acolhimento separadamente é muito diferente de proceder à expulsão e escracho, são medidas de proteção muito necessárias e, a meu ver, são, inclusive, o próprio processo de resolução não punitivo da violência.

    Vamos proseando!

  4. O complicado nessas discussões é que criam um imaginário do homem como se um dia ele acordasse e falasse: vou arrumar uma namorada para agredi-la. As coisas não se passam assim. Tudo é processual. Muitos relacionamentos que acabam em violência, tiveram anos de amor e bom entendimento. Há o lado da mulher também. Dificilmente ela não tenha contribuído ou respondido, ao menos, com agressão psicológica. Da mesma forma, o processo também é doloroso para o homem. Já vi meu pai saindo na porrada com minha mãe, de rolar no chão, e hoje eles vivem super bem. O mesmo em vários casos de conhecidos.

    Outra coisa. Numa vida, alguns relacionamentos dão certo e outros não. Isso envolve uma série de fatores, inclusive o temperamento da mulher e a forma como ela interage com o homem. Assim, ocorre de um sujeito que passou por relacionamento violento, que trocou tapas e xingamentos com uma moça, ter um relacionamento tranquilo com outra. Se a autora pesquisar sobre relacionamentos passados, vai encontrar gente que teve relacionamento violento mas que hoje vive bem. Talvez a própria autora, feminista, já tenha namorado ou possa ter um namorado que teve um relacionamento violento no passado, que incluía agressão física e psicológica dele e dela, mas que hoje vive bem com a feminista autora do texto.

    Então temos ai o primeiro problema: procura-se reduzir todo o relacionamento e toda a complexidade que nele existiu ao caso apenas da agressão ou dos momentos de agressão. Em segundo, procura-se eliminar totalmente o homem, como se ele fosse naturalmente e permanentemente um agressor e não possa ter relacionamentos saudáveis futuros.

    No meio popular, o que ocorre é a intervenção da família e de gente respeitada para evitar os atritos. A maioria dos casos são resolvidos por estes mecanismos comunitários, pelas redes pessoais e etc. Só os casos mais graves é que vão parar na delegacia. Antes da polícia, o próprio meio popular intervêm para acabar ou diminuir as agressões.

    Esse feminismo punitivo não tem absolutamente nenhuma inserção popular, nenhuma preocupação com as mulheres reais, com a compreensão e resolução do problema. Trata-se de simples disputa por poder e espaço e, em muitos casos, de puro fascismo.

  5. Sobre o caso, tenho acordo com o comentário do Antonio. Sobretudo quando afirma:

    ‘procura-se reduzir todo o relacionamento e toda a complexidade que nele existiu ao caso apenas da agressão ou dos momentos de agressão.’

    E mais, resume-se toda a relação a meia duzia de prints (escolhidos intencionalmente pela garota) de conversas em redes sociais.

    A complexidade de uma relação amorosa é reduzida a alguns prints de conversas escolhidas a dedo pela agredida. A relação é resumida a momentos de violência.

    Mas é possível sentar-se sobre baionetas, amigos?

    O mais importante desse caso é constatar que a forma como algumas feministas reagem à opressão resume-se à eliminação simbólica do sujeito. As que defendem a eliminação física não falam publicamente.

    Concordo com antonio quando diz
    ‘Em segundo, procura-se eliminar totalmente o homem, como se ele fosse naturalmente e permanentemente um agressor e não possa ter relacionamentos saudáveis futuros.’

    Está claro que o escracho tem por fim a eliminação do sujeito.

    Imaginem vocês o que esse tipo de feminismo não faria num sindicato de trabalhadores da construção civil. Não restaria um trabalhador.

    O desafio é pensar formas (com homens e mulheres) de combater o machismo sem recair sempre em formas misândricas e revanchistas.

    ps.: o pseudonimo se faz necessário porque o risco de haver constragimentos pela simples manifestação da opinião existe.

  6. A lucidez do comentário de Antonio merece destaque. Perfeito do início ao fim.
    O que impressiona é que esse caráter processual de uma relação que termina mal não deveria ser um mistério para pessoas bem instruídas, que pensam o mundo levando em consideração a complexidade das relações sociais.
    Por isso também concordo com Antonio que o interesse em não considerar as coisas dessa forma é em boa parte um interesse de poder.

    E aqui eu pego o gancho para um outro comentário que gostaria de fazer e que é sobre o uso cada vez mais banalizado entre (um tipo de) feministas da palavra “sobreviventes” (entre outras igualmente banalizadas, como “agressão” e “agressor”).

    Já vi essa palavra “sobreviventes” ser usada para se referir a mulher que tem sua fala cortada em um evento ou reunião, e coisas do tipo. Existe uma carga de simbólica nela que obviamente não é destituída de interesses.
    Por vários motivos esse feminismo que se tornou forte em meios de classe média e estudantis no Brasil me lembra muito o sionismo, e o papel fundamental que possui a reprodução da vitimização dos judeus, da lembrança do holocausto, e de imputar o pensamento nos judeus de que o holocauto judeu está logo ali na esquina.
    Sugiro assistirem ao excelente documentário “Difamação”, feito por um jornalista Israelense: https://www.youtube.com/watch?v=KwVe0-yS3d0

    A construção da insegurança através de várias técnicas é fundamental para justificação do Estado de Israel, da ideologia sionista e ao avanço dos interesses de poder por trás deles. E a reprodução da vitimização – as “vítimas históricas” – serve de justificativa para suspensão de todo direito do outro, concedendo-lhes direito absoluto, que é o que vemos na Palestina.

    Os mecanismos são muito parecidos com o que vemos nesse feminismo no Brasil. E é nisso que o vocabulário entra, e o uso corriqueiro da expressão “sobreviventes”.

    É provável que a maioria das feministas desse meio não possuam elas próprias interesses de poder, mas a insegurança delas e o modelo de visão de mundo delas é usada numa lógica de poder que não é nada progressista ou libertária.

  7. Em primeiro lugar gostaria de parabenizar a Suellen pelo artigo magistral, que foi publicado num momento muito oportuno para nossas lutas feministas!

    Queria também convidar xs comentadorxs deste texto a, se houver mais interesse pelas suas questões, lerem também um artigo que eu e um companheiro já vínhamos escrevendo a partir do caso Idelber Avelar. E que inclusive acabamos incorporando argumentos da Suellen quando tomamos conhecimento deste artigo aqui. Refiro-me ao artigo “Sobre as vítimas e nossos desafios” (http://passapalavra.info/2014/12/101252), que enviamos ao PP e eles acabaram de publicar.

    Por fim, queria aproveitar a oportunidade para ressaltar a importância do comentário acima feito pela Anastácia Livre. Eram situações concretas como esta, muito comuns em nossas quebradas, que tínhamos em vista quando começamos a escrever nosso artigo – e se tivéssemos contato com os exemplos e soluções antipunitivistas apontados pela Anastácia, certamente teríamos incorporado a citação ao seu comentário em nosso texto.

    Sigamos a prosa entre companheirxs!

    Bjos,
    Fran

  8. Compas, agradeço a leitura do texto e, principalmente, as reflexões propostas.

    Na verdade, a reflexão que propus acima parte da preocupação que compartilhei com muitas companheiras e companheiros com quem tenho caminhado, e do diálogo com alguns coletivos, inclusive com um coletivo feminista que considero responsável como o Anastácia Livre.

    Mah, eu não tenho nem desejo ter uma proposta pronta sobre o que devemos fazer, e como devemos encaminhar as diversas questões e aspectos da luta feminista. Mas considero ser um começo o que estamos tentando fazer aqui nos comentários: pensar sobre o tema de peito aberto e estabelecer um debate fraternal.

    Quando aponto a aproximação de algumas práticas colaborando com o Estado Penal, quero salientar que, para alguns isso pode não fazer sentido, mas ao deixarmos de pensar alternativas fora da esfera estatal, jogamos, com bem apresentou Anastacia, um conjunto de mulheres às masmorras.

    Quando se fala em denúncia de violência, há, incondicionalmente, que se dirigir ao distrito policial. Assim, como podemos gritar de um lado que estamos sendo executados por esta mesma PM se dirigirmos nossos conflitos a ela?

    Atualmente, estou trabalhando como assistente social, e é muitas vezes angustiante ver muitas dessas mulheres que sofrem violência e desses homens que comentem a violência, sendo entregues de bandeja, isto é, sendo encaminhados para a burocracia estatal, pois é somente o que o serviço social tem hoje para oferecer. Portanto, dentro da esfera estatal, o ciclo da dominação se reproduz.

    E nós, militantes de esquerda o que temos a ver com isso?

    Para um setor estudantil ou de coletivos autônomos, as formas de enfrentamento como a expulsão e os escrachos podem ser um meio (e não que eu concorde com ele). Mas o que tento chamar a atenção é que para grande parte das mulheres no cotidiano essa opção não corresponde e não se aplica à realidade.

    Fran,
    Sigamos a prosa entre companheirxs, certamente. Excelente artigo de você e do Dan!

  9. BONITAS INTRINSECA &/AUT EXTRINSECA
    Entre penis e phallus há bem mais do que pode supor a metafísica identitária do feminismo ululante-messiânico.

  10. Su ótimo texto! Obrigada por compartilhar e também me ajudar em minha reflexões…

  11. Em ambos os textos, “Reflexão acerca das nossas lutas pelo feminismo” e “Sobre as vítimas e os nossos desafios”, os dois muito bem escritos, articulados e coerentes, faltou, no que tange a autocrítica permanente, explicitar quais são e em que se diferenciam os grupos feministas mais atuantes, pelo menos alguns deles.

    O caso aqui trazido do “Carlos Henrique Almeida” é um bom exemplo de como certos tipos de “feminismo” vem, literalmente, se impondo. Pior do que usar lógica do perverso sistema penal, é usar a lógica de um sistema sumário e de exceção para dirimir conflitos. Do que se pode depreender da nota da rádio várzea houve um julgamento sumário do tal Carlos Henrique, não constando qualquer menção de um direito de defesa ou de resposta. Muito estranhamente também não informou nem como foi e nem quem participou deste “julgamento”. Que fique bem claro, não estou defendendo nem este Carlos nem sua atitude, mas um procedimento assim é pior que o próprio sistema penal que, ao menos formalmente, garante o direito de defesa ao acusado.

    E na USP esta forma de tratorada se reproduz em várias instâncias. Nas plenárias departamentais, por exemplo, é comum a apropriação das mesas de debates e de sua condução por uma corrente feminista (ligadas, principalmente, ao PSTU, PSOL e algumas libertárias). Se se discorda das posições ou das conduções feitas por aquele tipo de feminismo, logo se é exposto a uma espécie de bulling e acusado de machista. É por isso que muitos se calam ou pior, usam da filosofia que, se não podem com eles (elas) unam-se a eles (elas)…

    Estamos, a meu ver, cada vez mais nos inserindo na “guerra de todos contra todos”. Não que se deva ficar passivo diante da violência pela qual passam as mulheres, pelo contrário, devemos fortalecer esta luta, mas sem nos esquecermos que estamos inseridos dentro de um contexto maior e mais complexo que é a luta de classes, que é a causa e o efeito das demais lutas.

    “Será que vivemos nós os proletários, será que vivemos? Será que os fracos remédios que tomamos não seria a doença que nos corrói?”

    — Guy Debord

  12. Passando aqui 10 anos depois para a avisar que todas essas tendências que foram criticadas nesse texto apenas pioraram.

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