Não é o trabalhador que tem que se transformar em um comunista para lutar, é o militante comunista que tem que ser um trabalhador, ser um igual e como igual se tornar uma possível referência. Por ex-Bancário

Não é novidade que as lutas dos trabalhadores, enquanto trabalhadores, tendem a afluir numa situação econômica de crescimento e pleno emprego, isto é, quando o risco de ficar desempregado é menor. Na última década tivemos no Brasil uma situação de crescimento econômico e diminuição significativa dos índices de desemprego. Mesmo que eles encubram a qualidade dos empregos e a massa na reserva esperando para entrar na formalidade, é difícil imaginar que pudesse ter havido situação mais favorável na atual configuração mundializada e pós-fordista do capitalismo.

No entanto, a esse período de relativa prosperidade econômica não correspondeu uma ascensão das lutas dos trabalhadores e correspondente conquista de direitos. Certamente muitas lutas não chegam a nosso conhecimento, e é provável também que uma ascensão de lutas nos locais de trabalho, de modo generalizado e que recoloque os trabalhadores enquanto trabalhadores como sujeitos políticos de primeira ordem só seja possível, hoje mais do que nunca, em escala global. De toda forma, por fora das greves ritualísticas institucionalizadas, ganharam notoriedade nessa última década no Brasil apenas as lutas em algumas grandes obras, como em Jirau e Santo Antônio, onde a concentração de operários remonta à do período fordista e a disciplina foi re-imposta com a ajuda da presença permanente da Força Nacional; e nos últimos dois anos algumas outras lutas organizadas também por fora e até mesmo contra os sindicatos, como a dos garis no Rio de Janeiro, a dos rodoviários em São Paulo, Goiânia e em outras capitais. Talvez a oportunidade de uma difusão de lutas autônomas tenha passado, mas o fato é que a oportunidade nunca será aproveitada se não houver atividade de construção, de militância e de acúmulo suficientes nos locais de trabalho.

O propósito deste texto é apontar algumas questões e reflexões que possam contribuir àqueles que buscam construir lutas a partir dos locais de trabalho. Para pensar a possibilidade de lutas no presente e no futuro contamos com a experiência vivida, aquela do passado e do presente. É difícil, senão impossível, e talvez nem mesmo desejável, fugir de pensar as possibilidades do presente com base no que aprendemos nas lutas passadas, mesmo que ao custo de tentar em parte reproduzi-las em condições que já não são as mesmas. Assim, é a partir das lutas que formaram o último grande ciclo mundial de ascensão de poder da classe trabalhadora, nas décadas de 1960 e 1970, as quais colocaram em xeque o regime fordista e suas formas de controle, que penso as possibilidades das lutas de hoje. Tomo como referência de lutas passadas, nas suas lições e formas, principalmente as lutas dos trabalhadores da Itália naquelas décadas [1], que expuseram uma conflitualidade intensa e prolongada.

1. Só há engajamento quando há percepção de poder para operar as transformações

No relativamente breve período em que fui bancário alguns anos atrás algo me chamou atenção. Embora os salários fossem baixos, particularmente daqueles sem função gratificada, algo que perturbava ou angustiava nós bancários no dia-a-dia, permanentemente, eram as condições de trabalho: as pressões por metas, percepção de reduzido número de funcionários para o volume de trabalho, e questões organizacionais em geral, que estavam presentes durante toda a atividade de trabalho. E o meu estranhamento era perceber que nas greves ritualísticas na época do dissídio, as questões relativas a essas condições de trabalho – e que inclusive tinham reflexo na saúde da categoria – não recebiam atenção dos trabalhadores, da própria base. Era até mesmo o sindicato quem estava mais avançado nesse sentido, e pautava essas questões aos patrões. Por fim, a base – os bancários em geral – pareciam só se importar mesmo com o aumento salarial e de benefícios monetários recebidos.

Na minha cabeça ficava essa questão: por que havia essa disjunção? Por que as questões relacionadas à sua atividade cotidiana, que lhes afligiam tanto durante todo o ano e a todo momento, a pressão com base em metas irreais, a falta de instrumentos adequados, simplesmente não correspondiam a suas preocupações e demandas durante a greve?

Tempos depois encontrei a resposta, que fez todo sentido pelo que eu percebia no ambiente bancário em que estive. E a resposta a encontrei na experiência das lutas italianas dos anos 60-70.

Nos anos 1960 na Itália as disputas operárias sobre o ambiente e condições de trabalho não conseguiam fugir da chamada monetização do risco. Condições insalubres e exposição ao perigo eram no máximo compensadas monetariamente. Aliás, como é hoje também no Brasil com os adicionais de insalubridade e periculosidade. O movimento operário criou então o slogan “A Saúde não se Vende” como parte das lutas para contrapor a essa prática de monetização. O que se constatou por envolvidos naquele ciclo de lutas na Itália é que a classe trabalhadora só superou a monetização do risco quando percebeu que tinha poder de mudar o ambiente de trabalho, quando percebeu ter capacidade e possibilidade real, isto é, força, para mudar as condições e a organização do trabalho [2]. A apatia e a monetização nesse sentido são reflexos de um realismo, de uma percepção de impotência que não é falsa, já que os trabalhadores não veem nos fatos a possibilidade de transformação.

Quando os trabalhadores bancários se concentram nas reivindicações financeiras e deixam de canto as questões relativas às condições e organização de trabalho que lhes atormentam todos os dias no ano, podemos considerar como estando em operação um processo informal de monetização do risco ou das más condições de trabalho. A monetização é assim a contrapartida material da impotência.

As condições e organização do trabalho são desse modo naturalizadas por perceberem que não possuem poder de mudá-las. Essa espécie de fatalismo, como denomina Izabel Borsoi, foi bem verificada por ela entre trabalhadores da construção civil [3]. E como ela mostra, a sua causa não está numa ignorância, ideologia, rigidez mental, mas sim na imutabilidade das condições sociais. Portanto não basta que o trabalhador tome uma consciência de que algo está errado, que deseje ou sonhe que a vida mude, é “necessário que ele experimente uma nova condição de vida e trabalho” para que rompa com o fatalismo e construa outra concepção de mundo e de trabalho [4]. Fatalismo que se aproxima de uma forma de defesa do trabalhador.

2. Construir alternativas às defesas psíquicas

As chamadas defesas (psíquicas) são desenvolvidas pelos trabalhadores e operam exatamente quando não há possibilidade de ação diante de determinada situação que imponha dificuldade ou medo. Elas servem para que o trabalhador possa enfrentá-la, mantendo um equilíbrio psíquico. Normalmente, embora haja as particularidades individuais, as defesas são construídas coletivamente. Por outro lado, embora tendo esse aspecto positivo ao equilíbrio psíquico dos trabalhadores, as próprias defesas podem limitar o questionamento das condições de trabalho, a possibilidade de debate sobre elas e a própria capacidade de agir. Muitas vezes o que é tomado como conformismo ou mesmo uma ideologia da empresa e do capital incorporada pelos trabalhadores, é antes de tudo uma defesa acessível aos trabalhadores diante das situações de trabalho e do limitado poder de agir.

E o que segue abaixo não é dito por um manual materialista de luta marxista ou anarquista, trata-se da síntese do estado da arte das pesquisas relacionadas à ergonomia e psicologia do trabalho voltadas às instituições:

“Não é possível desbloquear tal situação agindo somente sobre as defesas: a possibilidade de começar a agir concretamente sobre as situações difíceis é necessária para o desenvolvimento do pensamento crítico e criativo. As capacidades de reflexão, de debate e de ação estão estreitamente ligadas entre si e o bloqueio de uma implica a blocagem de todas.” [5]

Em suma, as lutas nos locais de trabalho, e mais especificamente no próprio processo de trabalho, devem ser buscadas e entendidas como sendo elas próprias meios encontrados/construídos pelos trabalhadores para ampliar seu poder de ação, de controle do processo de e da organização do trabalho.

A própria ação coletiva diante das situações de trabalho, no sentido da ampliação da margem de autonomia e de apoio social, tende a diminuir o estresse e a carga associados ao trabalho [6], beneficiando o equilíbrio psíquico e diminuindo a necessidade de defesas.

3. Como, o que e quando produzir

Diante das condições de trabalho e do dever de produzir, os operários da região de Porto Marghera, no ciclo de lutas que nos reportamos na Itália, passaram a incorporar três perguntas que ainda hoje podem servir como ferramenta para orientar a reflexão e práticas diante das imposições do capital no local de produção: como, o que e quando produzir?

Elas orientam sobre as condições aceitáveis, a aceitabilidade da situação e sobre o próprio objetivo ou sentido da produção. Através delas as necessidades e desejos dos trabalhadores, e o próprio sentido do trabalho, ganham projeção também para os próprios trabalhadores. Trata-se também da explicitação da disputa pelo trabalho que deve ser feito e entregue pelo trabalhador e pelas condições aceitáveis de execução, algo que nenhum contrato de trabalho pode especificar completamente e cuja racionalidade capitalista não pode encontrar resposta, sendo matéria estabelecida pela correlação de forças do momento.

4. A atividade de luta dos trabalhadores como aplicação da própria demanda dos trabalhadores

Autorredução. Palavra que descrevia na Itália as práticas dos trabalhadores, dentro e fora das fábricas, de redução por eles mesmos, coletivamente, dos ritmos de trabalho, dos valores do aluguéis, das tarifas de transporte e energia elétrica… Nos locais de trabalho a autorredução era uma expressão de poder: de conhecimento do processo de produção e de articulação coletiva no chão da fábrica. Contudo era também uma forma de colocar em prática uma demanda por melhores condições de trabalho e por menos trabalho. No pólo químico de Porto Marghera os trabalhadores chegaram a auto-organizar a redução da jornada de trabalho, o que obrigava as empresas a contratar mais funcionários para o turno que havia sido criado pelos próprios trabalhadores. Essa autorredução da jornada era a forma direta e prática de reduzir a exposição ao ambiente insalubre das fábricas.

Essas lutas nos locais de trabalho eram organizadas e decididas diretamente pelos próprios trabalhadores, sem participação dos sindicatos, numa expressão por excelência de autonomia operária. Aos sindicatos restava o papel de coordenação nacional da negociação e das ações externas aos locais de trabalho [7]. Como ressalta Gianni Sbrògio, ex-operário de Porto Marghera: “frequentemente a passividade operária pode ser superada, pois ela apenas traduz uma ausência de referências políticas e organizativas alternativas ao sindicato” [8].

*

Tanto o resultado prático do questionamento de como, o que e quando produzir quanto as lutas que colocam em prática as demandas obviamente já significam um grau relativamente alto de controle do processo produtivo por parte dos trabalhadores. Em outras palavras, já pressupõem um nível de comunicação, solidariedade e poder coletivo no local de trabalho. O mesmo problema de círculo vicioso aparece quando vemos que a falta de poder de (transform)ação diante de situações gera defesas psíquicas que, por sua vez, se tornam obstáculos à ação e que as próprias defesas só podem ser desfeitas pela experiência efetiva de poder de (transform)ação. Formalmente nesses termos o círculo se fecha e não há saída. Mas o que parece fixo, dado e estabelecido, na verdade, está em processo de contínuo estabelecimento, e a capacidade humana de dar diferentes respostas a situações repetidas está sempre presente. Ajudar a constituir respostas diferentes é uma parte importante que cabe também à militância. Essa capacidade humana de dar respostas novas para situações repetidas e de dar respostas para situações novas é que está na própria base da atividade de trabalho, e que torna o trabalhador indispensável no próprio processo produtivo. Ela é também a base da contradição inescapável do modo de produção capitalista: formalmente o trabalhador é reduzido a mero executor, tornado objeto, no máximo beneficiário de uma autonomia controlada, mas sem a intervenção das suas faculdades propriamente humanas, sem a luta do trabalhador contra sua redução a objeto e a mero executor, a produção é impossível. A operação padrão como forma de paralisar a produção é uma das provas cabais. É do poder imanente à atividade de trabalho, do conhecimento construído e detido pelo trabalhador a partir dela que pode-se fundamentar e desenvolver as lutas nos locais de trabalho, dentro e através dos processos de produção.

Partir das questões concretas que afetam o cotidiano dos trabalhadores é lição sabida e indispensável. Não é o trabalhador que tem que se transformar em um comunista para lutar, é o militante comunista que tem que ser um trabalhador, ser um igual, compreender os paradoxos e contradições que ele enfrenta na atividade, suas angústias, os valores do seu ofício para, a partir daí, perceber as possibilidades de ação e mobilização, e como igual se tornar uma possível referência.

Mais especificamente sobre os bancários, a possibilidade de luta nos locais de trabalho não significa obviamente uma menor importância das lutas salariais. Sem aumento significativo no salário base, a perda de uma função gratificada sempre pesará como a perda do próprio emprego. Medo esse construído organizacionalmente que implica em defesas psíquicas e consequente bloqueio de possibilidades de ação [9].

Não é preciso mencionar que a possibilidade de lutas nos locais de trabalho nos dias de hoje se vê dificultada pela descentralização da produção entre outros fatores, os quais eles próprios constituíram respostas dos capitalistas às práticas e lutas dos trabalhadores na década de 1970. Quanto aos bancos brasileiros, a tendência posta em prática atualmente é de agências cada vez menores e com poucos funcionários, substituindo agências maiores e com maior concentração de trabalhadores. Ligada a essa tendência a terceirização no setor avança, pulverizando ainda mais os locais de trabalho e dividindo ainda mais a categoria. São desafios a serem enfrentados evidentemente. Assim como fomentar lutas nos locais de trabalho que não se limitem aos bancos públicos. Como bancos públicos e privados estão inseridos num mesmo mercado, é mais difícil conseguir conquistas em uma empresa isoladamente se todas não são pressionadas similarmente. O avanço salarial num banco público, por exemplo, terá como obstáculo o nível salarial desse mercado. Para além disso, uma hipotética ascensão das lutas isoladamente nos bancos públicos tenderia a ter como resposta, possivelmente, uma política de privatização.

A história ainda dirá se os trabalhadores terão capacidade de, a partir da sua atividade de trabalho, constituir um poder que coloque em xeque as atuais formas de gestão e controle “toyotistas”, “gerencialistas”, “pós-fordistas”, “flexíveis”. Também dirá que formas essa luta terá. Ao ritmo das linhas de produção agora se sobrepõe o cabresto das metas, invadindo todos os setores e o dia-a-dia da atividade. Poderá ele extrair dessa mesma atividade a capacidade e o poder de construir uma autorredução das metas?

Notas

[1] Sobre essas lutas operárias na Itália, a título de amostra bibliográfica, seguem quatro referências disponível online. Balestrini, Nanni.; Moroni, Primo. La Orda d’Oro 1968-1977: La grande ondata rivoluzionaria e creativa, politica ed esistenziale. Milano: Universale Economica Feltrinelli, 2003. Disponível em edição espanhola: http://www.traficantes.net/libros/la-horda-de-oro . Porto Marghera: the last firebrands. Em: http://libcom.org/files/firebrands_booklet_2_horizontal.pdf. Lumley, Robert. State of Emergency: cultures of revolt in Italy from 1968 to 1978. New York: Verso, 1990. Em: https://libcom.org/history/states-emergency-cultures-revolt-italy-1968-1978. Radical America, Vol 5, No 5, 1971. Em: https://libcom.org/library/radical-america-0505italy-1969-1970.
[2] Oddone, Ivar et al. Ambiente de Trabalho: A Luta dos Trabalhadores pela Saúde
São Paulo: Hucitec, 1986.
[3] Izabel Cristina Ferreira Borsoi. Acidente de trabalho, morte e fatalismo. Psicol. Soc. vol17 n.1 Porto Alegre jan/apr. 2005. Disponivel em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-71822005000100004&script=sci_arttext
[4] Idem, pp.26-27.
[5] Fatores humanos e organizacionais da segurança: um estado da arte, p.74. Disponível em: http://www.icsi-eu.org/docsi/fr/fatores-humanos-e-organizacionais-da-seguranca-um-estado-da-arte-f211?id_cible=1
[6] Idem, p.73.
[7] O papel que podem cumprir os sindicatos nas lutas dos trabalhadores, para bem ou para mal, no atual contexto e conjuntura, foge ao objetivo deste texto, até por falta dessa experiência prática do autor. Mas se, por exemplo, a condição de delegado ou dirigente sindical pode trazer alguma proteção a militantes, por outro lado, no caso dos dirigentes, muitas vezes afasta-os enquanto militantes dos próprios locais de trabalho, além de os absorver em demandas que o sindicato é chamado a responder e que pouco ou nada tem a ver com a organização das lutas.
[8] Sacchetto, Devi; Sbrogiò, Gianni. (Pouvoir ouvrier à Porto Marghera: Du Comité d’usine à l’Assemblée de territoire (Vénétie – 1960-80). Paris: Les Nuits rouges, 2012, p.81.
[9] Sobre o medo no trabalho e defesas psíquicas ver A Banalização da Injustiça Social, de Christophe Dejours.

2 COMENTÁRIOS

  1. Artigo extremamente bom.

    Acredito que, na situação atual, de derrota extrema dos trabalhadores, apenas as lutas do proletariado que tendem a ultrapassar o “trabalhador” e “sua empresa” tem possibilidade de mudar a correlação de forças, em escala mundial.

  2. Sobre autorredução das metas, um exemplo, relatado por um pesquisador em uma dissertação. Observado em agência do Banco do Brasil:

    “(…) uma das formas de reação dos trabalhadores às pressões gerenciais no cotidiano e de resistência ao cumprimento de determinadas metas, principalmente aquelas que consideravam muito altas ou as que eram aumentadas várias vezes no decorrer dos meses. Explícita ou implicitamente, em curtos diálogos durante a jornada de trabalho, alguns trabalhadores “combinavam” o cumprimento parcial ou o não cumprimento de uma determinada meta, ou trocavam informações sobre dificuldades que poderiam ser alegadas para justificar o não cumprimento. Algumas vezes, em grupos mais entrosados e que conviviam há mais tempo, esse tipo de combinação ocorria de forma quase imperceptível, apenas através de pequenos sinais, como uma frase curta ou algum comentário discreto”.

    http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-21022013-095444/pt-br.php

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