Por Passa Palavra
“Isso aí não vai dar em nada. Moro aqui há vinte anos e já assinei uns oito abaixo assinados”, comenta um sujeito que caminhava de sua casa até o ponto de ônibus, ao receber um jornal tratando da falta de transporte no bairro. “Teve uma vez que eu fui numa reunião lá na escola, veio o pessoal da prefeitura, e até aquele vereador… Falaram que iam pôr o ônibus aqui no bairro em um mês. Faz dois anos, e cadê? Não vai acontecer nunca.”
O outro responde: “Mas daquela vez o problema foi esse mesmo! Não dá pra se iludir com as promessas desses políticos. O único jeito de trazer o busão pra cá vai ser com o povo se unindo e partindo pra cima dos caras.” E deixa o jornal, divulgando uma próxima reunião no bairro. Após a manchete, a frase em destaque: “político é igual feijão: só funciona na pressão”.
A pressão fez efeito?
23 de maio de 2015. Parelheiros, extremo sul de São Paulo. Após se concentrarem em suas comunidades, moradores dos bairros da Barragem, Marsilac, Bosque do Sol, Jusa e Parque Oriente se reúnem e fecham em passeata a principal via da região. Pontualmente às 14h30 chegam à Subprefeitura e cercam a entrada do prédio. Esperavam ser recebidos pelo prefeito Fernando Haddad, com quem tinham reunião agendada para aquela hora.
A reunião não foi marcada do nada. Um mês antes, um grupo de moradores havia interrompido uma aula ministrada pelo prefeito na USP – sobre “Economia e Política na Cidade” – para protestar contra a total inexistência de transporte em seus bairros. A panela esquentou… Surpreendido pela manifestação, Haddad aceitou se reunir com os moradores em Parelheiros. Porém foi só dali a duas semanas, pressionado pela repercussão de três dias de linhas populares autônomas auto-organizadas pelas comunidades, que ele confirmou a data e horário do encontro.
Provavelmente com problemas de trânsito, o prefeito atrasou duas horas no sábado. Dentro do prédio, a burocracia comunitária atraída pela notícia da vinda de Haddad aguardava desde cedo para participar da reunião. Membros de conselhos participativos, cabos eleitorais, vereadores, empresários do ecoturismo. Quando a manifestação chegou, foram rechaçados pelo movimento: desde o princípio, afinal, aquela havia sido uma luta independente.
Passava das sete horas da noite quando a negociação se encerrou. Deixam a sala a comissão do movimento de moradores, o prefeito Fernando Haddad, o secretário de transportes, Jilmar Tatto, o secretário do verde Wanderlei, o Subprefeito Nilton, a presidente da SPTrans [empresa que administra os ônibus urbanos], Ana Odila, e funcionários técnicos. Os moradores terminam exigindo que Haddad desça à avenida e anuncie os encaminhamentos para todos. O prefeito aceita de bom grado.
Ficou decidida a criação de uma linha de ônibus rural no Marsilac que operará gratuitamente aos moradores locais em caráter experimental por 180 dias. Nos bairros da Barragem, se dará início a estudos para a criação de duas linhas circulares do mesmo tipo. Os projetos dependem apenas de autorização da CETESB, órgão estadual responsável pela concessão de licenças ambientais. Já nos bairros do Bosque do Sol e da Estrada do Jusa, situados no perímetro urbano e fora da Área de Proteção Ambiental (APA), será criada imediatamente uma linha regular tarifada. Por fim, todas as vias danificadas serão reformadas e a ponte danificada sobre o Rio Mambu será reconstruída.
Mal Haddad termina de falar, vem o coro: “o povo unido jamais será vencido! o povo unido jamais será vencido!”. No microfone, os militantes reafirmam: aquela foi uma conquista da luta do povo.
O que significa essa vitória?
Sem transporte coletivo, os moradores são até hoje forçados a caminhar quilômetros a pé para chegar ao ponto de ônibus mais próximo. A criação das linhas reduzirá o tempo e os esforços da jornada até o trabalho, ampliará as possibilidades de circulação e o acesso ao atendimento médico, escolas e cursos pelos trabalhadores locais. Trará também maior segurança, visto que não eram poucos os casos de violência contra as mulheres e atropelamentos nas caminhadas pelas estradas.
A criação de uma linha gratuita no Marsilac – e, futuramente, em Barragem – será a primeira experiência de Tarifa Zero na cidade após 25 anos. Em 1990, para testar a viabilidade de abolir a cobrança de tarifa nos ônibus municipais, a gestão Luíza Erundina instalou uma linha experimental em outro extremo de São Paulo: Cidade Tiradentes, no limite da zona leste. Diferentemente daquela vez, agora se trata de uma gratuidade restrita aos atuais residentes do bairro: para evitar o aumento das ocupações numa região de proteção ambiental, a prefeitura fará um cadastro dos moradores e lhes fornecerá um bilhete especial.
Mas, mais importante, é que essas linhas não vieram de graça. Foram conquistadas a partir de uma luta popular de base construída lentamente nas comunidades, de forma independente de políticos ou empresários, apostando as forças na organização coletiva e na ação direta dos moradores e forjando uma união entre bairros diferentes e distantes em torno de um problema comum.
Tanto é que a reivindicação da criação das linhas, mesmo já existindo há muitos anos, ganhou novo fôlego em 2014. Pautadas até então por participar de reuniões burocráticas e buscar apoio de políticos, as iniciativas anteriores não avançaram, deixaram apenas promessas nunca cumpridas e um cenário de desmobilização, descrença e desconfiança. Desse esgotamento que se construiu a opção pela via da luta: de lá pra cá, moradores organizaram uma linha popular, se acorrentaram na prefeitura e fizeram marchas.
Agora a mobilização chega às vésperas do desfecho. É certo que, enquanto os ônibus não estiverem rodando nos bairros, não se poderá dizer que o problema está resolvido. Falta ainda autorização ambiental para as linhas rurais, além de outros trâmites burocráticos que poderão vir a exigir mais esforços dos moradores.
O que não resta dúvidas é que essa foi uma luta que não poupou enfrentamento. Contudo, o momento da vitória sempre será um dos mais tensos para qualquer movimento social. Afinal, para a efetivação das reivindicações populares, quem assume a iniciativa é o Estado.
Essa situação é ainda mais delicada quando se está diante de governos vindos da esquerda, que encontram na recuperação das lutas uma de suas principais fontes de energia. Se a organização coletiva e ação direta dos moradores foi decisiva para a vitória, não deixa de ser relevante também a disposição com a qual os gestores assimilaram suas demandadas. Ao anunciar em público os encaminhamentos após a reunião, Haddad chegou a elogiar “a mobilização da sociedade”.
Em seu discurso na reunião, o prefeito que dá aulas sobre o trabalho de Karl Marx inverteu uma das teses fundamentais sobre a luta de classes: “Quando todos os lados estão de boa fé, não existe interesse que seja inconciliável. Só não se consegue conciliar quando há alguém de má-fé, se aproveitando de algum problema para outros fins.” E, com perfeita clareza de sua tarefa de classe, concluiu: “O papel do gestor é esse: conciliar os interesses de quem mora na cidade”.
Concretizada a exigência da linha, para onde segue o movimento? O atendimento da demanda única em torno da qual organizou suas bases implicará no esvaziamento destas ou conseguirá a militância construir um horizonte novo e mais amplo àqueles que se engajaram nessa campanha? Irá a militância se contentar com a conciliação ou aprofundar sua mobilização rumo ao inconciliável?