Quanto mais eu resisto, mais clientes há, quanto mais me expresso, mais vendas eu faço. Quando mais luto, mais lucro faço. Por Jacob Blumenfeld

Abrir a porta, ligar a luz, esquentar a água, checar as geladeiras, colocar as cadeiras pra fora, limpar as mesas, acender as velas, por pra fora os cinzeiros, verificar o caixa, contar o troco, cortar os limões, colocar música, lavar os copos, ligar o ventilador, despejar a cerveja, misturar os drinks, servir os clientes, ouvir suas histórias, confortar suas solidões, fazer o gelo, limpar o balcão, contar uma piada, pegar o dinheiro. O chão está molhado, a mesa de sinuca riscada, dardos entortados, cinza no sofá, fumaça no ar, copos quebrados, carteiras roubadas, roupa rasgada. A noite é longa e cheia de terrores.

Zumbis de olhos vermelhos misturam-se lentamente pelo ambiente, gorgolejando líquido nonsense. Eles exigem combustível e meu trabalho é servir. Eu libero barris de suco de afogamento de tristeza e esquecimento para hordas de animais sedentos. Os primeiros são velhos, a maioria homens, sozinhos, falando sem parar, como uma televisão que você não pode desligar. Concordo com a cabeça e tento parecer ocupado, fazendo de conta que escuto, o que acaba sendo uma escuta de verdade. Ouço histórias de trabalho, família, perda; de esportes, tempo e sexo. Falam dos velhos tempos antes do Muro cair, ou antes do Muro existir; de viver no Ocidente, era melhor, era pior; dos squats, punk e os autonomen; de todos os imigrantes, os gregos, espanhóis e portugueses; os judeus, árabes,e turcos; os russos e poloneses, tchecos e sérvios; os refugiados da Síria, Somália e Sudão; da guerra e morte, partidos e política. Ouço sobre a nova Berlim, pobre mas sexy, com capital cultural suficiente para competir com o Brooklyn: cheia de arte de rua, start-ups e estrelas. Meio litros de pilsen escorrem abaixo como água para esses proletários e punks veteranos da República Federal.

Mais tarde, quando o sol se põe, os jovens chegam como moscas em uma lâmpada: os garotos baladeiros da Inglaterra, França e Austrália; os estudantes do México, Canadá e Japão; os trabalhadores de TI da Suíça, Suécia e Dinamarca. O barulho alcança o ponto máximo. O ar é impenetrável. Suo, corro, caio, pego, dou, sirvo, derramo, limpo e tento me tornar pura força de trabalho. Mas eles querem a pessoa inteira: os ouvidos que escutam, a voz que responde, os olhos que olham para trás e as mãos que sentem os dedos através das notas. Tento não pensar, mas sou formado como pensador na minha outra vida, então meus pensamentos me dominam, disparando indiscriminadamente em clientes desavisados. Trechos de conversas suspensos no ar nas quais intervenho com conclusões aleatórias, na esperança de uma gorjeta melhor. Alguns ativistas debatem a morte da esquerda; alguns fãs de futebol discutem o declínio do seu time. Lutadores turcos, conspiradores franceses, traficantes americanos estão presos a um viciante jogo de pebolim. Policiais batendo na porta, vizinhos chamando, chefes gritando, mesas caindo – preciso de um novo emprego.

O bar onde trabalho fica em Kreuzberg, Berlim, um velho bar de roqueiros, que existe há vinte anos com nomes diferentes, tempo no qual somente os cartazes colados no teto de concertos de rock dos anos 90 permanecem. Pantera, Def Leppard, Guns’n’Roses, música fodona. É um Raucherkneip, um bar para fumantes, que fecha sempre que o bartender se cansa. Bartender – no singular – que é uma equipe de uma pessoa que prepara, serve, fecha e supervisiona a si mesmo como sujeito e como objeto do processo de trabalho. O salário é baixo, mas o custo de vida e a flexibilidade fazem valer a pena de algum modo. Dar aulas de introdução à filosofia na graduação em Nova York não pagava o aluguel, então aqui estou, traduzindo, revisando e escrevendo nas horas livres. Como um híbrido de trabalhador manual e intelectual em um país estrangeiro, minha identidade de classe se modifica junto com a do resto da população excedente em um borrão indistinto.

Como é possível que na época de maior desigualdade econômica dos últimos 100 anos, ninguém pense mais em termos de classe? E quando pensa, classe é considerada apenas mais uma opressão a ser adicionada à lista de ismos que flagelam o comportamento social. É isso o melhor que podemos fazer? Eis a questão que Adolph L. Reed nos propõe: se 1% da população controla 90% dos recursos, mas o 1% é composto de 12% de negros, 15% de asiáticos, 30% de latinos, 50% de mulheres, 10% de gays etc., então seria justo? Para a maioria dos progressistas a resposta é provavelmente sim; a injustiça é entendida como uma distribuição desigual de poder ao longo de linhas de privilégio e, portanto, quando o privilégio é dividido proporcionalmente no topo, a justiça prevalece, sendo o resto da população meros perdedores no jogo limpo do capitalismo. Qualquer consideração de classe é omitida, ou de como as regras do jogo já impõem os resultados para a maioria da população. Se a classe é invocada, ela é reduzida a classismo: o preconceito contra a classe trabalhadora e contra os pobres baseado no seu modo de falar, gosto, atitude, vocabulário e modo de vestir. Mas esse preconceito é um sintoma das relações de classe, não sua causa. Eliminar todos os preconceitos antipobre não mudaria um pingo das suas condições de trabalho ou das suas contas bancárias. Para desvendar o segredo da classe, em vez disso, é necessário abrir a porta e olhar dentro dos locais de trabalho.

Já houve o tempo em que pensar sobre o local de trabalho trazia a esperança por algum tipo de conhecimento revolucionário que poderia ser usado como arma na luta que viria pelos meios de produção. O American Worker de Paul Romano e o Correspondence da John-Foster Tendency nos Estados Unidos, Socialisme ou Barbarie e Pouvoir Ouvrier na França, Quaderni Rossi e Potere Operaio na Itália, todas elas tinham grandes sonhos de extrair conhecimento exato e positivo do trabalho vindo dos trabalhadores, de modo a abolir o trabalho. Se pelo menos pudéssemos coletar, analisar e compartilhar a essência da experiência proletária, a verdade universal da exploração do trabalho irromperia como uma corneta chamando a classe trabalhadora a se unir. Ninguém acredita nessa merda mais, mas queremos acreditar, ou pelo menos, queremos querer acreditar.

Por que não? Em 2002 o coletivo Kolinko na Alemanha se integrou a call-centers para aprender e agitar, mas, infelizmente, eles aprenderam que ninguém queria agitar. Mais recentemente, o Comitê Invisível apostou que o conhecimento técnico dos trabalhadores em indústrias chave será indispensável para as revoluções que virão, uma vez que terão que saber como manter formas coletivas de vida em meio à luta. Tá bom. Se pelo menos tal conhecimento existisse na cabeça dos trabalhadores e não fosse distribuído entre os milhões de máquinas opacas. A logística do trabalho, da indústria de serviço ao TI, do varejo à manufatura, não oferece nada além de um modelo de coerção.

Então o que há para ser aprendido a partir da reflexão sobre o trabalho hoje em dia? Estratégias de recusa são um luxo, a solidariedade coletiva é nostalgia e expropriar os expropriadores parece um sonho. Mas as classes ainda lutam, fora do trabalho e dos sindicatos, sem greves ou piquetes, sem organização ou unidade. Alguns veem isso como um fracasso da classe em se organizar, outros encaram isso como um estímulo para repensar o que significa se organizar. Mas e se isso for a forma como a luta de classe se expressa hoje em dia – fragmentada, defensiva, caótica?

Claro, existem alguns movimentos pelo salário mínimo, saúde pública e negociação coletiva, mas eles são dirigidos por ONGs profissionais buscando influenciar os principais partidos políticos para próprio beneficio, não para conquistas de proletários putos da vida que buscam virar de cabeça pra baixo a hierarquia de classe. Na Alemanha, onde o desemprego é o menor na Europa, houve algumas greves relativamente bem sucedidas dos trabalhadores do correio, de operadores de trem, de funcionários de logística, fazendo parecer um retorno a um clássico movimento dos trabalhadores por uma maior fatia do bolo nacional. Mas num olhar mais atento, trataram-se de ações preventivas contra leis em curso destinadas a reduzir a possibilidade de greves, pressões e agitação laboral. Mesmo o melhor ataque é ainda somente uma defesa.

Para quebrar o quadro de derrota, uma auto-enquete sobre as atuais condições de trabalho parece ideal. Mas quanto mais penso sobre o trabalho, mais alienado me sinto. O conhecimento não traz poder aqui, só vergonha. A distância entre o que é e o que deveria ser cresce de uma pequena fissura e um fosso intransponível. Cada detalhe técnico da organização da produção confirma minha irrelevância dentro da cadeira de oferta e demanda. Quanto mais eu resisto, mais clientes há, quanto mais me expresso, mais vendas eu faço. Quando mais luto, mais lucro faço.

Com frequência amigos me visitam, para falar entre momentos de cumprimentos com dinheiro nas mãos com outros clientes. Mas ter uma conversa real é como tentar surfar uma onda que está sempre quebrando. Eles me desalienam o quanto podem, mas ainda pedem, eu sirvo e moedas giram pela nossa conversa. Não posso focar, mas não posso desligar e assim eu vejo, cheiro, ouço tudo ao mesmo tempo: uma grande sinestesia, ainda organizada num sistema de faturamento. Quando o turno termina, vagueio pela rua no crepúsculo da madrugada. Pássaros estão cantando, casais beijando, trabalhadores com a cerveja na mão pegando um trem para casa, vampiros adormecidos com fones de ouvido, vidro quebrado e cigarros estampados no chão, idosas catando garrafas por alguns centavos, vendedores de jornais solitários, vendedores de samosa e vendedores ambulantes de flores passando como mortos-vivos pelos cartazes grafitados, colados com cola caseira e encrostados no topo de cartazes divulgando a última manifestação “nós somos a crise” contra a austeridade, uma manifestação a qual eles nunca irão. Reunir as tropas contra o estado financeiro anima os levantadores de cartazes e de bandeiras, mas faz pouco ao morto-vivo que guarda os portões do consumo com seu tempo de trabalho.

Mais uma noite, mais um turno. Uma estelionatária dorme num canto, um dadaísta bebe sem falar, um fugitivo do hospital psiquiátrico mija no chão, um irlandês começa uma briga, um motorista de táxi bebe vinho e discute política, um rapaz feminista acerta uma garota racista, os netos dos nazistas e de suas vítimas jogam sinuca, as garotas russas engolem destilados, os músicos de rua tocam antiguidades, os traficantes usam o banheiro e os gregos pedem outra rodada. Almas e corpos barulhentos, fumacentos, suados, liberados dos seus casulos de trabalho, saboreando cada micromomento de alegria antes do dia seguinte. Alguns sussurram, alguns gritam. Não posso não ouvir: A Alemanha tem o direito de existir? Quem se interessa? Qual é a última do Bayer de Munique? Qual a sua opinião sobre Kant? Onde é o banheiro? Você é judeu? Você pode dar troco disso? Você é circuncisado? Você está atrasado novamente. Como um americano veio parar nesse buraco de merda? Pelo menos todos tínhamos emprego naquela época. É meu aniversário, me traz vinte e cinco tequilas, por favor? Desculpa, mas não gosto da música. Você não gosta de Kraftwerk? Aqui se dá gorjeta? Dois energéticos. Aqui se dá gorjeta? Também sou estudante! Onde fica Brandenburgo? Sou fera em ping-pong. Você pode apressar? Não, isso é o que eles querem que você pense. Então, você gosta de trabalhar aqui? E assim segue indefinidamente. A salada de palavras do diálogo de bar é como Beckett mixado com Duck Dynasty. Mas em alemão tudo soa muito sério. Amigos confabulando onde jantar se tornam generais planejando um ataque, estranhos compartilhando cigarros se tornam ex tendo mais uma briga e clientes pedindo cerveja se tornam policiais me sentenciando à cadeia.

Os últimos retardatários apertam suas bebidas como ouro antes de cederem. Prevaleci, como sempre, para fazê-los sair do salão. Limpar, contar, fechar, o final é o pior, quando após dez a doze horas de trabalho, preciso pensar novamente, sem me confundir, sem deixar nada aberto ou ligado. Uma vez o bar foi roubado após meu turno. Tranquei a porta? Por que não havia sinais de entrada forçada? Teria sido um colega de trabalho? Se foi, nunca me disseram. Nada mais a declarar sobre solidariedade.

Se a experiência universal do trabalho não pode mais ser a base para a emancipação da classe trabalhadora, então uma enquete operária não é mais necessária para preparar a base epistêmica da revolução. O que une os trabalhadores hoje em dia não é a essência invariante da exploração ou a camisa de força subjetiva da alienação, nem é algum potencial escondido a ser realizado ou verdade secreta a ser revelada – mas sim apenas uma relação negativa consigo mesmo enquanto dependente e exterior a seu próprio pertencimento de classe. Elaborar o que isso significa não é outra coisa senão uma enquete anti-operária.

Jacob Blumenfeld mora em Berlim, em casa na diáspora, servindo cerveja proletária e filosofia burguesa para viver.

(Traduzido por Leo V. a partir daqui. As imagens originais foram mantidas)

1 COMENTÁRIO

  1. O texto é muito interessante por revelar uma angústia que perturba, consciente ou inconscientemente, aqueles que (ainda) se preocupam com a emancipação dos trabalhadores. Robert Kurz (Krisis/Exit) ao levantar dúvidas sobre se a classe operária ainda seria o sujeito revolucionário da história faz um questionamento coerente e pertinente, justamente com base em um trabalhador similar ao descrito no texto. Resta saber, se esse trabalhador, ora mundializado pelo capitalismo, é o trabalhador de uma dada conjuntura (ou conjunturas) do capital, ou seria mais… talvez um novo sujeito de uma nova estrutura?

    Para Marx – que apesar de “velho” e “barbudo” (acho que falta um movimento contra a “velhofobia” ou “paleofobia” e a “barbudofobia”, hoje tão em voga da direita à esquerda. Mas haverá divergências! Dirão: “Velhocistas” e “barbudochistas”, não passarão!…) continua mais atual do que nunca – o motor da história, até aqui (leia-se: dos sistemas anteriores até o capitalismo, ou seja, os dias de hoje) é a luta de classes. A charge do Charb é icônica e sintetiza este princípio:

    Sarkozy: A gente tirou de moda esse conceito de “luta de classes”! Nem a esquerda usa mais!
    Marx: Não é porque vocês tiraram de moda a descrição da realidade que a realidade não existe mais.

    A discussão da luta de classes, embora sutilmente uma constante das agendas capitalistas, vem sendo suprimida das pautas de esquerda. O próprio texto reflete neste sentido: “Qualquer consideração de classe é omitida, ou de como as regras do jogo já impõem os resultados para a maioria da população”. Se não se pode negar que a classe trabalhadora deseja mais o “capitalismo da abundância ao socialismo da miséria”, não é menos verdade que os trabalhadores se encontram cada vez mais como “Lulus” (A Classe Operária Vai ao Paraíso)… ou “Fifis”… Como diria o “bom velhinho” (Marx, e não Papai Noel, filho da puta, presenteia os ricos, cospe nos pobres…): “Partiremos de um fato econômico contemporâneo. O trabalhador fica mais pobre à medida que produz mais riqueza e sua produção cresce em força e extensão. O trabalhador torna-se uma mercadoria ainda mais barata à medida que cria mais bens. A desvalorização do mundo humano aumenta na razão direta do aumento de valor do mundo dos objetos. O trabalho não cria apenas objetos; ele também se produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e, deveras, na mesma proporção em que produz bens”(Karl Marx – Manuscritos Econômicos Filosóficos).

    Interessante notar que o texto, ao discorrer acertadamente sobre preconceito(s), concluindo que “esse preconceito é um sintoma das relações de classe, não sua causa”, não conclui no mesmo sentido, e aí se encontra um grande equívoco, em relação à “experiência universal do trabalho”. Quando afirma que o que une os trabalhadores é a “relação negativa consigo mesmo enquanto dependente e exterior a seu próprio pertencimento de classe” comete o mesmo erro de tomar a consequência como a causa de um dos fenômenos da luta de classe. Os trabalhadores encontram-se de fato fragmentados, mas do ponto vista de sua organização, não do ponto de vista de sua identidade. Prova disso são justamente os constantes esforços da burguesia para sua “atomização”. Os insucessos da classe trabalhadora estão mais ligados aos paradigmas que vem adotando ao longo de suas lutas, especialmente as mais recentes, que ao invés de a aproximar do seu ideal de emancipação, a coloca cada vez mais distante, justamente por se darem segundo uma lógica capitalista:

    “Quando a realização, cada vez mais poderosa da alienação capitalista a todos os níveis, tornando cada vez mais difícil aos trabalhadores reconhecer e nomear a sua própria miséria, os coloca na alternativa de recusar a totalidade da sua miséria ou nada, a organização revolucionária teve de aprender que ela já não pode combater a alienação sob formas alienadas” (Guy Debord – A Sociedade do Espetáculo.

    A luta de classes, enquanto houver capitalismo e, talvez, mesmo após ele, é imprescritível, assim como o trabalho em que esta luta está fundamentada, sendo este (o trabalho), causa e efeito dos males humanos.

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