O dilaceramento entre objetividade e subjetividade que se apresenta resolvido na transformação radical enquanto negação. Por Arthur

Leia aqui a Conversão de Heloisa.

Ouro Preto, 10 de maio de 2016

Caríssima Helo

Detesto as tais intrigas que me submete Vanessa e seu malfadado romance com aquele imbecil do Rogério. Pedi a ela que tivesse extremo cuidado com nossa relação e que de todas as formas mantivesse uma discrição sobre nossas escolhas.

Acontece, porém, que aquele imbecil não apenas não aceita o modo como nos relacionamos, como agora espalha aos quatro cantos sua forma, como se isso fosse um escândalo inaudível. Não obstante, que ir à desforra comigo.

Então veja só! Não sou eu quem o ameaça é o contrário disso. Gostaria de ficar indiferente a essa besteirada toda, mas, as ameaças e jogos infantis, que aquele desgraçado faz, me impede.

Não resta outra coisa senão chegar às vias de fato. Cris está realmente muito puto com ele e assim que resolvermos algumas coisas iremos trocar algumas ideias mais cativantes com aquele bosta.

Não quero tocar mais nesse assunto e espero que confie em mim para resolvê-lo. Gostaria de conversar com você sobre uma amiga que está claramente com sintomas histéricos e que em todo caso sua patologia me afeta mais que os xingos de Rogério.

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Irene.

Irene sempre foi uma moça esplendidamente saudável, sem sinais de stress; sua inteligência fora do comum surpreendia pelo alto grau de especulação capaz de nos deixar não poucas vezes de queixo caído.

Uma inteligência poderosa, que assimilava com muita facilidade dezenas de filosofias, e mais que isso Helo, ela precisava da filosofia como nós precisamos do sono, entretanto, sua necessidade espiritual foi interrompida pelo trabalho.

Com talento exuberante para escrever poemas, tinha uma razão extremamente exigente e aguçado cunho crítico. Isso tornava ela um ícone que como qualquer grande talento se torna insensível às sugestões.

De opiniões sólidas pela infindável erudição, Irene era um combinado de perseverança e dedicação. Somente abandonava um projeto se o acaso lhe colocasse alguma doação de si para alguma causa que prontamente era abraçada.

Tinha por isso uma bondade quase inata. Posso dizer até, escandalosamente cristã: gostava de ir aos hospitais e visitava orfanatos. Tudo isso era-lhe um extraordinário trabalho para satisfazer aquela vigorosa energia.

Entretanto, sempre notei nas vezes que conversávamos ou depois de uma transa que seu ânimo era sempre o dos excessos: ou ficava desequilibradamente feliz ou se afundava numa tristeza melancólica.

Sua vontade sexual era extremamente fraca, o que causava surpresa tendo em vista que seus poemas tinham alta carga libidinal; nosso convívio, logo que você nos abandonou, trouxe-me uma radiografia de sua vida.

Ela nunca me amou e, talvez, eu nunca tenha tirado dela uma ternura que não fosse uma afinidade intelectual e proximidade de visão de mundo. Nunca tivera outro amor. E esse elemento tão exagerado nunca transpareceu nas suas alucinações recentes.

Seu caso me causa enorme tristeza Helo. E sei que você está também em parafusos por causa de sua recente gravidez. O que fazer então? Temos que nos juntar, nos ver, tomar um café e prosear de perto.

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Numa vida tão enfadonha quanto àquela que nos reserva a vida no interior, só restava Irene adorná-la ao sonhar acordada. Criava monstros, medos, heróis lendários, me apresentava todos e estava sempre disposta a entrar em algum trabalho de base.

Todas estas criações, essa imaginação prodigiosa, estavam lado-a-lado com seus afazeres mais simples. Tudo, o mais simples, era acompanhado por missões especiais, por rupturas profundas com o mundo existente, pelo desenho de um novo tempo.

Ah! Heloisa, uma pessoa extremamente incrível e brilhante. E foi justamente esse sonhar acordado que a guiou para os abismos de sua inconsciência. Fiquei sabendo rapidamente que sua “cabeça” não andava bem e que era para que eu fosse visitá-la.

O que vi vou te descrever e estou fazendo um amplo estudo sobre a neurose e a histeria para tentar entender o que aconteceu com Irene. Em primeiro lugar, era possível perceber que havia duas formas de Irene existentes num só corpo.

Em seu estado patológico o modo como ela se comportava assumia características bem diferentes. Era uma coisa ligada ao humor e a alguma coisa no interior de sua psique que a aflige muito.

Quando está tranquila Irene reconhece sua casa, suas coisas, sua família. Então todas as esperanças retornam porque parece que a “outra” Irene não mais voltaria.

No entanto, quando alucina se torna totalmente incontrolável: pragueja contra todos, diz impropérios, tudo que lhe vem às mãos atira sem remorsos. O humor fica péssimo, qualquer mudança, qualquer pessoa que entra no quarto é motivo para queixa.

Naturalmente, todos retrucam seus impropérios com intuito de acalmá-la e ela fica extremamente abalada quando retorna a sua consciência e enxerga o quarto naquele estado. Estado que ela mesmo deixou, mas que não se recorda.

Uma das coisas mais estranhas é que no meio de uma frase longa ou de um excesso de raiva, ela se interrompe bruscamente como se esquecesse o que estava fazendo ou quem estava xingando, retomando a calma.

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Geralmente interrompe as falas e repete as últimas palavras como se um branco invadisse sua consciência. Sua voz langorosa se expressa segundo um fim, como num anúncio comercial, há uma frase curta seguida bruscamente de um ponto final.

Entretanto, logo após, apresenta um mundo de explicações que avança como uma avalanche. Isso vai assumindo aos poucos dimensões exageradas e a retomada das falas complica o quadro de humores sentidos por ela.

Parece-me que sua ânsia é marcada pela própria tentativa de escapar ao seu Eu, que ao que tudo indica, se dilui em abstração sentindo um impulso irresistível a responder antes mesmo de serem formuladas questões.

Tudo isso começou a tomar grande parte de seu dia. As perturbações alastram-se inclusive para aqueles momentos em que ela, dócil, me chama para se sentar ao pé de sua cama.

Oscilações profundas e traiçoeiras, alegria passageira e tristeza profunda. Tudo parece indicar uma extrema angústia. Pergunto-me Helo: Qual ímpeto a move nessa direção? O da necessidade de explicar-se.

Tudo é aceito desde que explicável e explicado, eis aí nossa característica moderna. Parece querer ancorar sua interioridade no sossego, mas, há em sua psique algo muito doloroso.

Seu pensar é um ato que causa dor e seu sentir é um fato descontente. Sua angústia queima e reencontra-se na dimensão do próprio ato da escrita como algo possível de mediação, único momento que sua alma parece repousar.

Forte sentimento de solidão, oposição intransigente a aceitar sua condição de doente e fazer terapia. Alucina sempre e nessas alucinações afirma estar frente-a-frente com o demônio.

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Nessas horas, entretanto, se agarra ao seu Fausto e diz a si mesma para que não seja tola, pois tudo aquilo é influência do “maldito” ― são suas palavras ― Goethe. Essas alucinações são provocadas ao olhar seu próprio reflexo no espelho.

Quando torna a lucidez, reclama de que não se lembra de nada e fazendo esforço para tentar encontrar respostas para si mesma, chora. Une seus fragmentos psíquicos num saber refletido em si mesmo.

Mas, como sua subjetividade não é alheia a exterioridade, sabe e anuncia que seu saber sobre si é uma necessidade porque dele depende todo o resto, porque ele mesmo é um detalhe de todo o resto.

O que significa duas coisas: por um lado, na união entre o pensar e o sentir que a determina, essa interioridade dilacerada lança-se sobre o vazio de si mesmo e, assim, descobre que o que lhe está reservado no íntimo não lhe pertence, mas, sim a um Outro.

Senta-se então no sofá da sala e reclama de estar ficando muda e surda. Por isso, começa a falar alto ou cantar, porque cisma consigo mesmo que está perdendo a voz.

Para ela então surgem dois Eus, uma boazinha e uma má que segundo o que diz, sopra em seu ouvido as maldades que o mundo oculta. Irene cai no abismo dilacerante entre o eu e o mundo e sua voz narrativa lança-se desesperadamente em busca de chão.

A tardezinha é tomada por uma sonolência que dura algumas horas. Quando se acorda instantaneamente começa a reclamar de algo que a atormenta. Algo não a deixa em paz e a obriga a fazer o que não quer.

Noto, porém, querida Heloisa, que começa a haver aí uma profunda desorganização de sua linguagem. Outro sintoma que começa a aparecer é a gagueira que me parece que está se intensificando.

Além disso, sua fala adquire características infantis e é visível que Irene está perdendo a habilidade da própria gramatica, não há mais conjugação, verbos, e os plurais não são mais empregados.

Seu olhar perdido indica uma fixação que a coloca nas raias de se tornar sua própria personagem. E suas agonias traduzem a problemática de um mundo impossível de penetrar.

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Chorei ao passar a tarde com ela mas voltei lá de novo, e desde então convenço a mãe dela a não tratar sua doença com sedativos. Os problemas de Irene me indicam muitas coisas Helo, me colocam em profunda meditação sobre essa vida.

Vejo como nesse deserto áspero não há espaço para pessoas brilhantes. As dores de Irene são resultado de um mundo coisificado de relações fetichistas. Para o mundo concreto e objetivo tanto ela quanto suas dores são desprezíveis.

A crise que passamos revela-se entre a própria estrutura da psique e seu conteúdo surgindo como uma negação do mundo autônomo e indiferente ao homem.

A denúncia da relação dilacerada entre a objetividade e subjetividade, assume-se como único ponto em que é possível identificar o vazio de nossa existência. Uma denúncia que no ato de pensar e sentir traz a possibilidade do novo.

É nesse ato que se atinge a negação seguida da superação. Podemos, assim, dizer que há uma crise. Uma crise que prognostica o drama da própria, eu diria, desubstancialização da vida em fins do século XX.

É uma crise que se estabelece entre o vivido e o saber revelando a tentativa de encontrar ainda um sentido. E o único sentido possível não está no Prozac, mas na negação peremptória das relações dirigidas pelo capital.

Em Irene o combate de sua alma evidencia o abismo existente entre o homem e as coisas. Combate que ao que parece, tornou-se perdido. Como numa gestação, sua dor nos denuncia a situação do mundo atual.

Irene está inteiramente oca? Personagens ― criados a partir de sua alucinação ― aqui se desenvolvem em relação mútua e a negação do mundo real revela-se como único caminho que para eles constituem a si próprios.

Irene é, para mim, a única possibilidade de reconhecer-se a si mesmo no “outro”. Eis aí, o dilaceramento entre objetividade e subjetividade que se apresenta resolvido na transformação radical enquanto negação.

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Entretanto, se Irene não atinge esse mundo, este atinge totalmente ela. Numa relação que denuncia que a única autonomia é monopólio desse mundo concreto e vazio.

A partir de então, surge os traços desajeitados de sua angústia frente ao mundo que lhe é algo de estranho e, que ela o responde com traços maquinais pela própria redução de sua humanidade.

Irene não é nada, e esta negação traz em si a contradição que no outro extremo se torna uma superação: ela não é nada no mundo das coisas, indiferente, frio e hostil. O mundo de Irene é o mundo livre daquele Sujeito automático.

Sua negação aponta uma superação em que a configuração da vida consegue se equilibrar por intermédio do desequilíbrio da vida psíquica.

A sua histeria descreve acontecimentos monótonos, mas, que estão relacionados diretamente com sua grandiosidade.

A singular loucura torna possível a superação, tendo em vista que, não ter nada e não querer ser nada, não a reduz a coisa que possui ou a afirmação de algo que se quer ser ou que se é.

Querida Heloisa algumas observações que fiz culminaram na certeza de que Irene detém, em seu interior, a união entre o Eu e o Mundo, mesmo este último sendo-lhe indiferente.

Indagar, questionar e ficar abruptamente nervosa, liga-se ao núcleo da redução a que está submetida, e há um só tempo, supera essa redução por se ligar imediatamente as coisas e com elas estabelecer uma relação real livre dos simbolismos.

Irene apenas vive, acreditando ainda, que é obrigada a ser feliz.

Irene em sua dor profunda tem um total desencantamento com esse mundo. É isso a órbita na qual suas indagações a respeito de sua existência são efetuadas.

Em outras palavras, a dor é a ponte na qual as respostas da incomensurabilidade do real serão problematizadas. A necessidade do reconhecimento se torna necessária para superar sua subjetividade fechada.

Refletindo sobre suas dores, sobre a melancolia que tem invadido todos nós, cheguei à conclusão que a dor de Irene consiste em denunciar que, embora, a cisão não se supere, pelo menos se reconheça a emergente necessidade de sua aniquilação.

Aniquilação que só poderá advir com o desmonte dessa sociedade pútrida.

Passei a semana inteira conversando com Vanessa e com Cris a respeito dessa lição tirada da doença de Irene. Se o tom é de desencanto, a esfera social de Irene é a esfera dos desvalidos.

Não é uma grande mulher, não é grande em nada. Sua condição é a da redução humana a coisa, mas mesmo com isso, acredita-se capaz, apagada na rotina infrutífera e desumana sustentada por um absurdo que a atravessou em todo caminho.

Acha bom ficar triste, mas nunca se desespera. Acredita-se boa, mas, nunca sorri, não quer superar a sua condição de louca e bondosa: vive de si mesma como se comesse as próprias entranhas.

Com seu estado piorado, entrou agora num mutismo e numa tranquilidade absorta em mistérios.

Assim, Irene parece-nos um ser sem recusa, pois, não grita, não luta e nada faz. Porém, é exatamente esse caráter de nada fazer, de incapacidade e desilusão, que representa sua mais forte recusa.

Veja minha reflexão Helo: um duplo movimento de negação do mundo das coisas. Ela não nega apenas a ideia, ao crer-se boa demais para o mundo, ela nega também o mundo, ao não fazer dele parte, mesmo nele estando.

Seu sentido é um não-sentido, sua fome atravessa os limites corpóreos e atinge o espírito. É antes de tudo, uma rotina sisífica. A regularidade de sua vida, sua falta de encanto frente ao mundo, a falta de redenção é completa.

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Irene se tornou evasiva e se encontra agora nos recônditos de sua própria alma. Seu exemplo não é heroico, mas o sintoma de um mundo caduco e vazio. Indiferente e hostil. Todos que entendem a dor de Irene necessitam acabar com esse mundo.

Isso não é uma ode, mas se não estamos no século da histeria, sabemos que a neurose foi aquilo que impulsionou o capital. Por isso, a histeria de Irene é, portanto, sinal da abertura de um novo tempo do mundo.

Nossa! Me estendi bastante sobre esse tema.
Ah! Sobre o Cris e a nossa querela com Rogério deixe estar!
Não ligue para Vanessa, eu só espero que ela tenha tomado vergonha na cara e se afaste desse cara!

Preciso te contar mais acontecimentos, mas fica para a próxima. Dia 18 estou indo para São Paulo e vou te ver. Prepare um bom rango.

Beijos

De teu Arthur.

PS ― Depositei o dinheiro em sua conta, você não confirmou se recebeu ou não.

As imagens que ilustram esta carta são de Edvard Munch.

Leia aqui a 5ª carta de Helo a Arthur.

1 COMENTÁRIO

  1. do meu mundo, essa foi a melhor carta!
    parabens para os envolvidos na escrita de cada uma!
    se Helo ou o Arthur existem, é uma questão
    agora se estes acontecimentos são ou não reais, não há dúvida
    Irene existe e está presente em muitas pessoas por aí
    Grata!

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