Na Segunda Guerra Mundial, ambas as frentes, tanto a democrática quanto a fascista, estão suscetíveis de serem derrotadas – uma militarmente, a outra economicamente. Por Otto Rühle
Comunista de esquerda alemão, Otto Rühle (1874-1943) [1] escreveu este artigo em 1940, durante seu exílio no México. Publicado pela primeira vez na revista estadunidense editada por Paul Mattick, Living Marxism (v. 5, n. 2, outono de 1940), “Which side to take?” é agora publicado em português, traduzido coletivamente pela Resistência Autonomista (RA) e revisado pelo Passa Palavra como parte do esforço de traduções do centenário da Revolução Russa (veja aqui a lista de textos e o chamado para participação).
A Segunda Guerra Mundial tem apresentado graves e fatais problemas ao movimento operário socialista. Novamente, ele se depara com uma situação semelhante à que o antigo movimento trabalhista se confrontou no início da Primeira Guerra Mundial. Existe o perigo de que os erros que trouxeram desgraça para a social-democracia se repitam.
A questão que se coloca hoje para nós é se o slogan de Liebknecht: “O inimigo está em casa!” continua válido para a luta de classes agora como era em 1914. Quando Liebknecht expressou seu slogan as condições da luta de classe eram relativamente simples. Na Alemanha, por exemplo, o governo semifeudal foi, sem dúvida, considerado um inimigo maior do proletariado do que os governos democráticos da Entente. Hoje, também, o governo fascista da Alemanha é aparentemente um inimigo mais perigoso dos trabalhadores do que a Inglaterra. O slogan de Liebknecht teria hoje uma validade ainda maior para a classe proletária alemã do que tinha em 1914.
Apesar disso, parece que hoje os trabalhadores nos países democráticos enfrentam uma situação diferente. A democracia burguesa os confronta na sua luta pela emancipação política e econômica. No entanto, estando em guerra com os Estados totalitários, principalmente com o fascismo alemão, as democracias não podem ser consideradas o arqui-inimigo do proletariado.
Devido à estrutura política e à mecânica de sua luta de classes, os países democráticos são forçados a conceder certas liberdades ao proletariado, o que lhe permite continuar a lutar à sua maneira. Nos países totalitários isso já não é possível. No quadro da ditadura, mesmo quando se autodenomina socialista, o proletariado não tem liberdades, nem direitos, nem possibilidades de lutar suas próprias lutas. Não há dúvida de que o totalitarismo é o inimigo maior, mais perverso e perigoso do proletariado. Assim, parece então que o slogan de Liebknecht perdeu validade para o proletariado nos países democráticos.
Perante esta situação, os movimentos proletários dos países democráticos mudam de foco e deixam de lado a luta contra a democracia enquanto ela se empenha numa guerra contra os países totalitários, numa grande cruzada contra o seu inimigo: o monopólio, o fascismo, o bolchevismo – o sistema totalitário em geral.
É esta conjuntura que origina a atual confusão, debate e controvérsia no interior do movimento operário. Contudo, para entender as atuais mudanças táticas é necessário ter algum conhecimento da conjuntura anterior à mudança de política em 1914. Leis, princípios, programas e slogans possuem validade transitória, são determinados historicamente por fatores de tempo, contextos e circunstâncias, e devem ser vistos dialeticamente. Assim, o que pode ter sido a tática errada de então, pode ser correta hoje, e vice-versa. Vamos aplicar isso à mudança tática atual.
Quando, em 1914, a Social-Democracia Alemã capitulou ao Kaiser e votou a favor dos créditos de guerra, o proletariado de todo o mundo classificou esse ato como uma vergonhosa traição ao socialismo. Até então, tinha sido uma política estabelecida dos socialistas nos parlamentos a de se oporem às dotações militares. No caso dos créditos de guerra foi dado como certo que os socialistas agiriam de acordo com a política estabelecida. Portanto, quando os socialistas votaram os créditos de guerra, romperam uma tática estabelecida e traíram um princípio estabelecido.
Este ato foi generalizadamente condenado e suscitou disputas acaloradas dentro de todo o movimento socialista. Os oportunistas o justificaram com o argumento de que trocavam “canhões por reformas sociais”. Os radicais, por outro lado, instaram a uma luta mais vigorosa contra o governo para transformar a guerra em guerra civil e preparar a luta final – a revolução que se aproximava.
Para as correntes atuais essa luta perdeu o significado, principalmente porque os partidos socialistas e os funcionários parlamentares perderam o significado em muitos países. E naqueles países onde eles ainda são tolerados, suas vozes se tornaram mera tagarelice. Ou não são consultados se irão apoiar a concessão de créditos de guerra, ou eles mesmos são seus defensores mais firmes. Sem deliberação e sem luta eles estão do lado de seus governos. Se antigamente eram aliados da burguesia, agora eles são seus servos e lacaios, sem estarem minimamente conscientes de seu papel de traidores. Na Inglaterra, França, Holanda, Noruega, Suécia, Finlândia, Bélgica, Suíça e Checoslováquia – na verdade em todos os lugares – os socialistas estavam e estão à margem da burguesia. E os “comunistas” – outrora os mais ferozes críticos e opositores dos social-democratas, para quem eles inventaram o termo “social-fascista” – inclinaram-se para a burguesia antes mesmo de sua degeneração política e traição que culminou na capitulação a Hitler e ao fascismo.
Como explicaremos essa mudança? É porque todos os representantes do socialismo e do comunismo se tornaram patifes e canalhas? Assumir isto seria muito simplista. Não importa quantos malandros e canalhas possam existir entre eles, a razão para esta mudança é mais profunda. Deve ser procurada na mudança das organizações partidárias, nos tempos que mudaram. Essas mudanças se tornaram evidentes e óbvias. O antigo movimento social-democrata surgiu durante a primeira fase da era capitalista, a qual se pode denominar de fase do capitalismo privado (laissez-faire). Foi daí que a social-democracia recebeu o impulso que a originou, as condições para seu crescimento, a estrutura de suas organizações de massas, o campo, a tática e as armas para suas lutas. Sua substância era derivada da substância do sistema em que viveu e lutou, e que esperava derrotar. Embora tentando ser o oposto, não poderia ajudá-lo, mas ser como ele em todos os sentidos.
Este sistema entrou em sua última fase com a Primeira Guerra Mundial. É agora uma luta de vida ou morte contra a nova fase ascendente, que descrevemos como Capitalismo de Estado. Assim como o primeiro encontrou sua expressão ideológica e política no liberalismo e na democracia, o segundo encontra sua expressão no fascismo e na ditadura. A democracia era a forma estatal do capitalismo ascendente, da luta contra o feudalismo, o monarquismo e o clericalismo, revelando todos os poderes individuais para a vitória e ascensão do sistema econômico capitalista, do ambiente social e do legado cultural da ordem burguesa. Este período ascendente terminou há muito tempo. A democracia torna-se cada vez mais insuficiente e insustentável para o capitalismo atual, pois os interesses capitalistas não podem mais viver e crescer sob ele. Eles exigem novas condições sociais e políticas, uma nova ideologia e uma nova forma estatal – um novo aparato dominante. A fase democrática é descartada e demolida para que o fascismo possa tomar o seu lugar. Pois apenas sob o fascismo o capitalismo de Estado pode se desenvolver e prosperar.
Quando a democracia deixa de ser a forma estatal válida e dominante, também cessa o movimento que dela recebeu seu ímpeto, direitos e forma de existência. Não pode continuar a viver com seu poder próprio. Parlamentarismo, máquina partidária, métodos de organização autoritários e centralizadores, técnica de agitação e propaganda, estratégia militar, tática de compromissos, racionalizações e ilusões metafísicas e irracionais – tudo isto a social-democracia recebeu do rico arsenal da burguesia. Tudo era parte integrante, carne da carne, do mundo burguês-democrático-liberal. E porque tudo isso terminou, o movimento desmoronou, tornando-se uma sombra de sua antiga forma. Ele só pode se debater e gemer sob a capa do manto rasgado e esfarrapado da democracia moribunda até que chegue sua própria morte.
O capitalismo privado – e com ele a democracia, que está tentando salvá-lo – é obsoleto e segue o caminho de todas as coisas mortais. O capitalismo de Estado – e com ele o fascismo, que lhe abre o caminho – está crescendo e conquistando poder. O velho se foi para sempre e nenhum exorcismo funciona contra o novo. Não importa o quanto possamos tentar reavivar a democracia, ajudá-la mais uma vez a ficar de pé sobre suas pernas, fazê-la respirar um sopro de vida, todos os esforços serão fúteis. Todas as esperanças de uma vitória da democracia sobre o fascismo são ilusões crassas, toda crença no retorno da democracia como uma forma de governo capitalista vale apenas como astuta traição e covarde autoilusão. Aqueles líderes trabalhistas que hoje estão do lado das democracias e tentando conquistar as organizações de trabalhadores para esse lado, apenas fazem o que seus governos particulares e os funcionários em geral estão fazendo. Ou seja, recrutando trabalhadores, sem-teto e emigrantes desesperados para seus exércitos e lançá-los nas frentes de batalha contra os fascistas. Estes oficiais de recrutamento voluntário, mercenários das democracias, são cavalheiros tão refinados quanto aqueles sequestradores que fornecem navios de morte com marinheiros escravizados. Cedo ou tarde, até mesmo as democracias serão forçadas a livrar-se deles, pois fica cada vez mais óbvio que os governos democráticos não desejam uma guerra real e séria contra o fascismo. Não proporcionaram ajuda real à Polônia. Nenhuma tentativa séria foi feita para salvar a Finlândia. Enviaram soldados mal armados para a Noruega. Assinam pactos econômicos com a Rússia, cúmplice e seguidora a serviço de Hitler. Tudo o que eles estão fazendo é calculado para forçar a Alemanha a ficar em uma posição tão difícil e insustentável a ponto dela se dispor a entrar em uma parceria de negócios capitalista-fascista que permitirá ambos os lados escravizar o mundo inteiro. Ambos os métodos de governo ficam a cada dia mais semelhantes. Que democracia real havia na Checoslováquia? Na Polônia? Que democracia os refugiados espanhóis e outros emigrantes encontraram na França onde todos os direitos humanos e a dignidade humana foram lançados aos cães? Quão democrático é o governo do capitalismo monopolista nos EUA? Toda a democracia está praticamente morta. E todas as esperanças dos trabalhadores de reanimá-la através de seus esforços são pura ilusão. As experiências da social-democracia austríaca, alemã e checoslovaca não são suficientemente assustadoras? É este o desastre do proletariado que estas organizações obsoletas, baseadas em uma tática oportunista, fizeram com que ele se tornasse indefeso contra o ataque do fascismo e perdesse sua posição própria no corpo político do tempo presente, deixando de ser um fator histórico da época atual. Foi varrida para a montanha de esterco da história e apodrecerá lado a lado com a democracia e com o fascismo, porque a democracia de hoje será o fascismo de amanhã.
A expectativa na revolta final do proletariado e sua libertação histórica não surge dos miseráveis remanescentes de velhos movimentos nos países ainda democráticos e menos ainda dos frangalhos das tradições partidárias que se espalharam pelo mundo afora na emigração. Também não surge de noções estereotipadas de revoluções passadas, independentemente de acreditar nas bençãos da violência ou na “transição pacífica”. Antes, a expectativa vem dos novos estímulos e impulsos que animarão as massas nos Estados totalitários e os forçarão a fazer sua própria história. A autoexpropriação e a proletarização da burguesia pela Segunda Guerra Mundial, a superação do nacionalismo pela abolição de pequenos Estados, a política mundial do capitalismo de Estado baseada em federações estatais, a difusão do conceito de classe até promover um interesse majoritário pelo socialismo, a mudança do eixo de gravidade da forma tipicamente laissez-faire da competição burguesa para a inevitável socialização do futuro, a transformação da luta de classes de categoria abstrata-ideológica para uma categoria prática-positiva-econômica, a ascensão automática dos Conselhos de Fábricas como desdobramento da autogestão do trabalho enquanto reação ao terror burocrático, a exata e racional regulação e orientação das atividades e condutas humanas por meio da abolição do poder impessoal, inconsciente e cego da economia de mercado – todos esses fatores podem nos tornar conscientes da enorme explosão de energias libertadas quando o primitivo, mecânico, cruel e brutal coletivismo social apresentado pelo fascismo for finalmente superado.
Ainda não enxergamos por quais meios o fascismo será superado. Contudo, nos parece razoável sustentar que a mecânica e a dinâmica da revolução sofrerão mudanças fundamentais. O conceito tradicional de revolução deriva principalmente desse período que viu a transição do mundo feudal ao burguês. Este conceito não será válido para a transição do capitalismo ao comunismo. O efeito e o sucesso da revolução podem ser percebidos a partir do fato de que a atual coletivização forçada, que agora está rompendo seus grilhões burocráticos, desenvolve sua própria dinâmica em direção a maiores e mais amplos equilíbrio, consolidação e essência. A depuração final deve conduzir a uma orientação baseada no princípio da liberdade, igualdade e fraternidade, para que o livre desenvolvimento de cada indivíduo se torne a pré-condição para o livre desenvolvimento de todos.
Não se trata de uma utopia, mas um aspecto de um desenvolvimento muito real na próxima época histórica que a Segunda Guerra Mundial está a introduzir. Concentrar a atenção neste desenvolvimento, contar com este processo – basicamente geral e profundamente revolucionário –, ajudá-lo a se fortalecer por meio de condutas e ações, defendê-lo contra obstáculos e distorções é a tarefa revolucionária com que nos confrontamos hoje. Na Segunda Guerra Mundial, ambas as frentes, tanto a democrática quanto a fascista, estão suscetíveis de serem derrotadas – uma militarmente, a outra economicamente. Não importa de que lado o proletariado se coloque, estará entre os derrotados. Portanto, não deve estar com as democracias e nem com os totalitários. Para os revolucionários com consciência de classe, há apenas uma solução: romper com todas as tradições e vestígios das organizações do passado, varrer todas as ilusões com a época intelectual burguesa e realmente aprender com as lições de debilidade e desilusão sofridas durante a fase infantil do movimento proletário.
Nota dos tradutores
[1] Sobre o autor: Otto Rühle (1874-1943) foi um dos que tentou pensar a revolução em todas as suas dimensões. Se interessou por história, economia, pedagogia, educação, psicanálise. Autor, entre outros, dos seguintes livros: “Programa para uma Escola Socialista” (1911), “Questões básicas de educação” (1912), “Psicologia da criança proletária” (1925), “Karl Marx. Vida e obra” (1928), “História cultural e social do proletariado” (1930), “A crise mundial. Para o Capitalismo de Estado” (1932, sob o pseudônimo de C. Steuermann), “Planos para uma nova sociedade” (1935), “A luta contra o fascismo começa pela luta contra o bolchevismo” (1939, publicado originalmente por Living Marxism, revista editada por Paul Mattick), “Perspectivas para uma revolução em países altamente industrializados” (1940). Em 1911 foi deputado do SPD na Dieta da Saxônia. Em 1912 foi membro do SPD no Reichstag. Simpatizou com a esquerda do partido. Em março de 1915, juntamente com Karl Liebknecht, se negou a votar os créditos de guerra. Em janeiro de 1916 foi um dos primeiros a chamar a cisão do partido e participou da fundação da Liga Spartacus. Em 1917 foi um dos líderes dos IKD (Comunistas Internacionais da Alemanha, organização que sucedeu aos ISD-Socialistas Internacionais da Alemanha, que reunia os “radicais de esquerda” contrários à direção socialista em 1916-1918). No final de 1918 tem atuação ativa na Saxônia, onde sua tendência se retira rapidamente dos Conselhos dominados pelos social-democratas. Foi porta-voz da maioria de esquerda no congresso de fundação do PC Alemão-KPD(S) onde apresentou a moção antiparlamentar, aprovada contra Rosa Luxemburg. Em outubro de 1919 participou do Congresso de Heidelberg propagandeando a “organização unitária”. Em abril de 1920 contribuiu para a fundação do KAPD (Partido Comunista Operário da Alemanha), sob a condição de que o partido se dissolvesse rapidamente na AAUD. Em julho de 1920, tendo sido eleito delegado do KAPD ao II Congresso da III Internacional foi a Moscou, mas se recusou a participar e foi expulso do partido por esse motivo. Sobre sua estadia na Rússia escreveu “O proletariado russo está ainda mais subjugado, oprimido e explorado que o proletariado alemão.” Foi um dos pioneiros da fundação da AAU-E. Em 1925 se retirou da política “militante” e retomou seu trabalho cultural e econômico. Em 1933 emigrou para a Checoslováquia e, em 1936, para o México onde dirigiu, juntamente com John Dewey, a comissão para apreciação das acusações stalinistas contra Trótski. Em discussões com este último, manteve suas posições antibolcheviques. Às vésperas da guerra rejeitou a frente antifascista e anunciou o fim da democracia – não em suas formas, mas em seu conteúdo – e o triunfo dos princípios fascistas (total dominação do capital e do Estado sobre a sociedade).
Duas datas-limite: 8 de março de 1917 e 8 de maio de 1937. Em, respectivamente, Petrogrado e Barcelona, abria-se e se fechava, à escala mundial, o ciclo histórico de revolução e contrarrevolução no século XX.
A tragédia da Comuna de Paris, luminosa iniciativa precursora massacrada após 72 dias (18 de março a 28 de maio de 1871) de ‘assalto aos céus’ seria exponenciada nesses 20 anos.
Há que examiná-las: Rússia – 1917, sim; Espanha – 1937, por que não?
Isto é, se quisermos compreender as derrotas do proletariado, há que examiná-las: revolução e contrarrevolução (Rússia & Espanha), ponto e contraponto, início e fim de um processo cosmo-histórico cujas nefastas sequelas estamos vivenciando…
suite:
GUERRA DE CLASSES (REVOLUÇÃO) versus GUERRA IMPERIALISTA (CONTRARREVOLUÇÃO)
Em Petrogrado, março de 1917, a guerra de classes – protagonizada pelas massas proletárias – anunciava o fim da primeira guerra imperialista mundial.
Em Barcelona, maio de 1937, o massacre do proletariado revolucionário viabilizava uma carnificina planetária: a segunda guerra imperialista mundial.