Miasnikóv merece uma atenção mais cuidadosa do que tem tido até agora por parte de historiadores ocidentais. Por Paul Avrich

Durante os anos de Lênin no poder, de outubro de 1917 até sua morte em janeiro de 1924, uma série de grupos tomou forma no interior do Partido Comunista Russo – os Centralistas Democráticos e a Oposição Operária são os mais bem conhecidos – que criticaram a liderança bolchevique por abandonar os princípios da revolução. A revolução, como desenhada por Lênin em “O Estado e a Revolução” e outras obras, tinha prometido a destruição do Estado burocrático centralizado e sua substituição por uma nova ordem social, moldada na Comuna de Paris de 1871, na qual a democracia direta dos trabalhadores seria realizada. O traço cardinal desse “Estado comuna”, como Lênin o chamou, seria o repúdio da autoridade burocrática. Os próprios trabalhadores administrariam o governo através de organizações de base, das quais os sovietes foram o exemplo primário. O controle dos trabalhadores, através de comitês de fábrica e sindicatos, funcionaria de maneira similar na vida econômica, substituindo a propriedade privada e a gerência por um sistema de democracia industrial e autoadministração no qual a base moldaria seu destino. Enganos seriam cometidos, Lênin entendia, mas os trabalhadores ganhariam experiência. “A coisa mais importante”, declarou, “é instilar nas massas oprimidas e trabalhadoras a confiança em seu próprio poder”[1].

Esta era a visão de Lênin antes de outubro. Uma vez no poder, entretanto, ele viu as coisas por uma perspectiva diferente. Da noite para o dia, como se deu realmente, os bolcheviques foram transformados de um partido revolucionário em um partido governante, de uma organização que encorajava a ação espontânea contra as instituições existentes em uma organização que procurava contê-la. Com o passar do tempo, além do mais, eles encararam uma gama crescente de dificuldades – guerra civil, esgotamento econômico, descontentamento popular crescente, pura exaustão física – que ameaçavam a sua própria sobrevivência. Lênin e o Comitê Central buscaram lidar com os problemas que se avolumavam ao seu redor. No processo, teorias foram modificadas ou abandonadas, princípios foram transigidos ou protelados. A manutenção do poder encolhia todos os outros objetivos. O partido da oposição e revolta tinha se tornado o partido da disciplina e da ordem[2].

Sob crescente pressão, os quadros dirigentes bolcheviques assumiram uma posição crescentemente ditatorial. Uma por uma, as metas de democracia proletária, igualdade social, autogestão dos trabalhadores, foram postas de lado. As instituições da nova sociedade eram refeitas em moldes autoritários, e um novo edifício burocrático foi construído, com sua concomitante corrupção e burocracia. No governo e no partido, na indústria e no exército, hierarquias e privilégios foram restaurados. Em lugar de gestão coletiva das fábricas, Lênin estabeleceu a gestão unipessoal e a estrita disciplina de trabalho. Reinstituiu o pagamento mais alto para especialistas e gestores, além do salário por peça e outros traços descartados do capitalismo. Sovietes, sindicatos e comitês de fábrica foram transformados em ferramentas do aparato do Estado. A autoridade foi crescentemente concentrada nas mãos de uma elite do partido.

Operários de Putilov, São Petesburgo.

Essas políticas não poderiam deixar de despertar oposição. O que elas tinham a ver com as metas originais do partido? Tinha sido por isso que a revolução havia sido feita? Questões desse tipo perturbavam um número crescente de intrépidos bolcheviques. Incapazes de permanecer em silêncio, dissidentes na ala esquerda do partido levantaram suas vozes em protesto. Entre eles estava Gavriil ll’ich Miasnikóv, um metalúrgico dos Urais e bolchevique desde 1906. Um dos mais expressivos entre os primeiros oposicionistas, ele é também um dos mais obscuros. Ainda assim, no começo dos anos 1920 ele ganhou proeminência como um crítico das políticas de Lênin, colocando questões da maior importância: quem ira decidir o que é do interesse dos trabalhadores? Que métodos são permitidos para resolver disputas entre revolucionários? Até que ponto uma crítica honesta dos oficiais do partido se torna “desvio” e insubordinação? Miasnikóv, vendo suas mais profundas aspirações revolucionárias frustradas, desenvolveu uma elaborada e penetrante crítica da ditadura em criação, apontando para perigos cujas consequências plenas não eram ainda aparentes.

A crítica de Miasnikóv tornou-se foco de um amargo debate. Ela apareceu na maior parte tanto no Décimo Primeiro como no Décimo Segundo Congressos do Partido [N. do T.: 1922 e 1923, respectivamente], atraindo fogo de virtualmente todos os quadros dirigentes do partido, acima de tudo do próprio Lênin. O debate, além do mais, teve repercussões internacionais, envolvendo a Internacional Comunista e também como partidos e organizações estrangeiras.[3]

Miasnikóv, portanto, merece uma atenção mais cuidadosa do que tem tido até agora por parte de historiadores ocidentais[4]. O objeto do presente artigo é não apenas contar sua história nos devidos detalhes, mas também relacioná-la com as questões maiores em torno da emergência da ditadura bolchevique. Miasnikóv, é verdade, foi uma figura secundária na galeria de retratos da revolução. No entanto, ele foi um bravo e colorido indivíduo e merece ser melhor conhecido. Ele adicionou uma forte voz proletária ao debate sobre o significado do socialismo. Mas o que empresta à sua história uma particular pungência é que ele foi um revolucionário dedicado, um bolchevique de longa duração, que estimava os ideais de Outubro apenas para vê-los comprometidos e esmagados. Sua derrota, de certa maneira, simboliza a derrota da própria revolução.

Bolcheviques em Perm após o assassinato da família real. De bigode e braços cruzados, Miasnikóv é o terceiro da esquerda para a direita.

Este artigo será publicado em quatro partes:
Introdução
Antes e durante a Revolução Russa
Depois da expulsão do partido
Exílio e últimos anos

Notas
[1] V. I. Lenin, Polnoe sobranie sochinenii (daqui em diante citadas como PSS), 55 vols., Moscou, 1958-1965, vol. 34, p. 316.
[2] Merle Fainsod, How Russia is ruled, rev. ed., Cambridge, MA, 1963, p. 87.
[3] Em anos recentes, Miasnikóv ganhou simpatia entre dissidentes soviéticos, mais notavelmente o historiador Roy Medvedev. Veja-se o livro de Medvedev, On socialist democracy, Nova Iorque, 1975, pp. 186-187; e “O tragicheskoi sud’be G. I. Miasnikova i ego sem’i,” in Politicheskii dnevnik, 1965-1970, Amsterdã, 1975, pp. 58-60. Sou grato a Boris Orlov, da Universidade de Tel-Aviv, por chamar minha atenção para este artigo.
[4] O único tratamento aprofundado é o de Roberto Sinigaglia, “Miasnikov e la rivoluzione russa”, Milão, 1973, uma obra útil com excertos dos escritos de Miasnikóv em tradução italiana.

Traduzido e anotado por Daniel M. Delfino a partir do original disponível na Russian Review, vol. 43, nº 1 (jan. 1984), pp. 1-29, corrigido segundo a errata disponível na Russian Review, vol. 43, nº 3 (jul. 1984), p. 337 e revisado pelo Passa Palavra. Este artigo faz parte do esforço coletivo de traduções do centenário da Revolução Russa mobilizado pelo Passa Palavra. Veja aqui a lista de textos e o chamado para participação.

3 COMENTÁRIOS

  1. Mano, que série nada, eu quero é ler os textos do passa palavra e conhecer a história da minha classe!
    Viva a luta dos trabalhadores e o comunismo!
    Abaixo a pré-história da humanidade!

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