Risério é inimigo do movimento negro? É bem provável que sim, mas os risérios da vida são o menor dos problemas. Por Passa Palavra

Entre tantas polêmicas deste fim de ano, quase todas inúteis, eis enfim uma que vale a pena: qual a posição dos movimentos negros e dos seus intelectuais em relação à miscigenação?

O debate, que de atual não tem nada, voltou à tona após a publicação dum texto de Antônio Risério no jornal de maior circulação do país, cujo título é: “Movimentos negros repetem lógica do racismo científico”. Uma provocação que, conquanto rasa, desestabilizou seus pretensos interlocutores e deslanchou amplo debate entre os interessados pelo tema.

Basicamente, Risério resgatou as teses da natureza miscigenada do povo brasileiro, amplamente defendidas por aqueles que compuseram outrora parte dos setores progressistas do pensamento local, e que se colocavam na oposição aos teóricos defensores da apartação entre as raças (estas enquanto construções biológicas para muitos deles), obviamente considerados conservadores. A lógica por trás do argumento, apresentado de forma quase completa por Gilberto Freyre em seu clássico “Casa Grande & Senzala”, era simples e devastadora: contra aqueles que defendiam uma total apartação entre negros, índios e brancos no Brasil com base em fenótipos e genealogias “de quatro costados”, esta corrente, que chamaremos por comodidade de miscigenista, defendeu, com base em farta pesquisa documental, arquivística e memorialística, que as coisas eram bem mais complexas. Não haveria uma só família aristocrática que não houvesse sido composta também por filiações ditas “ilegítimas”, por relações sexuais extraconjugais as mais diversas, e tudo isto era um salto frente a intelectuais do quilate de Nina Rodrigues, Euclides da Cunha e Oliveira Viana que, apesar de seu gênio e perspicácia, eram franca e desabridamente racistas, em função tanto do quadro intelectual positivista em que estruturaram suas obras, quanto do racismo legitimador de 350 anos de escravidão.

Isto, não obstante, se deu no quadro intelectual das três primeiras décadas do século XX, num momento em que a busca pela “especificidade” brasileira no mundo estava em moda. Não por acaso Gilberto Freyre costuma ser associado aos modernistas regionalistas seus contemporâneos (Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Dionélio Machado, José Lins do Rego, Érico Veríssimo, Graciliano Ramos etc.), precisamente porque foi em meio a este métier literário que se deu sua formação intelectual no Recife. E foi neste quadro que o aspecto mais conhecido do miscigenismo foi divulgado e adotado pelas classes dominantes: a “democracia racial”, ou seja, a ideia de que o racismo no Brasil seria muito mais suave que em outros países onde vigeu a escravização de africanos. Esta “democracia racial” idealizada cedo tornou-se ideologia de Estado sob o regime varguista, para quem o panorama de ausência de conflitos sociais pintado por esta teoria servia de legitimação. As posições antes progressistas passaram a conservadoras, pois a “democracia racial”, corolário político do miscigenismo, era agora instrumento de negação do racismo mais que evidente na sociedade brasileira. Do fato evidente e inconteste das relações sexuais e familiares entre pessoas de diferentes “raças”, passou-se à legitimação do racismo por meio da ocultação dos conflitos.

Desde a década de 1950 pelo menos já se avançou muito nas pesquisas e debates sobre o tema, e ficou evidente o que era óbvio: a “democracia racial” nunca existiu, pois os aspectos sentimentaloides destacados por seus defensores se davam em meio a um contexto de profundíssimos conflitos sociais entre escravos e seus senhores, quase invariavelmente em desfavor dos primeiros. Ocorre que Risério parece achar mesmo que a sua posição ainda é progressista simplesmente por agora assumir, sem mudar a essência do argumento, a inexistência da “democracia racial”, mesmo após décadas deste debate ter sido inaugurado e também décadas depois de sua posição sofrer contestações severas e bem fundamentadas.

Além da defesa da miscigenação, Risério também teceu fortes críticas a Abdias do Nascimento, um dos teóricos, agitadores e militantes mais destacados do movimento negro brasileiro. Abdias, ainda segundo Risério, teria definido o mulato — o miscigenado entre negro e branco — como elemento crucial do genocídio dos brasileiros de ancestralidade africana. O resumo é que Risério acusa os movimentos negros de resgatar as teses e as práticas do “racismo científico” outrora usadas contra eles mesmos e, o que parece ser a maior preocupação do autor, parte em defesa das relações amorosas entre qualquer raça.

O texto causou muita revolta entre os militantes do movimento negro e suas mais plurais vertentes e, claro, deve ter feito brilhar os olhos de setores conservadores, apesar de boa parte deste ser contrária à miscigenação. Essa bipolaridade praticamente interditou o debate pois, no primeiro momento, como quase todas as demais polêmicas de rede social, ficou-se nas questões do “lugar de fala”: Risério é um homem branco defendendo a sua branquitude, Risério é um falso-polemista a serviço dos setores conservadores, Risério não conhece os movimentos negros etc. Mas o fato é que muitas das críticas de Risério já vinham sendo feitas por outros sujeitos sem, contudo, ganharem a amplitude necessária para provocar um debate público.

Das poucas vozes que romperam o silêncio, a grande maioria caiu na armadilha deixada pelo próprio Risério e trataram 1) o movimento negro como se fosse um bloco monolítico, sem práticas contraditórias e posições antagônicas; 2) Abdias do Nascimento enquanto persona intocável, desprovida de história; 3) a miscigenação — ou a mestiçagem como preferem outros — como um problema em si. Ora, se de genial não há nada nos argumentos de Risério, a sua inteligência reside precisamente na desestabilização que promoveu em seus interlocutores. Enquanto os provocados se recusam a replicar o provocador, o argumento central, requentado ou não, pobre ou relevante, continua a se difundir entre aqueles que não se afetaram emocionalmente.

Vejam, por exemplo, a resposta de Kabenguele Munanga, de quem poderiam vir facilmente linhas que demoliriam por completo as teses de Risério. Ou a reposta do Colegiado de Ciências Sociais da Universidade Federal do Vale do São Francisco que só nos serve para mostrar que os professores de lá entendem do tema, mas em nada contribuem para que os não iniciados saiam das suas trincheiras. Desestabilizados, abrem mão de responder não a Risério — algo que ele nunca quis — mas a todos que esperam dos movimentos negros e de seus intelectuais uma explicação simples e coerente da formação social brasileira (e do mundo).

Quando o debate se torna público, fingir que ele não existe, principalmente para aqueles que não possuem os meios de comunicação, é atirar no próprio pé. Quem se cala perde ainda mais o terreno e a oportunidade de atravessar a ponte que se forma para alcançar quem nunca os viu ou ouviu. Perde-se, e isso é o mais importante, a chance de avançar sobre as próprias contradições. Da resposta de Gabriel Nascimento, portanto, concordamos com o seu final: “a esses erros combatemos com conhecimento e não com silêncio” — mas, de resto, o que podemos aproveitar? Acusar a esquerda de ser igual à direita? Colar em Risério todos os críticos dos movimentos negros, mesmo que suas ideias tenham objetivos e referenciais completamente opostos? E sobre a miscigenação? Dizer que ela foi “violenta” e “imposta” basta?

É nesse e nos demais textos contra Risério que surge a defesa cega de Abdias. É como se Abdias não houvesse sido um dos sujeitos mais ativos de seu tempo, dando contribuições importantes ao teatro e à militância antirracista sem haver colaborado com o integralismo brasileiro — coisa que o próprio Abdias não tinha vergonha de esconder. Fazem, portanto, o mesmo que fez e continua fazendo o grosso da esquerda, que se recusa a aceitar que seus “santos” também são de barro. Foi essa prática que fez dogmática a maior parte da esquerda, tornando-a incapaz de perceber as transformações econômicas e sociais que se passavam à sua frente e, por fim, a desatrelou daqueles em cujo nome ainda jurava falar.

Sobre a pluralidade que é hoje o movimento negro, sobre aqueles que de fato combatem conceitos toscos (“palmitagem”, por exemplo) contra outros também do movimento negro que usam-no amplamente, nada. Sobre aqueles que defendem o uso de marcadores supostamente biológicos para determinar quem é e quem não é negro nos concursos públicos, idem. É como se estas práticas não existissem e não crescessem. E, consequentemente, ficamos nós contra as ideias freyrianas de mestiçagem, mas sem elaborar uma compreensão do que vemos diante de nós: um povo de fato mestiço, submetido a um racismo muito mais sofisticado que o estadunidense e que exige uma explicação também mais sofisticada.

O que nos parece é que os movimentos identitários, o que inclui também certos setores do feminismo, abriram mão dos amplos debates e se entrincheiraram. Ao serem provocados publicamente, atacam o “lugar de fala” do interlocutor e somente de forma tangencial os argumentos apresentados. Tacham quase sempre os críticos de conservadores, colocam-nos na oposição ao movimento. E, quem esteja num “lugar de fala” apropriado para fazer as críticas, que as faça entre os seus. Enquanto, para sobreviver após décadas de dogmatismo, parte da esquerda tradicional teve que aprender a lidar com as críticas oriundas de todos os lados, inclusive dos movimentos identitários, os movimentos identitários negam-se a fazer um amplo debate com os setores que se colocam juntos na luta contra o racismo e outras formas de opressão.

Nenhum movimento social é propriedade dos seus dirigentes e intelectuais, nem mesmo dos seus autodeclarados militantes que seguram as pontas cotidianamente. Todos os movimentos sociais são patrimônio dos trabalhadores, dos de baixo, e inserem-se num amplo movimento global de lutas por igualdade política, social e econômica. Isso inclui os movimentos identitários. Não falam, portanto, somente para os seus, e só podem existir se for no mundo. Construir laços de solidariedade, ou “aliados” como costumam chamar hoje em dia, parece ser a única forma de superar o problema “particular” que cada movimento desvela. E laços de solidariedade requerem ver o outro como um igual, como alguém com quem vale a pena “trocar ideia”, alguém que deve fazer-nos as críticas necessárias (e desnecessárias) e ouvir outras de volta.

Risério é inimigo do movimento negro? É bem provável que sim, mas os risérios da vida são o menor dos problemas.

7 COMENTÁRIOS

  1. Gostei muito do texto, mas acho que ele acaba fazendo uma confusão justamente num ponto que me parece crucial: confundir os movimentos identitários com as suas pautas. Se num primeiro momento o texto aponta, corretamente, que o movimento negro não é um bloco monolítico, no final ele se refere aos “movimentos identitários” como se todo o movimento negro se enquadrasse nessa categoria. Ao fazer isso perde-se de vista a distinção fundamental entre a pauta antirracista, que é inquestionável quanto a sua importância, e a abordagem identitária que se faz dessa pauta, que deve ser combatida. Na prática isso é um passo atrás na crítica ao identitarismo. Além disso, nao toca na questão mais intrigante: por que o setor não-identitário do movimento negro – aquele que está disposto a construir laços de solidariedade com outros movimentos – também não consegue se colocar no debate público, igualmente se entrincheirando?

  2. Boas questões, Emerson. Mas acho que há um aspecto que suas questões contornam: que movimento social é um “bloco monolítico”? Será que não nos deixamos viciar demais pelo debate público com as organizações estruturadas com base no centralismo dito “democrático”, em que há “total liberdade” para debate interno, mas unidade na ação externa?

    Com isto, quero dizer o seguinte: não existe movimento social “monolítico”, apesar do que desejam algumas cabeças ansiosas. Todos são diversos, como diversa é a própria humanidade. Da mesma forma, há diversas formas de se ser identitarista, da esquerda à direita (p. ex., na zona do euro o “identitarismo” é um disfarce para o ultranacionalismo e a xenofobia), o que significa dizer que há setores de movimentos pautados por identidades sociais dispostos a ultrapassar os particularismos ao tempo em que há outros dispostos a exacerbá-los.

    Quanto ao que tem a dizer o movimento negro de um lado ou de outro, eu, que não posso ser negro sem negar-me a mim próprio nem posso ser branco sem igualmente negar-me a mim próprio, também tenho interesse de saber.

  3. O texto é interessante no sentido de contextualizar a polêmica histórica em torno da corrente “miscigenista” e sua ligação umbilical com as classes dominantes no Brasil, colocando, assim, o texto do tal Ribério em seu devido lugar. Algumas considerações, no entanto, ainda se fazem necessárias:

    A-) O texto parece sugerir que a posição crítica de Abdias do Nascimento em relação à miscigenação deriva diretamente do tempo em que ele militou na Ação Integralista Brasileira. Isso até pode ser verdade, mas se a reflexão parar por aí, estaremos reproduzindo em relação a Abdias a mesma atitude que o texto critica em relação a Ribério: não dar uma resposta altura.

    B-) No contexto da abolição da escravatura, as principais redes de formulação da ideologia burguesa (as universidades de Direito, de Biologia, etc) passaram a desejar um Brasil “civilizado”. Para tal, seria necessário embranquecer o Brasil. E isso se daria através de dois modos: subsidiando a vinda de imigrantes brancos para cá + miscigenação. Em relação ao segundo ponto, a teoria era de que o neto de um casal interracial seria, necessariamente, branco. A tese foi amplamente aceita pela classe dominante. Pintaram-se quadros em louvor à “redenção de Caim na terceira geração” e durante o I Congresso Internacional das Raças (Londres, 1911), o médico brasileiro João Batista Lacerda apresentou sua tese “Os mestiços do Brasil”, na qual garantia que em 100 anos não haveriam mais negros no país. É estritamente necessário visualizar esse contexto para entender de onde vem a faixa “Miscigenação também é genocídio!”. Sabemos que miscigenação não é genocídio: a previsão falhou, e em 2011 ainda éramos um país de maioria negra. Mas que ela tentou ser utilizada como ferramenta para o extermínio da população negra e o embranquecimento do país, isso não pode jamais ser apagado.

    C-) O ideário “progressista” de Gilberto Freyre soa, para mim, como uma nostalgia em relação ao tempo do escravismo. O tempo onde negros e brancos conviveriam “harmoniosamente”, cada um completamente ciente de suas obrigações, quando os negros obedeciam os brancos e, em contrapartida, os brancos não tentavam exterminar os negros. Não á toa, Gilberto Freyre se associaria com a ditadura de Salazar e o colonialismo português, realizando assim seu sonho nostálgico em relação à escravidão.

    No mais, um ótimo fim de ano e um voto de que os companheiros continuem seu bom trabalho, noticiando as lutas, apoiando-as e pensando sobre elas.

  4. Quem se interessar pelo quadro A redenção de Cam, de Modesto Brocos, poderá vê-lo aqui. E a tese de João Baptista Lacerda pode ser lida aqui.

  5. Me parece indiferente se a postura anti-miscigenação de Abdias derive de sua atuação no integralismo, o que interessa é perceber os traços em comum de setores considerados de esquerda e o fascismo. Compreender essa proximidade nos permite avaliar de maneira crítica as posições que defendemos.
    Em relação a miscigenção ser defendida como uma forma de “purificar o país” penso que nem o Passa Palavra, tampouco o próprio Risério negaram que assim acreditavam certos eugenistas do século passado. O problema, a meu ver, é setores do movimento negro levantarem isso com os sinais trocados. Como se uma simples troca de sinais alterasse a substância de um fênomeno social.

  6. Em que pese o artigo fazer críticas que devem ser feitas a setores do movimento negro que beiram ou pregam o racismo (como o escracho daqueles que se relacionam com brancos como “palmiteiros”), senti falta de algo na narrativa tanto daqui quanto no artigo de Risério : o papel do imperialismo em fomentar esse tipo de discurso por aqui. Ora, é sabido que fundações estrangeiras como as de Rockfeller e Ford promoveram e promovem suas próprias agendas aqui no diz respeito às questões raciais, por exemplo. Bordieu e Wacquant abordaram esse problema no artigo “Sobre as artimanhas da Razão Imperialista” (http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-546X2002000100002) – muito embora eu também seja relativamente crítico à noção de imperialismo cultural, como se não pudesse haver intercâmbios culturais entre periferias e centros, entendo que é cabível falar disso quando se trata da promoção de pautas de forma determinada e direcionada por grupos detentores de capital de forma acentuadamente assimétrica, como é o caso das referidas fundações frente ao público acadêmico brasileiro.

    O que os membros do coletivo pensam sobre esse aspecto do problema que levantam?

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