Por Passa Palavra

Veio à rede no dia 18 de dezembro de 2017 um texto onde, entre uma série de distorções, acusa-se ora discreta, ora abertamente o Passa Palavra de, em resumo:

— nas palavras de sua autora, “negar à priori (sic) a relevância de qualquer outra identidade que não a de classe”;

— negar validade às lutas de mulheres, negros, lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais e transgêneros;

— defender, nas palavras de sua autora, “neutralidade nos posicionamentos referente a opressões”.

Quanto à sua autora, para nós não importa quem é, nem de onde vem, nem para onde vai; argumentos contra hominem, contra albis, contra vires e outros da mesma categoria sequer argumentos chegam a ser. São simples interdições ao debate, conveniências das distorções do lugar de fala, só isso.

Quanto a nós, somos “bossais” (sic), sim, como nos “acusam” no texto. Nossa História nos diz que boçal foi o africano recém-sequestrado que não falava o português ou se recusava à conversão ao catolicismo — recusando, portanto, sua conversão ao modo de pensar das classes dominantes de sua época. Daí o significado comumente colado à palavra, de “rude”, “grosseiro”, “ignorante”, “inculto” — aos quais, não bastasse o racismo embutido em todos os significados dicionarizados da expressão, a autora quer adicionar o de “arrogante”. Somos boçais sim, somos e continuaremos boçais enquanto houver necessidade de sermos boçais.

Quanto ao conteúdo do texto, gostaríamos de registrar alguns esclarecimentos, rebater falsidades e estabelecer nossos pontos de vista diante do ajuntamento de banalidades que foi reunido para, mais uma vez, atacar o Passa Palavra — ou, melhor dizendo, para atacar quem quer que se coloque contra a perspectiva excludente e grupuscular de feminismo defendida pela autora.

Antes que perguntem: não, não vamos dizer quem escreveu o texto nem indicar seu link. Sabemos bem que a própria publicação deste texto é uma tentativa de ampliar a visibilidade de um grupúsculo feminista politicamente insignificante, e não vamos cair nesta armadilha. Quem quiser que procure o texto — se é que vão encontrá-lo. Respondemos porque, bem ou mal, o texto nos dá a oportunidade de reforçar, mais uma vez, posições que temos publicizado desde há alguns anos — e, assim, de atear fogo aos espantalhos com que este feminismo grupuscular e excludente quer consolidar suas posições.

***

O texto é uma tentativa de resposta a vários outros que publicamos ao longo dos anos, mais especificamente àqueles em que demarcamos um campo nocivo dentro do feminismo: aquele que afirma ser todo homem um “potencial agressor”, age politicamente por meio de “escrachos” e assassinatos de reputação, e cria espaços segregados entre homens e mulheres no seio dos movimentos sociais etc. (ver aqui um dossiê que contém, entre outros, os textos sobre o assunto). Demarcamos este campo muito precisamente, ressaltando nosso total acordo com a igualdade entre homens e mulheres em todas as esferas e espaços políticos, e igualmente com as lutas com este objetivo, mas destacando considerarmos este campo excludente e grupuscular e suas práticas como minoritários dentro do feminismo, e ademais nocivos por não conceber os homens também como sujeitos da luta por igualdade.

Tanto agora quanto antes fomos atacados por figuras deste campo do feminismo. (Note-se: não por feministas como um todo, não por todas as feministas, não pelo feminismo, mas por figuras de um campo dentro do feminismo.) Tais ataques contra integrantes do Passa Palavra e contra o coletivo como um todo se manifestaram de diferentes formas: calúnias, difamações e injúrias disseminadas em redes sociais; agressões verbais e intrigas de bastidores em espaços comuns de militância; acusações de que o Passa Palavra negaria toda e qualquer luta feminista, e não que estávamos criticando um setor e um conjunto de práticas muito bem circunscritas dentro do feminismo (quem não lembra do tempo em que chamavam nosso site de “Passa Pano pra machista”?); invisibilização das integrantes do coletivo por parte das próprias feministas excludentes (sim, chegaram ao absurdo de dizer nós, mulheres, não existimos no Passa Palavra, ver comentários); interdição à participação em espaços ditos “mistos” (inclusive a nós que, segundo nos disseram, não existimos); e por fim, naquilo que mais interessa ao debate, uma campanha sistemática de boicote ao Passa Palavra por não ser um “espaço seguro” ou “amigável” (ver comentários).

Apesar dos pesares, nada impediu o Passa Palavra de seguir denunciando o sectarismo, o solipsismo, o moralismo estreito, o punitivismo, o espírito de grupúsculo, a estreiteza de horizontes políticos e a profunda ignorância histórica desta corrente minúscula do feminismo.

Mas vejam, depois de tudo isto, a autora, depois de estabelecer seu campo político por meio de uma série de banalidades que comentaremos adiante com maiores detalhes, começa a falar do Passa Palavra a partir de uma estatística paupérrima em torno dos comentários a três artigos que tocam no tema “feminismo”. A autora sequer se deu ao trabalho de analisar o conteúdo dos 26 artigos que compõem nosso dossiê sobre feminismo, pois bastam-lhe apenas 11,53% deles, escolhidos a dedo, para fechar seu diagnóstico. Existe no site, inclusive, uma etiqueta chamada “sexualidade” que agrupa outros tantos artigos. Para falar mal, todavia, não é necessário qualquer trabalho de pesquisa; basta a pura vontade, e factoides para reforçá-la.

Voltando ao assunto, depois de escolher cirurgicamente sua amostra e de torturar os números até que falassem o que queria, a autora pergunta candidamente: “por que então em um dos únicos sites — quiçá o único — do campo autônomo que se propõe a debater abertamente as lutas autônomas tem uma adesão tão baixa de mulheres?” Ora, precisamente porque — nossos argumentos têm a mesma precisão estatística que os da autora — o Passa Palavra tem sofrido no meio autônomo todos os ataques de que falamos! Como esperar a adesão das “manas” ao site e a seu conteúdo se qualquer “mana” a ousar dizer o que quer que seja contra o tipo de feminismo excludente e grupuscular combatido pelo Passa Palavra sofre censura “dazamiga” ou coisa pior?

Interessa à autora saber que os textos autorais mais importantes publicados pelo Passa Palavra em 2016 e 2017 foram escritos por mulheres e não têm nada a ver, ao menos diretamente, com a luta antimachista? Referimo-nos, mais precisamente, a O SUS e a Portaria 1.482/2016, de Luamorena Leoni, e Uberização do trabalho: subsunção real da viração, de Ludmila Kosthek Abílio. Interessa à autora buscar artigos escritos por mulheres em outras categorias que não a do feminismo? Aparentemente não, porque a autora, sem qualquer análise mais detida sobre o arquivo de publicações do Passa Palavra, afirma sem rodeios que “dos poucos textos escritos por mulheres muitos são sobre feminismo”, como se o fato de ser mulher vinculasse-as ao tema sem escapatória. Interessa à autora que o longo artigo Sociedade de classes e violência sexual, de Maya John, tenha sido traduzido por um homem? Não, pois interessa-lhe apenas saber quantas mulheres o comentaram.

Como se vê, a má-fé é cirúrgica na produção de factoides.

Não negamos, ao demonstrar a má-fé da autora, que haja machismo em meio ao “campo autônomo”. Seria estúpido de nossa parte fazê-lo. Diferentemente da autora, todavia, que pensa a igualdade entre homens e mulheres neste campo apenas em termos de contagem de cabeças, pensamos que isto, por si só, não basta; afinal, para que se reproduzam práticas machistas num determinado espaço sequer é preciso haver nele mulheres, ou mesmo homens. Pensamos, contrariamente, que há machismo em meio ao “campo autônomo” porque há machismo na sociedade capitalista, e o “campo autônomo” não é uma bolha isolada dela — a não ser que tenha o incrível poder de criar um “campo de força” em seu entorno, o que o transformaria automaticamente numa seita, numa robinsonada, num grupúsculo sem qualquer relevância política ou social. Não é isto, certamente, o que desejamos. Entendemos, nós do Passa Palavra, que o machismo, no campo autônomo e fora dele, só é superado por meio do combate constante contra ele; não por meio da criação de “espaços seguros” no mundo virtual, onde mulheres possam incontestadamente afirmar despautérios pelo puro fato de serem mulheres, mas por meio do debate franco e bem fundamentado, ainda que por vezes duro e acalorado.

Não negamos, de igual maneira, que exista machismo no Passa Palavra, seja no próprio coletivo, seja no espaço dos comentários, porque não nos interessa varrer a sujeira para debaixo do tapete nem tapar o sol com uma peneira. Estamos inseridos numa sociedade onde o machismo é um problema, e ele também nos atravessa. O problema, entretanto, se coloca para nós de modo diferente daquele apresentado pelo feminismo excludente e grupuscular que não cansaremos de denunciar. O que este setor sectário do feminismo faz é retirar de seus circuitos pessoais mais próximos aqueles que para elas personificam relações sociais generalizadas; basta-lhes, deste modo, retirar os brancos dos espaços de convivência para eliminar o racismo, retirar os homens para eliminar o machismo, retirar os heterossexuais para eliminar a homofobia, e assim por diante. Para nós, não se trata de negar a conflituosidade presente em qualquer relação de convivência, mas sim de assegurar que todas as pessoas que participam de um coletivo — do Passa Palavra ou de qualquer outro — possam participar do que quiserem, se assim o quiserem e quando estiverem disponíveis.

A argumentação do texto nega, portanto, a própria história do problema que diz debater, e é no mínimo ingênua quanto ao problema do machismo que atravessa também o “campo autônomo”.

***

Tem mais. O texto diz que o Passa Palavra nega “à priori (sic) a relevância de qualquer outra identidade que não a de classe”. A isto a autora se opõe, dizendo que

As feministas têm avançando nas análises e debates, buscando verdadeiramente entender quais as relações existentes entre estas três categorias — classe, gênero e raça. A partir desse esforço, alguns conceitos, tais como interseccionalidade e consubstancialidade, passam a se inserir nos debates, debates esses ignorados pelos grupos críticos do identitarismo genérico.

A criação da interseccionalidade e da consubstancialidade em meio ao campo feminista é fato inegável. Mas é neste ponto que fica explícita a estreiteza de horizontes políticos da autora — e, como há tempos denunciamos, do próprio feminismo excludente e grupuscular que defende.

Vejam:

Há algumas consequências graves ao negar à priori a relevância de qualquer outra identidade que não a de classe. A primeira delas é a recusa em analisar a formação particular concreta do capitalismo em cada país. Por exemplo, a formação social do capitalismo no Brasil é inseparável da questão racial. Em segundo, trata-se de um jeito de continuar garantindo a perpetuação de racismo, machismo e LGBTfobia nas fileiras das organizações revolucionárias — quase como um jeito novo de dizer que sexo e raça fragmentam a classe.

As duas “consequências” apontadas pela autora, na verdade dois non sequitur seguidos, revelam um pouco mais sobre seu posicionamento político, teórico e ideológico.

Ao pretender analisar a “formação particular concreta do capitalismo em cada país” a autora esquece que esta formação só é possível porque o capitalismo tem dinâmica global, impulsionada pelas diversas formações particulares ao mesmo tempo em que estas últimas também são influenciadas pela dinâmica global que impulsionam. A circunvolução dos termos reflete a circularidade da relação concreta que expressam, e não há como expressá-la sem redundâncias.

Ainda quanto à mesma questão, exatamente a concretude histórica do capitalismo, construído por meio da exploração da mais-valia em âmbitos geográficos cada vez mais extensos e em intervalos históricos cada vez mais amplos, faz com que tais relações sejam impostas à força pelos capitalistas em sociedades diversas e tempos diversos. Daí dizer: não há nada de novo em dizer que a formação do capitalismo em determinado país é inseparável da questão racial; não é só isto, é inseparável também da questão étnica, da questão nacional, da questão de gênero, das diversas sexualidades... Trabalhadores, burgueses e gestores são gente de carne e osso, e são portanto homens ou mulheres nascidos com determinado fenótipo num determinado lugar e tempo; o que os especifica enquanto classes sociais globais num modo de produção global, entretanto, não são suas especificidades, mas seu antagonismo recíproco neste modo de produção.

As particularidades históricas de cada formação social, na medida em que são empregues pelos capitalistas para acirrar a competição e a fragmentação entre trabalhadores lá onde introduziram à força relações sociais capitalistas, são a base das rivalidades, discriminações e opressões ainda hoje persistentes. Note-se bem, destaque-se em letras garrafais o que dissemos: as particularidades dividem a classe apenas e tão somente na medida em que são empregues pelos capitalistas para acirrar a competição e a fragmentação entre trabalhadores. Quando não são agitadas e empregues pelos capitalistas, as opressões costumam ser questionadas em cada processo de luta onde os participantes imponham-se uns aos outros como iguais, superando a fragmentação, a competição e as opressões manipuladas pelos capitalistas. Note-se bem outra vez, destaque-se em letras garrafais o que dissemos: as opressões são questionadas pelas lutas, e apenas por elas. Igualmente: tal questionamento não se dá em qualquer luta, mas naquelas onde os participantes imponham-se uns aos outros como iguais. Fora dos processos de luta, as opressões, desigualdades e preconceitos seguem em pleno funcionamento como parte da disciplina social capitalista.

Tudo isto se dá porque, num modo de produção global como é o capitalismo, é no nível global que se pode verificar a correlação de forças entre as classes sociais, e de que modo inserem-se na divisão internacional do trabalho. Não basta, portanto, conhecer a “formação particular concreta do capitalismo em cada país” para conhecer a imbricação entre as opressões sociais e políticas e a exploração econômica; é preciso conhecer a “formação particular concreta do capitalismo” em vários países, correlacioná-las, compará-las, e enfim ver como tudo isto se articula numa totalidade dinâmica, contraditória e diversa.

É isto a “interseccionalidade”? Ora, faz tempos que se conhece esta perspectiva como a perspectiva da totalidadeTotalidade interseccionalidade dialogam? Tema para muito debate, e bom debate. O fato é que do “lugar de fala” de onde a autora se apresenta no texto, por exemplo, lutas antirracistas e lutas de LGBTTs serviram-lhe apenas como tokenismo mal disfarçado para justificar a defesa do feminismo excludente. Para piorar, na perspectiva estreita apresentada no texto, a análise da “formação particular concreta do capitalismo em cada país” só se aplica ao Brasil, só serve para fundamentar a continuidade — no Brasil — entre as formas escrava e assalariada de exploração do trabalho… Estas, sim, são as consequências de uma perspectiva política que não se arrisca a conceber não apenas as lutas sociais, mas o próprio capitalismo e suas contradições de modo global.

Vamos adiante.

O texto diz que o Passa Palavra nega validade às lutas de mulheres, negros, lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais e transgêneros. Tanto não negamos que as noticiamos: aquiaquiaquiaquiaquiaqui e aqui. Não apenas estas, mas também lutas de camponeses (aqui e aqui), estudantes (aqui e aqui), sem-teto (aqui e aqui), indígenas (aqui e aqui), ribeirinhos (aqui) e quilombolas (aqui e aqui). Basta passar o olho na nossa seção Movimentos em Luta, que era uma das mais dinâmicas do site até o Facebook ter se tornado o espaço prioritário de divulgação das lutas.

Rebatida esta falsidade, vamos adiante.

A autora diz que o Passa Palavra defende “neutralidade nos posicionamentos referente a opressões”. Com isto, quer-se insinuar que o Passa Palavra não tem qualquer política ativa de inserção de mulheres, negros, lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros etc. seja no coletivo, seja nas publicações, seja nos debates dos comentários.

Em primeiro lugar, é extremamente limitado avaliar um editorial coletivo tendo em conta apenas quem escreve, quem dá a cara ao público. Para que estes textos estejam visíveis ao público, há diversas outras tarefas a serem cumpridas, tarefas costumeiramente invisibilizadas — inclusive pelo próprio site onde foi publicado o artigo da autora. O Passa Palavra, neste aspecto, é muito mais transparente, pois todos os seus documentos organizativos e política editorial encontram-se disponíveis ao público. Não nos interessa, todavia, a visibilidade de todo o nosso coletivo; “holofotes” só nos interessam na medida em que possamos voltá-los contra os inimigos da classe trabalhadora, não para nossos egos.

Da mesma forma, é extremamente limitado afirmar a existência de um “identitarismo dos homens” no Passa Palavra tendo como base apenas os 28 textos mais recentes e os 8 primeiros a serem publicados; considerando dados de 19 de dezembro, publicamos desde 2009 a cifra exata de 117.128 artigos, dos quais os 36 analisados pela autora representam 0,0004%, arredondando a cifra para cima. Não bastasse a cifra ínfima frente ao total de artigos, a autora pressupõe que cada integrante do Passa Palavra deseja os “holofotes”, e por isto mesmo esquece outra banalidade: não basta haver “marcação de espaços”, mas sim diversidade e rotatividade de funções num coletivo.

política dos holofotes exigida pela autora nas entrelinhas de seu texto reflete uma postura descuidada quanto à segurança, comum a certos indivíduos e coletivos do “campo autônomo” cuja atuação política confunde-se com a inflação dos próprios egos. É mesmo necessário expor cada integrante do coletivo para passar atestado público de “igualdade de gênero” ao mesmo tempo em que se expõe indiscriminadamente o coletivo inteiro? Em tempos de monitoramento constante, interessa-nos mais esta segurança, que garantimos tanto a nós quanto a qualquer pessoa que frequente o site do Passa Palavra, que a dos “espaços seguros” e “amigáveis”. O critério da igualdade de espaço sob os holofotes pode muito bem ser aplicado à imprensa burguesa e ao rol da fama das sub-celebridades nas redes sociais, onde a disputa de egos corre solta; pode ele ser aplicado, entretanto, à imprensa revolucionária? Acreditamos que não, mas nos parece que esta distinção simples não interessa à autora.

Mas a existência de um “espaço seguro” e “amigável” é, por si só, garantia produção e de volume de publicações por parte de quem está sob a “proteção” deste espaço? A julgar pelo que vemos no site onde foi publicado o texto da autora, que supomos ser um “espaço seguro” e “amigável” para feministas excludentes e grupusculares, não. Em um ano, há no site 13 publicações na categoria “Análises”, das quais 7 são inéditas, 4 são traduções de material publicado originalmente por um só site argentino, 1 é a republicação do capítulo de um livro escrito pelo Comitê de Solidariedade à Resistência Popular Curda de São Paulo e 1 é tradução de um texto publicado originalmente num site estadunidense. Na categoria “Entrevistas”, apenas 1 publicação. Na categoria “Relatos”, 2 publicações, uma delas já contada na categoria “Análises”. Na categoria “Manuais”, curiosamente, 1 publicação, que é… uma oficina do curso Como Funciona a Sociedade, elaborada pelo Núcleo de Educação Popular 13 de Maio, cujo conteúdo é… o funcionamento da extração da mais-valia.

E assim terminam os absurdos e as banalidades. Vamos agora ao que interessa.

***

O feminismo excludente e grupuscular tem rejeição cada vez maior entre a militância. Se antes restringia-se ao ambiente universitário, hoje talvez nem aí encontre ressonância. Daí a necessidade deste campo de retomar a ofensiva — e ao fazê-lo, por meio do conjunto de absurdos e banalidades reunidos pela autora, expõe-se ao ridículo.

O cerne do problema, entretanto, está na estreiteza de horizontes políticos deste campo do feminismo. É o que torna o debate quase impossível.

Um exemplo desta estreiteza:

Criticar o campo autônomo com exatamente as mesmas críticas feitas ao PT não faz sentido, uma vez que as práticas não são apenas distintas, mas, via de regra, são consideravelmente antagônicas.

Esta posição exprime uma concepção no mínimo ingênua quanto à organização das lutas. Ou pretende estabelecer em meio ao “campo autônomo” uma redoma capaz de isolá-lo de todas as contradições existentes na própria sociedade em que está imerso. Eis as razões.

Em qualquer luta, partidária ou não, sempre há pessoas mais ativas, mais engajadas, que tomam providências com maior agilidade, que têm mais contatos etc. Não é difícil reconhecê-lo, basta olhar com calma. Estas pessoas compõem a vanguarda destas lutas, qualquer que seja o nome que ganhem (“vanguarda”, “minoria ativa”, “comando”, “coordenação”, “comitê”, “coletivo”, “grupo de trabalho” etc.); nomes importam menos que fatos para nosso debate. O fato de alguém fazer parte de uma vanguarda, entretanto, não assegura a perenidade deste status; sua manutenção depende de toda a complexidade de fatores que mantém e sustentam a legitimidade destas vanguardas enquanto há lutas em curso, em especial enquanto quem dá sustentação a estas vanguardas permanece em ação. Na medida, entretanto, em que por qualquer razão começa a estabelecer-se um processo simultâneo de apassivação das bases de sustentação das vanguardas e de progressivo isolamento das vanguardas frente a estas bases, as vanguardas fogem do controle das bases. Estas vanguardas, assim, tornam-se a única expressão visível de lutas anteriormente ativas, e agora falam e agem sem qualquer controle. Abre-se, portanto, o caminho para sua cooptação. Este processo não é inelutável, apenas tendencial, o que significa dizer que há contratendências a ele, exatamente porque não há luta social sem lutas internas às próprias lutas.

Nosso combate ao feminismo excludente e grupuscular vai exatamente nesta linha. Por quê?

O problema, a nosso ver, não está em haver lutas antirracistas, antimachistas, anti-homofobias. O problema não está nas lutas, está na existência do racismo, do machismo, da homofobia; as lutas são consequência das necessidades de mulheres, negros, lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros… Estas lutas enraízam-se em exigências práticas, cotidianas, que envolvem desde a sobrevivência mais básica até demandas por reconhecimento.

Ocorre que, como em qualquer luta, as lutas de mulheres, negros, lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros, todas estas lutas envolvem não apenas seu conteúdo, sua pauta, mas também a forma como estas lutas são travadas. Conquanto o texto afirme haver enormes diferenças entre as formas de luta “do PT” e outras, no quadro analítico que empregamos, bem mais amplo que a simples comparação entre petismo e autonomismo, não faltam exemplos de que nas lutas que comentamos, estejam elas no “campo autonomista” ou não, aplica-se o mesmo modelo acima descrito. Vê-se nelas o mesmo conflito entre duas práticas: de um lado, a de quem luta para parar de morrer por ter mais melanina, de quem luta para parar de apanhar dos companheiros e não poder sequer pedir proteção; e de outro lado a de quem, tendo ou não passado por estas experiências, aproveita momentos de refluxo nas lutas para legitimar-se, para capitalizar sobre o espólio político das lutas.

Nem todos nascem gestores, tornam-se. E nesse processo de se tornar gestor, muitos partem do seio da classe trabalhadora para chegar até lá. O tipo de feminismo excludente e grupuscular que combatemos surge e prolifera-se como praga principalmente nos meios universitários, centros por excelência de formação daqueles que, em futuro próximo, ou serão trabalhadores qualificados, ou serão gestores de baixo e médio escalão. Essas escolas de gestores selecionam seus alunos no meio da classe trabalhadora imersa nas clivagens de todos os tipos. Nesse vestibular não há cotas, e as opções de múltipla escolha são as cabeças que uns terão que pisar para se chegar na classe de cima. A concorrência entre eles permite que se use destas armas quando outras faltam munições.

As lutas identitárias, das quais o feminismo grupuscular e excludente que combatemos são uma fração mínima e minoritária, são uma das possíveis confluências dessas duas racionalidades. Os gestores precisam que os melhores e mais qualificados, independentemente da cor e do gênero, cheguem aos escalões mais elevados de poder, e os trabalhadores precisam que as clivagens dentro da classe deixem de existir para que as lutas tenha mais força e para que a vida seja mais suave. Uma parte dos movimentos pautados pelas identidades sociais, geralmente o setor de origem universitária (os sindicalistas e os movimentos sociais transformados em lobbies também), querendo chegar a um posto entre as elites, e sabendo que nelas não cabem todos, centram suas forças em tirar de lá os que lá já estão.

Se podemos apontar estas contradições, e se durante muito tempo fomos os únicos a apontá-las — embora hoje a crítica aos males do identitarismo esteja cada vez mais disseminada, e não apenas graças à nossa crítica — temos o dever de continuar apontando-as. Não é a opressão que não deve andar junto da exploração em nossas análises: o que se precisa é desvelar a contradição das lutas identitárias e a formação de mais uma fração da classe gestorial a partir delas.

8 COMENTÁRIOS

  1. Camaradas, não consegui ainda terminar de ler o texto. Mas já deixo à princípio uma discordância: que método é esse de não dizer qual é a fonte que vcs tão rebatendo? Só quem tá “por dentro” das polêmicas tem a possibilidade de ler a fonte original e tirar suas próprias conclusões? Eu não faço a mínima ideia de quem escreveu esse texto que vcs tão rebatendo, mas queria ler ele pra ver se é tudo isso que vcs tão falando, e se suas críticas são coerentes…

  2. Que textão dramático em camaradas. Não sei onde está a maior parte desse dramão, se ta em voces ficarem se martirizando ao longo do texto todo e transformarem a autora numa feminista doida que persegue vocês com uma tocha, ou nessas expressões cafonas do tipo “escolher cirurgicamente sua amostra e de torturar os números”. Na verdade acho que sei onde ta a maior parte do drama, no final do texto, na missão heroica que o passa palavra bravamente assume, que, apesar de todas as adversidades, consegue se manter fiel aos seus valores e nao desistir de seus ideais hahaha
    Mas o que eu queria mesmo saber é se o espantalho da foto é pra ilustrar que vocês não tocaram em nenhum momento nas questões mais pertinentes levantadas pela autora, que é a falta de uma definição precisa sobre o que é o identitarismo, como a falta dessa definição pode fazer com q seja um conceito instrumentalizado pra qualquer coisa; e também a formação e interferência de outras identidades (que nao deixam de ser pq nao se reivindicam) dentro de coletivos, enfim rs varias questões

  3. O texto da autora é bem estranho e parece ter por objetivo mostrar que existe um identitarismo dos homens brancos heteros — que teria por essência a negação do identitarismo de outras identidades.
    Eu não teria porque meter o bedelho na questão, mas achei muito irônico a autora citar o “Ni una menos” como uma “greve de mulheres” na Argentina, e dizer que tem um conteúdo “radicalizado” sobre a “produção e reprodução” das mulheres trabalhadoras.
    Em primeiro lugar, o “Ni una menos” é a coisa menos radical que existe no feminismo argentino. De fato teve uma massificação impressionante, mas é uma consigna extremamente defensista (algo que não deixa de ser importante) e um movimento sem a menor capacidade de formular uma direção política, e por isso a queda na participação das marchas. Não é detalhe menor que o “coletivo” Ni una menos seja conformada profissionais liberais com bom posicionamento profissional e não pelas organizações de mulheres já com décadas de experiência e luta no país.
    E se falando nisso, vale mencionar que no Encontro Nacional de Mulheres da Argentina existem correntes feministas de peso que vetam a participação de mulheres trans por não considerá-las mulheres. Por mais que a autora do texto original queira, a questão das identidades não se resume a “homens brancos cis heteros vs. o resto das identidades”.
    A acusação de que se diria que “pessoas negras, mulheres e LGBT’s fragmentam a classe” é bem sintomática. Estes setores identitários tentam ganhar força por meio de uma identificação “autêntica” com os demais indivíduos desta e daquela identidade, quando em realidade são um tipo de organização política com uma ideologia específica. E de fato lembram bastante a extrema direita e seus discursos nacionalistas que visam impor sua ideologia e apagar vestígios de outras posições políticas dentro de sua base. Basta ver que recentemente ocorreu algo grave no movimento negro, quando os setores mais próximos ao fascismo pan-africanista expulsaram da manifestação negros com bandeiras de partidos e brancos que foram apoiar a causa.

  4. Por certo existem movimentos identitários brancos, basta ver os nacionalistas brancos nos EUA, as manifestações pró-identidade na Polônia ou a aberta hostilidade aos imigrantes na Hungria.
    Acontece que para alguns setores da esquerda basta as mobilizações em torno da identidade não estarem associadas àqueles considerados opressores que elas são libertadoras. Pois, há um século atrás era examente a mobilização da ideia de nação oprimida que animava os movimentos na Europa Central. Não a toa Marcus Garvey, figura muito referenciada por setores do Movimento Negro no Brasil, afirmava : “Nós fomos os primeiros fascistas. Disciplinamos homens, mulheres e crianças e preparamo-los para a libertação da África. As massas negras viram que só neste nacionalismo extremo podiam depositar as suas esperanças e apoiaram-no de imediato. Mussolini copiou de mim o fascismo, mas os reacionários negros sabotaram-no.”

  5. Pois é. O núcleo duro do PP (Passa Pano) foi desmascarado!!! Já há muito era notado esse identitarismo de homens brancos héteros cisgêneros. Falando nisso, montei com meus amigxs uma startup de desenvolvimento de software anticapitalista e nosso primeiro programa serve para detectar, em comentários sem identificação pessoal, o tom da pele, o sexo, o gênero e a orientação sexual da pessoa (tem também a versão paga, que acrescenta o CEP e formação educacional). Baixe já o Lacrex ® e não deixe passar batido as transposições de lugar de fala! Disponível para iOS e Android em suas respectivas lojas. Logo menos também para Windows Phone.
    Gratx pela atenção, desculpa qualquer coisa!

  6. Pois é… Essa piada do APP resume bem o caminho que os movimentos sectários vêm tomando, fortalecendo o estado e o capitalismo. Eu poderia listar uma penca de coletivos com grande expressão e capacidade de autocrítica, que apesar disso, foram rachados por picuinhas. Isso não significa que não se deve lutar contra o machismos, racismos e fobias em geral. É fato que sim e isso se agrega à própria luta anticapitalista e estatal. A questão não é ignorar as lutas dos oprimidos em louvor único pela luta de classes, mas menos ainda é fazer o contrário, nos digladiarmos em lutas seccionais e ignorar a classe. “Classe, raça e gênero” são faces de um mesmo monstro, da mesma hidra. Nesse caso não se deve ir à nenhum dos extremos.
    Ainda quero apontar para o quão patriarcal é o punitivismo adotado por esses movimentos sectários, tornam-se contrarrevolucionários por princípio ao adotarem o método branco, machista europeu para lidar com as questões de conflito. Se apegam ao biologizismo como se o machismo e racismo estivessem no DNA e não na relação de poderes dentro do sistema. Não é, somos tod@s oprimid@s por um sistema segregário, opressor, que mata todos os dias nossos jovens negros, as mulheres e pobres em geral.
    Já se reconhece as formas de opressão que o estado capitalista opera, mas com isso vamos criar uma hierarquia de opressões? Quais os parâmetros que definem isso? Vamos criar um APP para definir em uma escala de 0 à 10 quem é mais oprimido? Ou vamos buscar a essência da opressão e da manutenção dessas relações de poder para puxar o fio condutor que a amalgama.
    Imagino os mesmos homens brancos e muito ricos rindo das nossas constantes divisões e subdivisões provenientes do sectarismo dos grupos identitários no geral, que não só fortalecem o capitalismo e o estado como o próprio racismo, machismo e homofobia não permitindo que se destrua suas raízes. Estão-se criando gangues que só se sustentam pela suas rivalidades ao invés de se unirem por sua solidariedade.
    Trabalhador@s, negr@s, branc@s, lgbts, uni-vos contra o capital e estado, patriarcais e racistas por princípio e método!

  7. O identitarismo é um fascismo. João Bernardo demonstrou como o velho nacionalismo em que se baseavam os fascistas clássicos foi metamorfoseado nas múltiplas identidades. Assim como na Alemanha os nazistas passaram a adotar apenas livros de “arianos” e a proibir e queimar os demais, agora as Universidades condenam autores “eurocêntricos”. Inclusive, a maior Universidade do país resolveu cobrar como literatura obrigatória do seu vestibular apenas obras escritas por mulheres https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2023/11/usp-muda-lista-de-livros-no-vestibular-e-vai-cobrar-so-mulheres-pela-1a-vez-na-historia.shtml. Enquanto a “queima” de livros pós-moderna é o sistema de “cancelamento” de autores “brancos, héteros, cis, etc.”. E ainda estamos bem longe de ver onde isso vai parar…

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