Por Shawn Hattingh*

Capitalistas brancos não têm problemas com a corrupção; o problema que tiveram com Jacob Zuma foi o de terem sido escanteados nas negociações estatais corruptas havidas sob seu mandato, com melhores resultados para a família Gupta[1] e para as novas elites negras. O abandono da facção de Zuma e o apoio a Ramaphosa[2] têm poucas chances de por fim à corrupção na África do Sul.

Para o capital branco e internacional na África do Sul, as últimas semanas foram período de regozijo devido à eleição de Ramaphosa à presidência do Congresso Nacional Africano (CNA). Os dias de Zuma pareciam contados também como presidente do país. Ele foi revocado pelo CNA, e um voto de desconfiança será movido nos próximos dias pelo partido caso não renuncie [Jacob Zuma terminou renunciando em 14 de fevereiro de 2018]; tudo leva a elite dos negócios a sentir-se ainda mais presunçosa.

Jacob Zuma

As lutas amargas entre frações do CNA, portanto, viram Zuma ser derrotado, e seus antigos apoiadores postos na defensiva.

A lista de candidatos na qual Ramaphosa se inscreveu prometia erradicar a corrupção interna ao Estado e ao CNA. O estado de espírito correspondente era de que Zuma seria removido da presidência e poderia inclusive ser indiciado, junto com os Guptas, pelo seu papel na “captura do Estado”. O próprio CNA espera que tais movimentações revertam sua sorte enfermiça e impulsionem sua campanha eleitoral em 2019. Seus parceiros de aliança, o Partido Comunista Sul-Africano (PCSA) e o Congresso dos Sindicatos Sul-Africanos (CSSA), também esperam, oportunisticamente, que a iminente saída de Zuma do Estado dê-lhes novo fôlego político e que sob Ramaphosa seus líderes tenham a habilidade de manter suas sinecuras e seus altos salários nas camadas mais altas do Estado, garantidos que lhe foram por Zuma graças a seu apoio em Polokwane em 2007[3].

A realidade é que a batalha interna ao CNA, e agora o fim da carreira política de Zuma tem pouco a ver com o combate à corrupção – apesar do que diz Ramaphosa. Foi uma luta pelas mais altas posições no Estado, como o evidencia a velocidade com que antigos apoiadores e aliados da linha dura de Zuma abandonaram o barco desde a vitória de Ramaphosa, incluindo [Elias Sekgobelo] “Ace” Magashule [governador da província do Estado Livre] e [Knowledge] Malusi [Nkanyesi] Gigaba [atual ministro das Finanças da África do Sul, antes ministro de Assuntos Internos (2014-2017) e ministro das Empresas Públicas (2009-2014)]. Ao avançar na tentativa de assegurar seus empregos bem pagos e de usar posições no Estado para garantir acordos de negócios, velhos aliados foram abandonados e um novo aliado, na forma de Ramaphosa, foi abraçado.

A história de Ramaphosa destaca como sua conversa de combate à corrupção em todas as estruturas do Estado foi e é simplesmente um estratagema sem qualquer substância. Tudo porque o próprio Ramaphosa esteve envolvido em corrupção: enriqueceu da noite para o dia nos anos 1990, quando usou pensões de trabalhadores (fornecidas pelos fundos de pensão sindicais) para arrecadar capital para seus acordos de negócios. Forneceu capital também para capitalistas brancos sul-africanos. Com certeza eles não compraram a sagacidade de Ramaphosa para os negócios quando forneceram-lhe ações, posições em quadros dirigentes de empresas e capital; compraram, sim, sua influência no CNA e no Estado para avançar na sua acumulação de capital. Tudo isto foi apoiado pelo CNA, pois esperava-se que Ramaphosa empregasse sua riqueza para fazer crescer os cofres do partido.

Cyril Ramaphosa dança o xigubu

O principal negócio de Ramaphosa era o Grupo Shanduka [fundada pelo próprio Ramaphosa como uma “empresa de participações e investimentos controlada por negros”], com cuja fundação se envolvera em 2001. Enquanto foi dirigente desta empresa, envolveu-se em casos de sonegação fiscal, como revelado pelos Papeis do Panamá. Por volta de 2012, como é bem sabido, Ramaphosa era também acionista e membro da diretoria da Lonmin, e foi um daqueles a usar suas conexões políticas para levar o Estado a esmagar a greve, resultando em 34 trabalhadores baleados pela polícia em Marikana. Ramaphosa não é, portanto, um homem que evita a corrupção ou o uso de influência junto ao Estado e ao poder político para promover seus próprios interesses monetários vis, ou os de seus parceiros de negócios.

Do mesmo modo, seus apoiadores, especialmente os capitalistas brancos (poucas centenas de famílias brancas ricas) não são avessos à corrupção. Historicamente, seu capital vem da conquista colonial e da criação, pelo Estado, de uma reserva de mão de obra negra barata a ser explorada nas fazendas, minas e fábricas por meio de grilagem, imposto de palhota, leis de passe, discriminação racial legalizada e, em última instância, violência. Na era do apartheid, o Estado fornecia a mais barata eletricidade do mundo aos capitalistas brancos, e pagava bonitinho pelo carvão de péssima qualidade comprado aos capitalistas africâneres para acender as estações de força da Eskom. Acordos corruptos nos anos do apartheid, e foram muitos, construíram o capital dos brancos e foram parte do modo como os negócios se faziam naqueles anos – incluindo preços de transferência, sonegação fiscal e a quebra de sanções.

Mesmo hoje a corrupção é prática comum no setor privado (ainda, na maior parte, nas mãos dos capitalistas sul-africanos brancos), como demonstrado por meio de numerosos vazamentos de informação em 2017 e 2018. Por exemplo, veio à tona recentemente que empresas sul-africanas mais bem cotadas nas bolsas de valores, aquelas tidas como mais confiáveis, chamadas de blue chips no mercado de ações, tais como Liberty e Illovo, usaram rotineiramente várias formas de sonegação fiscal. Para não serem superadas, várias instituições financeiras sul-africanas foram flagradas manipulando o rand [moeda sul-africana] para lucrar com a volatilidade então criada. Então, como era de se esperar, lá está a Steinhoff [International, empresa de participações sul-africana], que usou veículos especiais para alavancar lucros de modo fraudulento e diminuir as dívidas em seus livros contábeis, em benefício de seus acionistas e altos gestores.

Quando tudo isto veio a público, ficou claro que a companhia estava, na verdade, em dificuldades financeiras, e seu valor global no mercado de ações despencou no final de 2017. Como Zuma, os dias da Steinhoff podem estar contados, e podem mesmo desaparecer. Não obstante, seus acionistas, como [Christoffel F. Henrik] “Christo” Wiese, conseguiram se safar com seus ganhos fraudulentos, e é bem difícil que sejam indiciados pelas falcatruas ocorridas na Steinhoff.

Os capitalistas brancos, deste modo, não tiveram problema algum com a corrupção. O problema que tiveram com Zuma foi terem sido escanteados nas negociações corruptas do Estado sob seu mandato, com nítidas vantagens para a família Gupta e para a elite envolvida com o Enriquecimento da Elite Negra (EEN)[4]. Consequentemente, deram as costas à facção de Zuma e apoiaram Ramaphosa como seu representante: o que queriam era seu dinheiro de volta, envolvendo às vezes alguma corrupção por meio de relações com o Estado e políticos de alto escalão.

Militantes do Congresso Nacional Africano e do Partido Comunista da África do Sul

Isto tudo quer dizer que a corrupção não será encerrada sob a gestão de Ramaphosa. Para piorar as coisas, há o pacto feito em 1994, que viu o grosso do setor privado permanecer nas mãos dos capitalistas brancos. Haveria, em troca, algum EEN, mas, mais importante ainda, seria permitido à liderança do CNA tomar o Estado. Em outras palavras, o capitalismo ficaria no mesmo lugar, incluindo a severa exploração da classe trabalhadora negra sobre a qual se baseava e continua se baseando, mas as caras do Estado mudariam.

Desde então, houve algum EEN, ainda que limitado. Como resultado, os capitalistas brancos ainda dominam o setor privado. Aspirantes a capitalistas ligados de algum modo ao CNA, desejosos de possuir grandes empresas privadas, foram e continuam sendo frustrados em grande medida por estes capitalistas. Num tal contexto, o Estado torna-se o lugar chave, e em muitos casos o único lugar, por meio do qual uma elite oriunda do CNA poderia construir-se como uma poderosa seção negra da classe dominante – e a corrupção tem sido parte deste problema estrutural.

A classe trabalhadora, em sua aposta na batalha contra a corrupção, precisa, portanto, ter clareza de que o regime de Ramaphosa não dará cabo da corrupção. Trata-se de um problema estrutural; não tem nada a ver com boas ou más personalidades. Novas redes de patronagem emergirão, outras, mais velhas – incluindo a corrupção em todos os níveis do Estado – permanecerão, ainda que venham a ser menos flagrantes e diletantes que as existentes no período de Zuma. Ele e os Guptas serão lançados aos leões como símbolos, mas a corrupção no setor privado e no Estado não acabará, porque trata-se de um problema ligado ao caminho tomado pelo desenvolvimento capitalista na África do Sul.

Se houvesse um comprometimento sério no combate à corrupção, deste modo, a estrutura e o propósito da economia sul-africana precisariam ser alterados em seus fundamentos, o que muito provavelmente não será possível de se alcançar sob o capitalismo ou sob o sistema estatal (que entrincheira o domínio e a opressão de uma elite minoritária sobre uma maioria, e permite a corrupção). A tentativa de por fim à corrupção, por definição, deve ser parte de uma luta revolucionária para alterar em seus fundamentos a sociedade que, infelizmente, herdamos.

Notas de tradução

[1] família Gupta é composta pelos irmãos Ajay, Atul e Rajesh “Tony” Gupta, e por Varun, Ashish e Amol, todos sobrinhos de Atul Gupta, sendo os dois últimos atuantes a partir dos EUA. Esta família sul-africana originária de Uttar Pradesh (Índia) detém um império econômico formado por empresas que vão dos equipamentos de computação à mídia e à mineração. Suas relações fraudulentas com o ex-presidente sul-africano Jacob Zuma, pessoais ou por meio da empresa Oakbay Investments, tornaram a família alvo de investigações tanto na África do Sul quanto em outros países.

[2] Matamela Cyril Ramaphosa (n. 1952) é um político sul-africano. Advogado, lutou contra o apartheid desde o movimento estudantil, foi fundador e secretário do Sindicato Nacional de Mineiros (1982-1991). Diz-se ter sido escolhido por Nelson Mandela para sucedê-lo. Exerceu até recentemente as funções de presidente da Comissão Nacional de Planejamento da África do Sul. Empresário, tem fortuna estimada em US$ 550 milhões em 2017, tendo passado pelo quadro dirigente da McDonald‘s South Africa, do Grupo MTN e da Lonmin.

[3] Referência à 52ª Conferência Nacional do CNA, realizada entre 16 a 20 de dezembro de 2007. Em meio a controvérsias e à primeira disputa pela liderança do CNA desde a 38ª Conferência, de 1949, que marcou a ascensão de Nelson Mandela, Oliver Tambo e Walter Sisulo à cabela do partido, a 52ª Conferência marcou o início do período de Jacob Zuma à frente do CNA e o declínio da influência de Thabo Mbeki. Dois anos depois Zuma seria eleito presidente da África do Sul.

[4] Referência ao Empoderamento Econômico Negro (EEN), ou Black Economic Empowerment (BEE) no original, cuja sigla o autor aproveita para dar-lhe outro significado (Black Elite Enrichment, traduzido no corpo do texto). Trata-se de um programa do governo sul-africano existente entre 2003 e 2007, que consistiu na “transferência sustentável e equânime da propriedade, gestão e controle dos recursos financeiros e econômicos da África do Sul para a maioria de seus cidadãos”, nomeadamente aqueles de origem negra, indiana, chinesa ou mestiça. Foi substituído em 2007 pelo Programa Amplo de Empoderamento Econômico Negro (PAEEN), pois resultou apenas no enriquecimento de uma camada muito restrita de indivíduos.

Shawn Hattingh é pesquisador e educador no Grupo Internacional de Informações sobre Pesquisas acerca do Trabalho, da África do Sul, e pode ser contatado por meio de seu correio eletrônico: <[email protected]>. Traduzido, com adaptações, pelo Passa Palavra a partir do original disponível no site Pambazuka News.

1 COMENTÁRIO

  1. O artigo em questão só mostra duas coisas: 1) a África não é um país; 2) independente do que se diga as políticas de restituição são apenas metade do problema. Se não vier dotada de uma recusa mais fundamental ao capital (empoderamento) é só mais um Método de controle social com base na gestão das misérias e tratamento de choque. As elites econômicas continuam a usurpar a maioria independente da epiderme. Fanon sempre esteve certo a descolonização deve ser uma ruptura radical com o colonialismo e isso significa o fim do sistema que o pôs em prática!

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