Por Maurice Brinton

1921

JANEIRO

O Comité de Petrogrado do Partido, fortemente leninista (nas mãos de Zinoviev), lança uma campanha “oficial” preparatória do Décimo Congresso. Antes do Congresso foram tomadas numerosas medidas administrativas para assegurar a derrota da Oposição. Algumas dessas medidas eram tão irregulares que o Comité do Partido de Moscovo em determinada altura votou uma resolução censurando publicamente a organização de Petrogrado “pela não observação das regras de uma discussão correcta”[1].

13 de JANEIRO

O Comité de Moscovo do Partido denunciou a “tendência da organização de Petrogrado pára se transformar num centro especializado na preparação de Congressos do Partido”[2] . Os leninistas estavam a usar a organização de Petrogrado como base de pressão sobre o resto do Partido. O Comité de Moscovo insistiu junto do Comité Central para que este “assegurasse uma distribuição equitativa de material e de oradores… de tal maneira que todos os pontos de vista estivessem representados”[3]. Esta recomendação foi descaradamente violada. No Congresso, KoIlontai afirmou que a circulação da sua brochura tinha sido deliberadamente boicotada[4].

14 DE JANEIRO

Publicação da “Plataforma dos 10” (Artem, Kalinin, Kamenev, Lenin, Lozovsky, Petrovsky, Rudzutak, Stain, Tomsky e Zinoviev). Esse documento apresentou, em forma mais elaborada, as teses de Lenine ao Congresso.

16 DE JANEIRO

A Pravda publica a plataforma de Bukharin, descrita por Lenine como o “supra-sumo da desintegração ideológica”[5].

21 DE JANEIRO

Num artigo da Pravda sobre a crise do Partido, Lenine escreve: “Neste momento acrescentamos à nossa plataforma o seguinte: temos de combater a confusão ideológica dos elementos nocivos da oposição que chegam ao ponto de repudiar toda a “militarização da economia”, de repudiar não só o “método da nomeação” que tem sido o método predominante até agora, mas inclusive todas as nomeações. Em última instância, isso significa repudiar o papei dirigente do Partido em relação às massas sem-Partido. Temos de combater o desvio anarco-sindicalista que matará o Partido se este não o eliminar completamente”. Pouco depois, Lenine escreveria que “o desvio anarco-sindicalista conduz à queda da ditadura do proletariado”[6]. Por outras palavras, o poder da classe operária (“a ditadura do proletariado”) é impossível se houver militantes no Partido que pensam que a classe operária deve ter mais poder na produção (“o desvio anarco-sindicalista”)[a].

Reunião da fracção comunista durante o Segundo Congresso do Sindicato dos Mineiros. Kiselev, um mineiro, defendeu a plataforma da Oposição Operária, que obteve 62 votos — contra 137 para a plataforma leninista e 8 para a de Trotski[7].

25 DE JANEIRO

A Pravda publica as “Teses sobre os Sindicatos” da Oposição Operária. Alexandra Kollontai publica “A Oposição Operária”, que desenvolve as mesmas ideias mas a um nível mais teórico[8].

Atendendo à tempestade política desencadeada pela Oposição Operária deveria haver muito mais documentos dignos de confiança sobre essa tendência. A pouca informação que existe é de fontes leninistas[9]. A virulência dos ataques contra a Oposição Operária sugere que esta tinha um apoio considerável dos operários fabris da base e que isso alarmou seriamente os chefes do Partido. Chlyapnikov (que foi o primeiro Comissário do Trabalho), Lutovinov e Medvedev, dirigentes dos operários metalúrgicos, eram os seus porta-vozes mais notáveis.

“Geograficamente parece ter-se concentrado no Sudeste da Rússia Europeia: a bacia do Donets, as regiões do Don e Kuban e em Samara, província do Volga. Na verdade, em Samara, em 1921, a organização do Partido estava sob o controle da Oposição Operária. Antes da crise do Partido da Ucrânia, em fins de 1920, os membros da oposição tinham uma maioria de simpatizantes no conjunto da república. Outros pontos de apoio localizavam-se na Província de Moscovo onde a Oposição Operária recolheu cerca de 1/4 dos votos do Partido e no sindicato dos metalúrgicos, espalhado por todo o país”[10].

Quando Tomsky abandonou os sindicalistas e se juntou ao campo leninista nos fins de 1921, “explicou” a influência da Oposição Operária pela popularidade das ideias de “democracia industrial” e anarco-sindicalistas dos metalúrgicos[11]. Lembremo-nos que estes mesmos metalúrgicos tinham sido a espinha dorsal dos Comités de Fábrica em 1917.

FEVEREIRO

Durante as discussões préviaa ao Congresso, a facção leninista utilizou-se a fundo da recém estabelecida Comissão de Controle. Conseguiu a demissão de Preobrazhensky e Dzerzhinsky (considerados demasiado “moles” em relação à Oposição Operária e aos trotsquistas, respectivamente) e a sua substituição por “apparatchiks” como Solts que começou por repreender a chefia do Partido, que estava dividida pela sua fraqueza em reprimir a “ultra-esquerda”.

Os leninistas desencadearam uma ruidosa campanha em que focavam insistentemente os temas da unidade e dos perigos internos que a Revolução tinha de enfrentar. E de novo se refugiaram no culto da personalidade de Lenine. Todas as outras tendências foram etiquetadas como “objectivamente contra-revolucionárias”. Conseguiram apoderar-se do controle da máquina do Partido, inclusive em zonas com uma longa tradição de apoio à Oposição.

Foram tão “bem sucedidas” algumas dessas “vitórias” que há sérias dúvidas quanto à sua autenticidade e se não terão sido conseguidas por fraude. Por exemplo. diz-se que em 19 de Janeiro uma Conferência do Partido da Frota do Báltico deu 90% dos votos aos leninistas [12]. Contudo, dentro de duas a três semanas vai desenvolver-se uma forte oposição da Frota, a qual distribuirá em profusão panfletos que proclamam: “O Departamento Político da Frota do Báltico perdeu todo o contacto, não só com as massas mas também com todos os operários politicamente activos. Tornou-se num órgão burocrático sem autoridade… Liquidou toda a iniciativa local e reduziu todo o trabalho político ao nível de correspondência entre secretarias”[13]. Fora do Partido ainda se diziam coisas mais acerbas.

2 A 17 DE MARÇO
Revolta de Cronstadt

Esse acontecimento chave, que teve um profundo efeito sobre o Congresso cuja abertura se deu uns dias mais tarde, já foi pormenorizadamente analisado noutro lugar[*][14].

8 A 16 DE MARÇO
Décimo Congresso do Partido

Este Congresso veio a revelar-se como uma das assembleias mais dramáticas da história do bolchevismo. No entanto, os argumentos utilizados e as batalhas nele travadas eram um reflexo muito distorcido da crise infinitamente mais profunda que o país atravessava. Nos fins de Fevereiro, estalaram greves na zona de Petrogrado e Cronstadt tinha-se revoltado. Ambos os acontecimentos eram apenas a parte visível de um grande icebergue em que a parte submersa representa o descontentamento e frustração.

Desde o início até ao fim do Congresso este esteve sob o controle do Partido. Pairava uma atmosfera de quase histeria como até então nunca tinha sucedido nas reuniões bolcheviques. Nesta altura tornou-se vital para os chefes do Partido suprimir a Oposição que, quer ela o soubesse ou não, e quer o quisesse ou não, se tinha transformado no porta-voz de todas essas aspirações frustradas. Era necessário, acima de tudo, ocultar a imagem de Cronstadt como um movimento que defendia os princípios da Revolução de Outubro contra os comunistas (a ideia da “terceira revolução”), que era exactamente o que os habitantes de Cronstadt proclamavam: “Nós lutamos”, afirmavam os rebeldes, “pelo verdadeiro poder da classe trabalhadora, enquanto que o sangrento Trotski e o voraz Zinoviev e seu bando de sequazes lutam pelo poder do Partido”[15]. “Cronstadt levantou, pela primeira vez, a bandeira da Terceira Revolução, a da revolta dos trabalhadores… A autocracia caiu. A Assembleia Constituinte foi para o diabo. Agora é a comissariocracia que se desmantela…”[16] .

No Congresso, Trotski atacou a Oposição Operária. “Ela propôs palavras de ordem perigosas. Transformaram em ídolo os princípios democráticos. Colocaram o direito dos trabalhadores de eleger representantes acima do Partido. Como se o Partido não tivesse o direito de exercer a sua ditadura mesmo se essa ditadura entrasse em conflito temporário com os devaneios da democracia operária!” Trotski falou do “direito revolucionário histórico de primogenitura do Partido”. “O Partido é obrigado a manter a sua ditadura… sem atender às vacilações temporárias da própria classe operária… A ditadura não se baseia, em cada instante, no principio formal da democracia operária…”.

Marinheiros de Kronstadt, 1921.

O ataque físico a Cronstadt, no qual participaram para cima de 200 delegados do Congresso, foi acompanhado por um assalto verbal maciço contra a Oposição Operária e tendências semelhantes. Embora alguns dos membros dirigentes da Oposição tenham lutado contra os habitantes de Cronstadt (porque ainda tinham ilusões acerca do “papel histórico do Partido” e porque ainda estavam amarrados a lealdades organizativas caducas), Lenine e os chefes do Partido perceberam perfeitamente as profundas afinidades entre os dois movimentos. “Ambos atacaram a chefia do Partido por ter violado o espírito da revolução, por ter sacrificado os ideais democrático e igualitário no altar do oportunismo e da “eficácia” e por se deixarem levar por preocupações burocráticas do poder pelo poder”[17]. As suas exigências também coincidiam em parte em numerosos pontos concretos. Os habitantes de Cronstadt (entre os quais muitos membros dissidentes do Partido) proclamaram que “a República Socialista Soviética só pode tornar-se forte quando a sua administração pertencer à classe trabalhadora, representada por sindicatos renovados… Graças à politica do partido dirigente os sindicatos não tiveram nenhuma oportunidade para se tornarem organizações de classe”[18]. A linguagem era a mesma, inclusive no “feiticismo” sindical.

O Congresso abriu com um virulento discurso de Lenine apelando para a lealdade ao Partido e denunciando a Oposição Operária como uma ameaça à Revolução. A Oposição era um refugo “pequeno burguês”, “sindicalista”, “anarquista”, “originado em parte pela entrada nas fileiras do Partido de elementos que ainda não tinham adoptado integralmente o ponto de vista comunista”[19]. (Na verdade, a Oposição era precisamente o contrário. Era a reacção da base proletária do Partido contra a entrada em massa desses elementos). Os argumentos básicos da Oposição não foram discutidos a nenhum nível. A argumentação não injuriosa era frequentemente confusa. Por exemplo, além de ser: (a) “genuinamente contra-revolucionária”, e (b) “objectivamente contra-revolucionária”, a Oposição Operária era igualmente “demasiado revolucionária”. As suas reivindicações eram “demasiado avançadas” e o Governo Soviético tinha que se concentrar, ainda, em eliminar o atraso cultural das massas[20]. De acordo com Smilga, as reivindicações exageradas (da Oposição Operária) iam contra os esforços do Partido ao dar esperanças aos operários que teriam que ser contrariadas[21]. Mas, acima de tudo, as reivindicações da Oposição Operária não eram revolucionárias no bom sentido da palavra, elas eram anarco-sindicalistas. Era a maldição final. “Se sucumbirmos” disse Lenine numa conversa particular, “é extremamente importante preservar a nossa linha ideológica e dar o exemplo aos nossos continuadores. Nunca nos devemos esquecer disto, mesmo em circunstâncias desesperadas”[22].

Os dias da lua-de-mel de 1917 há muito que tinham passado, assim como a retórica de O Estado e a Revolução. Iam ser desenterrados os cadáveres da ruptura da I Internacional. O crime máximo da Qposição era que alguns dos seus elementos (e mais particularmente os seus elementos marginais, tais como Myasnikov e Bogdanov) faziam perguntas bastante embaraçosas. De uma maneira atabalhoada e ainda confusa, alguns punham em causa a primazia do Partido, outros a natureza de classe do Estado russo. Enquanto as críticas se referiam às “deformações ou distorções burocráticas” desta ou daquela instituição, ou mesmo do próprio Partido, este acomodava-se (de facto jé tinha bastante prática no assunto!). Mas levantar dúvidas sobre esses outros assuntos básicos é que já não podia ser tolerado. A ameaça, apesar de, na altura, estar apenas implícita nos pensamentos da Oposição, era séria. As teses de Ignatov já tinham chamado a atenção para os possíveis perigos da “entrada maciça nas fileiras do Partido de indivíduos das camadas burguesa e pequeno-burguesa” combinada com “as pesadas perdas suportadas pelo proletariado durante a Guerra Civil”[23]. Mas era inevitável que determinadas pessoas extraíssem todas as conclusões dessas teses. Pouco depois do Congresso, Bogdanov e o grupo Verdade Operária afirmavam que a revolução se tinha saldado por uma “derrota completa da classe trabalhadora”. Declaravam mais tarde que “a burocracia, juntamente com os indivíduos da NEP, tinha-se transformado numa nova burguesia, que vivia da exploração dos trabalhadores e se aproveitava da sua desorganização… Com os sindicatos nas mãos da burocracia, os trabalhadores ficaram indefesos como nunca até então tinham estado”. “O Partido Comunista…, depois de se ter tornado no Partido dirigente, o partido dos organizadores e chefes do aparelho estatal e da economia em bases capitalistas… tinha irrevogavelmente perdido o contacto e identidade de interesses com o proletariado”[24]. Este tipo de raciocínio ameaçava a própria base do regime bolchevique e tinha de ser energicamente eliminado da mente dos trabalhadores.

“O marxismo ensina-nos”, diz Lenine, “que só o partido político da classe trabalhadora, isto é o Partido Comunista, tem possibilidade de unir, educar, organizar… e dirigir todas as frentes do movimento proletário e portanto de toda a massa trabalhadora. Sem isso, a ditadura do proletariado não tem significado”[25].

Claro que o “marxismo” também ensinava outras coisas. Dizia sem equívoco possível que “a emancipação da classe trabalhadora ó uma tarefa da própria classe trabalhadora”[26] e que “os comunistas não formam um Partido separado, oposto aos outros partidos da classe operária”[27]. O que Lenine pregava agora não era na verdade o “marxismo” mas o leninismo puro de “Que Fazer?” (escrito em 1902), o leninismo que afirmava que a classe operária por si só apenas podia desenvolver uma consciência sindicalista e que havia que introduzir-lhe a partir de fora a consciência política através dos “veículos da ciência”: a intelligentsia pequeno-burguesa[b]. Para os bolcheviques, o Partido representava os interesses históricos da classe operária, quer ela o percebesse ou não, e quer ela o quisesse ou não. Partindo dessas premissas, qualquer ameaça à hegemonia do Partido, quer em acção ou pensamento, era equivalente a “trair” a Revolução, a violar a História.

“Unidade” foi o tema que permeou todo o Congresso. Devido às ameaças de fora e às “ameaças” de dentro, não foi muito difícil aos dirigentes do Partido fazerem com que o Congresso aceitasse medidas draconianas. Estas vieram a restringir ainda mais os direitos dos membros do Partido. O direito de constituir facções foi abolido. “O Congresso aconselha a dissolução rápida de todos os grupos, sem excepção, que se tenham formado em volta desta ou daquela plataforma…; o não cumprimento desta decisão do Congresso levará à expulsão imediata e incondicional do Partido”[28]. Uma cláusula secreta dava ao Comité Central poderes disciplinares ilimitados, incluindo a expulsão do Partido e até do próprio Comité Central (para o efeito era necessária uma maioria de 2/3). Estas medidas, ponto de viragem na história do bolchevismo em assuntos organizativos, foram aprovadas por esmagadora maioria. Não sem certa apreensão, Karl Radek afirma: “Tinha o pressentimento de que se estava a estabelecer uma lei sem que soubéssemos seguramente contra quem podia ser aplicada. Quando o Comité Central foi escolhido, os camaradas da maioria formaram uma lista que lhes dava o controle (do Comité). Todos sabemos que isso se passou no momento em que as dissensões começaram a aparecer no Partido. Não sabíamos… as complicações que poderiam surgir. Os camaradas que propuseram essa lei julgam que ela é uma arma contra os camaradas que pensam de maneira diferente. Embora vote a favor dessa resolução, pressinto que pode inclusive ser virada contra nós”. Sublinhando a perigosa situação em que se encontravam o Partido e o Estado, Radek conclui: “que o Comité Central nos momentos de perigo tome as medidas mais severas contra os melhores camaradas, se tal considerar necessário”[29]. Esta atitude, ou por outra esta mentalidade [o Partido não pode estar errado em relação à classe; o Comité Central não pode estar errado em relação ao Partido] viria a explicar muitos acontecimentos posteriores. Veio a provar ser um autêntico nó corredio em volta do pescoço de milhares de revolucionários honestos. Encontramo-la em Trotsky ao negar publicamente em 1927 que Lenine tivesse deixado um testamento político, e nas “confissões” da Velha Guarda bolchevique durante os Julgamentos de Moscovo de 1936-1938. Era a reificação do Partido, como instituição. Representa o resumo da alienação do homem em relação à política revolucionária.

Face a essa transformação política (ou por outra, face à brusca aparição do que tinham sido até então alguns dos elementos básicos subjacentes do bolchevismo) as “discussões” reais na Conferência foram pouco significativas. Foram deliberadamente deixadas para o fim. Argumentando ainda dentro do esquema ideológico do “Partido”, Perepechko. membro da Oposição Operária, apontou a burocracia (no Partido) como a origem da clivagem entre a autoridade dos Sovietes (e o aparelho soviético no seu conjunto), e a imensa massa trabalhadora[30]. Medvedev acusou o Comité Central de “desvio que consistia na desconfiança acerca do poder criador da classe operária e em concessões à casta dos funcionários pequeno-burgueses e burgueses”[31]. Para minimizar essa tendência e preservar o espírito proletário do Partido, a Oposição Operária propôs que “todos os membros do Partido fossem obrigados a viver e trabalhar 3 meses por ano como proletários ou camponeses vulgares, realizando um trabalho físico”[32].

As teses de Ignatov exigiam que um mínimo de 2/3 de cada organismo fosse composto por operários. Há muitos anos que não se ouviam críticas tão duras contra os dirigentes. Um delegado causou um tumulto indescritível ao denunciar Lenine como “o maior dos Chinovnik” (arcebispo da burocracia czarista)[33].

Os chefes fizeram o seu jogo habitual. Uma extensa resolução sobre os sindicatos apresentada por Zinoviev foi aprovada por 336 votos — contra 50 para a posição de Trotsky, e 18 para a Oposição Operária[34]. “Zinoviev esforçou-se imenso neste documento por reivindicar uma continuidade absoluta com a doutrina sindicalista… estabelecida pelo Primeiro Congresso Sindical e afirmada no programa do Partido de 1919. Era o truque habitual de criar uma barreira de fumo de afirmações ortodoxas para encobrir a mudança de rumo”[35]. O documento, que falava muito de “democracia operária”, prosseguia sublinhando em termos inequívocos que o Partido dirigiria todo o trabalho sindical.

No penúltimo dia do Congresso, no fim duma sessão, sem qualquer discussão prévia no Partido e depois de já terem saído alguns delegados, Lenine fez as suas famosas propostas relativas à Nova Política Económica (NEP). Propôs a substituição da requisição forçada de cereais aos camponeses, uma das medidas mais odiadas do “comunismo de guerra”, pelo “imposto em géneros”. O controle governamental sobre o stock de cereais terminaria e, como consequência, dar-se-ia a liberalização do comércio de cereais. A esta proposta de extrema importância apenas se seguiram quatro intervenções de dez minutos cada. O relatório oficial do Décimo Congresso ocupa trezentas e trinta páginas das quais só 20 são dedicadas à NEP![36] As principais preocupações do Congresso eram obviamente outras!

Foi então que começou o verdadeiro endurecimento interno. Votou-se uma resolução segundo a qual “a tarefa mais imediata do Comité Central era a uniformização estrita da estrutura dos comités do Partido”. O número de membros do Comité Central passou de 19 para 25, dos quais 5 devotar-se-iam ao trabalho dentro do Partido (visitando especialmente os comités provinciais e assistindo às Conferências provinciais do Partido)[37]. O novo Comité Central efectuou imediatamente uma mudança radical na composição do Secretariado. Os trotsquistas (Krestinsky, Preobrazhensky e Serebriakov), demasiado brandos no apoio à linha leninista, foram demitidos do Comité Central. Também se efectuaram mudanças radicais no Orgburo e na composição de determinadas organizações regionais do Partido[38]. Colocaram-se medíocres “disciplinados” e “seguros” a todos os níveis. “As mudanças organizativas de 1921 foram uma vitória decisiva para Lenine, para os leninistas e para a filosofia leninista da vida partidária”[39].

O Partido, tendo desejado o fim, começava agora a desejar os meios.

Epílogo

MAIO DE 1921
Congresso Pan-Russo do Sindicato dos Metalúrgicos

Este sindicato foi a espinha dorsal dos acontecimentos de 1905. Foi conquistado pelos bolcheviques logo em 1913. Esteve no centro do movimento dos Comités da Fábrica e preencheu muitos destacamentos de Guardas Vermelhos. Nesta altura estava profundamente influenciado pela Oposição Operária. O seu líder, Medvedev, era membro activo da Oposição. Era preciso acabar com a sua liderança no sindicato.

No Congresso dos Metalúrgicos, o Comité Central do Partido deu à fracção do Partido no sindicato uma lista dos candidatos recomendados para chefia do sindicato (sic!). Os delegados dos metalúrgicos, assim como a fracção do Partido no sindicato, recusaram essa lista por 120 votos contra 40. Fizeram-se todos os esforços possíveis para os dominar. A Oposição tinha de ser esmagada. O Comité Central do Partido não tomou em conta a votação e nomeou um Comité de Metalúrgicos da sua lavra[40]. Adeus “delegados eleitos e revogáveis”! Eleitos pela base do sindicato e revogados pelos chefes do Partido!

17 A 25 DE MAIO
Quarto Congresso Pan-Russo dos Sindicatos

Este Congresso devia discutir o papel dos sindicatos no novo sector privado sancionado pela NEP. Tomsky, como presidente do Conselho Central Pan-Russo dos Sindicatos, foi encarregado pelo Comité Central do Partido da preparação das “teses” apropriadas, e de as fazer aprovar primeiro pela fracção do Partido e mais tarde por todo o Congresso. Tudo correu bem, até que o Congresso aprovou por 1.500 votos contra 30 uma moção de aspecto inofensivo, proposta por Riazanov em nome da fracção do Partido, e que viria a provocar um enorme escândalo. A secção chave da resolução afirmava: “o pessoal dirigente do movimento sindical deve ser escolhido sob a orientação geral do Partido, mas o Partido deve fazer um esforço especial para permitir que os métodos normais de democracia proletária vigorem, em particular nos sindicatos, onde a escolha dos dirigentes deve ser deixada aos próprios sindicalistas”[41].

O Comité Central ficou furioso. Atirou-se ao Congresso como um leão: retiraram imediatamente a Tomsky, que nem sequer tinha apoiado a proposta, mais ou menos impessoal, o lugar de representante do Comité Central no Congresso. Esse lugar foi ocupado por sindicalistas famosos como Lenine, Staline e Bukharin cuja tarefa era a de dominar a fracção rebelde. Proibiram Ryazanov de voltar alguma vez a participar em trabalho sindical.

Constituiu-se uma comissão especial chefiada por Staline para “investigar o comportamento de Tomsky”. Concluída a investigação, decidiu-se repreendê-lo severamente pela sua “negligência criminosa” (a de permitir que o Congresso exprimisse os seus próprios desejos). Tomsky foi demitido de todas as suas funções no Conselho Central Pan-Russo dos Sindicatos.

Quanto è fracção do Partido, “convenceram-na” a voltar atrás na sua decisão do dia anterior. Relativamente às outras centenas de delegados não há documentação sobre a sua reacção. Mas que importa? Tinha-se proclamado em 1917 que “todos os cozinheiros deviam aprender a governar o Estado”. Em 1921 o Estado era suficientemente poderoso para mandar em todos os cozinheiros!

Notas

[1] L. Trotsky, Décimo Congresso do Partido, Otvet petrogradekim tovarishcham (Resposta aos camaradas de Petrogrado). pp. 826-827, nota I.

[2] Ibid., p. 779, Apêndice 6.

[3] Ibid.

[4] A. Kollontai, Décimo Congresso do Partido, p. 103.

[5] V. I. Lenin, Obras Escolhidas, vol. IX, p. 35 (ed. inglesa).

[6] Ibid., p. 577.

[a] Lenine levanta aqui claramente a questão “poder do Partido” ou “poder da classe”. Opta pelo primeiro sem nenhuma ambiguidade (sem deixar, é claro, de racionalizar a sua escolha através de uma amálgama forçada entre Partido e classe). Mas vai mais além. Não se limita a identificar o “poder operário” com o domínio do Partido. Identifica-o ainda com a aceitação das ideias dos dirigentes do Partido!

[7] Ibid., p. 79.

[8] O texto completo foi publicado na revista Socialisme ou Barbarie, n,° 35, e no Solidarity Pamphlet, nº 7. [Nota do Passa Palavra: o livro de Alexandra Kollontai com sua versão das teses da Oposição Operária foi primeiramente publicado em língua portuguesa pela editora portuense Afrontamento em 1973 e 1977, e em seguida foi publicado em 1980 pela editora Global com as notas históricas e a cronologia elaboradas pelo grupo inglês Solidarity. Depois disto, nunca mais foi reeditado em língua portuguesa, e hoje custa uma fortuna em sebos. Já as teses de Shliapnikov permanecem inéditas em língua porguesa.]

[9] Ver por exemplo K. Shelavin, Rabochaya oppozitsya (a Oposição Operária), Moscovo 1930.

[10] R. V. Daniels, ob. cit., p. 127.

[11] Tomsky, Décimo Congresso do Partido, pp. 371-372.

[12] Pravda, 27 de Janeiro de 1921.

[13] Citado am A. S. Pukhov Kronshtadtski myatezh v 1921-9. (A Revolta de Kronstadt de 1921), Leninegrado 1931. p. 52. O panfleto de Ida Mett sobre A Comuna de Kronstadt dí uma boa ideia do “descontentamento” crescente na altura em Petrogrado.

[*] Ver o volume Cronstadt — Último Soviet Livre, de Ida Mett, n.° 3 da colecção O Saco de Lacraus, Afrontamento. [Nota do Passa Palavra: trata-se da única edição desta obra em língua portuguesa. Nunca houve qualquer outra reedição, republicação ou nova tradução.]

[14] Ver a seguinte documentação útil: A Comuna de Kronstadt de Ida Mett, Solidarity Pamphlet nº 27, ou Cahiers Spartacus n° 11 Série B, e Kronstadt 1921 de Victor Serge.

[15] Isvestiya vremennogo revolyutsionnogo komiteta (Notfcias do Comité Revolucionário Provisório). 10 de Março de 1921.

[16] Ibid., 12 de Março de 1921.

[17] R. V. Daniels, ob. cit„ pp. 145-146.

[18] Notícias do Comité Revolucionário Provisório. 9 de Março de 1921.

[19] Décimo Congresso do Partido. O sindikalistskoy i anarkhistskoy uklone v nashey partii {Sobra os desvios sindicalista e anarquista no nosso partido). Resoluções I. p. 530.

[20] Ibid., pp. 382-383.

[21] Ibid- p. 258.

[22] Trotsky, Carta a Amigos na URSS. 1930. (Arquivo de Trotsky T 3279).

[23] Décimo Congresso do Partido (Teses de Ignatov).

[24] N. Karev, O gruppe “Rabochaya Pravda” (Sobre o Grupo “A Verdada Operíria”), Bolshevik, IS de Julho de 1924, pp. 31 e seg.

[25] Décimo Congresso do Partido, Resoluções I, p. 531.

[26] K. Marx e F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, Obras Escolhidas, Moscovo (FLPH), 1958, vol. I, p. 28.

[27] Ibid., p. 46.

[b] Mas não se deveria confiar muito nesses elementos. A primeira edição russa de “Que fazer?” incluía no frontispício a celebre máxima de Lasalle: “o Partido fortifica-se depurando-se”.

[28] Décimo Congresso do Partido, “Sobre a unidade do Partido”, Resoluções I, pp. 527-530.

[29] Radek, ibid., p. 540.

[30] Ibid.. p. 93.

[31] Ibid., p. 140.

[32] Ibid., “Resolução sobre o organização do Partido proposta pela Oposição Operária”, p. 663.

[33] Yaroslavsky. ibid., referindo-se e afirmações de Y. K. Milonov.

[34] Ibid., p. 828, pouco claro.

[35] R. V. Daniels, ob. cit., p. 156.

[36] L. Schapiro. ob. cit. p. 308.

[37] Décimo Congresso do Partido, Resoluções, pp. 522-526.

[38] R. V. Daniels, ob. cit., pp. 151-152.

[39] Ibid., p. 152.

[40] Izvestiya Ts. K., nº 32, 1921. pp. 3-*. Ver também Schapiro, ob. cit., pp. 323-324.

[41] Ryazanov. Undécimo Congresso do Partido, pp. 277-278. Ver também Schapiro, ob. cit., pp. 324-325.

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