Por Rodrigo Oliveira Fonseca

1. O consórcio político que está sendo montado para dirigir o Estado brasileiro não pode atuar em uma única frente de ação. Seu programa é tão heterogêneo quanto sua base social e, além disso, é preciso compreender melhor quais são as contradições específicas de seus compromissos e horizontes. A luta de classes não se dá exclusivamente no campo econômico. Se existe uma frente de ação considerada central, pragmática e econômica e outra tida “apenas” como midiática e ideológica, isso não significa que uma delas existe somente para esconder ou sombrear a outra. Seguramente uma está subordinada à outra, o que não significa que a frente de ação “apenas midiática e ideológica” seja simples perfumaria (ou, no caso, cheiro de merda sendo ventilado).

2. O bloco social e político em torno de Bolsonaro que chegou ao governo tem um desafio comum ao bloco petista anterior: a adesão das classes antagônicas do sistema, os capitalistas e os trabalhadores. A extrema-direita terá de se esforçar para convencer que governa em favor de todos, ainda que — em função das prováveis crises de hegemonia que virão — ela seja levada a operar infinitas divisões discursivas, novas ou velhas: cidadãos ativos e parasitascidadãos de bem e petralhas vagabundosempreendedores e preguiçosos, etc.

3. Se o que está sendo feito pelo governo em torno das pautas identitárias pode ser chamado de “cortina de fumaça”, como caracterizar o que foi feito nos governos petistas? Afinal, descontada a política de cotas, a incorporação dessas pautas (e a institucionalização de seus movimentos) pelo petismo não representou — de modo proporcional — avanços em termos de políticas públicas para mulheres, LGBTs e negros. Logo, a promoção de conferências, a adoção de um léxico e certa adesão a uma agenda, quando não viram leis e ações de Estado, podem ser consideradas compensações simbólicas e não deixam de ser também “cortinas de fumaça” que desviam a atenção de outras conferências, de outro léxico e de outras agendas que movimentam muito mais recursos.

4. Uma simples analogia para ajudar a entendermos que não se trata de fumaça de um lado, atrapalhando a visão e incomodando o nariz, e fogo de outro, consumindo tudo: o policial numa favela carioca e o comandante geral da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro — PMERJ numa convenção internacional sobre segurança são braços e bocas distintas de um mesmo aparelho de Estado. Toda sociedade de classes conduz a essa diversificação e especialização na prestação de serviços, cujo mote maior é a unificação do corpo social sob o domínio das classes dominantes. O léxico e a “agenda” do policial na favela tende a ser muito diferente do léxico e da agenda do comandante geral da PM, e não se trata, de modo algum, de simples traduções e adequações de protocolos, palavras e metas, não se trata apenas de um problema de estratificação social.

Pois bem, muito se falou das diferenças entre os discursos de posse no Congresso e no Parlatório. No entanto, nas duas ocasiões houve uma enxurrada de slogans e o reforço das bandeiras centrais de campanha. Nada justifica falar de “abismo” entre elas ou “esquizofrenia”. Para os congressistas e outras autoridades o tom teria sido de “harmonia”, o presidente disse que vai respeitar a Constituição e vai governar com os parlamentares, somente quando falou para a torcida o tom teria sido de guerra… Será mesmo? Os destinatários e interlocutores de textos como esses não podem ser pensados apenas como os públicos ali fisicamente presentes. Para os trabalhadores, os dois discursos foram de guerra. Afinal, por que a promessa vazia “vamos restaurar e reerguer a pátria”, dita no Congresso, seria feita da mesma forma diante dos seguidores do mito sob o sol de Brasília? É preciso falar diferente para interlocutores e ocasiões diferentes, sem subestimar a importância de uns ou de outros. Saber falar nessas duas frentes (e trabalhar nas duas) é fundamental para qualquer governo numa democracia burguesa, e o recente puxão de orelhas do Mano Brown no PT tem a ver com isso.

5. No campo da esquerda tem prevalecido um emprego do termo ideologia análogo ao emprego dado pela extrema-direita. A ideologia seria algo como um compromisso (em geral não dito) que apenas distorce os fatos. Seria produção de fumaça — e uma espécie de fumaça que não indica nenhum fogo. É claro que se deve chamar a atenção para o caráter grosseiramente ideológico (no sentido de comprometido, parcial, limitado) das intervenções do presidente e sua equipe, sobretudo quando insistem que vão “combater as ideologias”. No entanto, é muito pouco apenas chamar a atenção para a ideologia do outro e se contentar com as máximas do “tudo é político”, “todos têm ideologias”, “ninguém é neutro”… Para fazer uma crítica ideológica precisa é importante compreender o papel central das ideologias em produzir/colocar os sujeitos nos “seus devidos lugares”. As ideologias podem cumprir muitos papeis, mas os mais decisivos não são distorcer os fatos, distrair ou esconder a realidade, os mais decisivos são aqueles que criam laços sociais a partir de uma determinada orientação quanto ao que é a realidade e como devemos nos movimentar nela. As ideologias servem para nos informar e nos orientar em meio às práticas e em prol de determinadas ações. Servem para interpretar os fatos como evidências, e sempre em cumplicidade, a partir de certos vazios que em geral não podem ou não devem ser preenchidos.

6. Quando a esquerda toma por estúpida a base social da extrema-direita ela se inscreve na longa tradição das sociedades classistas que infantiliza ou bestializa os pobres. Por mais difícil que seja, é preciso se esforçar para compreender, por exemplo, o que é socialismo na formação discursiva da extrema-direita. Não é um referente vazio, não está ali por acaso, e não é por não ter a mesma referência que ele tem para nós ou para as ciências humanas que ele não significa algo. Chega a ser curioso o fato de tanta gente que abandonou a palavra e o horizonte do socialismo se importar com o seu emprego pelo adversário político. Para além de ser uma solução retórica em meio a um repertório pobre[1], esse emprego também sinaliza um programa concreto, de medidas concretas a serem tomadas contra a esquerda e contra todo um conjunto de políticas de compensação social, de reprodução de mandatos e de conciliação social vigentes ao longo da Nova República, substrato da Constituição de 1988 e ápice dos governos petistas. O lema “acabou a mamata”, espécie de utopia populista da extrema-direita, se volta contra todo o aparelho político e social de conciliação em torno do Estado, montado nos anos 1980 e que há alguns anos atravessa uma crise que pode ser terminal.

Também é revelador o velho uso direitista do termo revolução para o golpe de 1964, para além de uma “disputa de narrativas”. E é revelador para os dias de hoje, tendo relação com a insistência da extrema-direita na ambientação do Brasil e do mundo numa espécie de simulacro da Guerra Fria. Seria um descompasso? No 18 Brumário de Luís Bonaparte Marx diz o seguinte:

A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem estar empenhados em transformar a si mesmos e as coisas, em criar algo nunca antes visto, exatamente nessas épocas de crise revolucionária, eles conjuram temerosamente a ajuda dos espíritos do passado, tomam emprestados os seus nomes, as suas palavras de ordem, o seu figurino, a fim de representar, com essa venerável roupagem tradicional e essa linguagem tomada de empréstimo, as novas cenas da história mundial.

O consórcio político que está sendo montado em torno de Bolsonaro talvez não queira, mas uma parcela significativa de sua base social quer “revolução”, quer a ruptura da legalidade burguesa como medida excepcional de força para “endireitar” o país, para acabar com os “bandidos” — e no universo de referências dos ultra-conservadores e reacionários nós (todos nós, anticapitalistas, reformistas e identitários) somos os piores bandidos[2]. Esse assombramento todo pelos espíritos do passado, que os faz vestir os mofados trajes da Tradição, Família e Propriedade, pode ser um sinal de que uma parcela desse bloco social formado por empresários, militares, milicianos, latifundiários e pastores neopentecostais está disponível para uma aventura maior que a disputa de eleições. Assim, além de uma referência difusa de socialismo como conciliação e tolerância, vemos que existe também um fantasma do socialismo bastante funcional à crise política do Estado brasileiro. Provavelmente a única forma de dissipar essa suposta solução para essa crise, a única forma de evitarmos um novo regime político de exceção, seja fazer com que o socialismo deixe de ser fantasma e passe a ser projeto e, sobretudo, movimento dos trabalhadores — real, massivo, descentrado, o que estava distante de ser em 1964.

7. Tá ok, uma fumaça fétida é produzida diariamente pela equipe de governo, resultado das maquinações e escapes dos seus cérebros pensantes, certo. É verdade, deve haver uma estratégia midiática bem elaborada, mas esta não deve ser espalhar uma gravação da pastora Damares no dia em que se falará qualquer coisa do ex-funcionário laranja então desaparecido; a estratégia parece ser a dos desencontros (quase sempre seguidos de desmentidos ou atenuações), como na apresentação da proposta de reforma da Previdência pelo presidente. Seja como for, “onde há fumaça há fogo”, não importa se não o estivermos vendo. É preciso levar a sério todas as frentes de ação da extrema-direita, tomando aquilo que nos soa pura idiotice ou delírio como peças de um cenário o qual eles querem promover enquanto oportunidade para um enfrentamento direto e aberto ao conjunto das esquerdas, visando o nosso extermínio e abatimento moral.

8. A análise dos dois discursos de posse feita pelo canal Normose do YouTube traz pontos interessantes sobre o léxico, como o emprego do verbo conduzir no Parlatório; mas é possível que a sintaxe seja aí tão ou mais reveladora. O modo de juntar e organizar as palavras numa frase sempre tem compromissos com o sentido, com um direcionamento semântico para aquilo que se diz, com as palavras que se emprega. Chegando ao final de toda aquela cerimônia, naquele que foi o único momento espontâneo do presidente empossado, o único momento de fala não lida, Bolsonaro falou aos seus seguidores:

Essa é a nossa bandeira que jamais será vermelha. [sorri, aponta o polegar para cima e interrompe o fluxo verbal por seis segundos] Se for preciso o nosso sangue pra mantê-la verde e amarela.

Existem pelo menos dois funcionamentos sintáticos possíveis no encadeamento das duas sentenças: 1) o funcionamento retardado – jamais será vermelha se for preciso o nosso sangue pra mantê-la verde e amarela; 2) o funcionamento condicional hipotético sem subordinada – se for preciso o nosso sangue pra mantê-la verde e amarela, Ø [onde Ø é um vazio sintático, marcando a falta de uma sentença subordinada àquela iniciada por “Se”, Se for preciso X, então Y].

O funcionamento retardado é menos provável por conta da longa pausa e também menos lógico. Implicaria em admitir que a bandeira será vermelha se não for preciso o sangue deles para manter as suas cores atuais (Sangue dos militares? Da base social do governo? Dos brasileiros?).

O funcionamento condicional hipotético sem subordinada é como um cheque em branco. Ficamos sem ouvir e sem saber o que acontecerá se for preciso o sangue deles “para manter as cores da bandeira” — leia-se para libertar o Brasil do socialismopara acabar com a mamata ou, simplesmente, para poder governar[3].

9. O grande problema não é nenhuma cortina de fumaça — essa fumaça vem com uma agenda real, constrói laço social, anima as bases do governo, exaspera adversários — e não é tampouco a necessidade de atuar em duas ou mais frentes — em cada uma delas existe gente para resistir e responder. O grande problema é justamente esse vazio em torno do que virá com o fracasso desse governo, que aparentemente nem precisa de muita ajuda externa para tropeçar.

10. Teremos chegado ao ponto de temer esse fracasso por não conseguirmos preenchê-lo com o nosso fogo?

Notas

[1] Pobreza essa considerada enquanto o caráter monossilábico do Partido da Ordem por Marx n’O 18 Brumário de Luís Bonaparte: “Por maior que tenha sido a soma de fervor e declamação de que o Partido da Ordem se serviu da tribuna da Assembleia Nacional contra a minoria, o seu discurso permaneceu monossilábico como o do cristão, cujas palavras devem ser: sim, sim, não, não! Monossilábico na tribuna tanto quanto na imprensa. Quase como um enigma, cuja solução se conhece de antemão. Quer se tratasse do direito de petição ou do imposto do vinho, da liberdade de imprensa ou do livre-comércio, de clubes ou da lei orgânica municipal, da proteção da liberdade pessoal ou da regulamentação do orçamento do Estado, a senha sempre se repete, o tema permanece sempre o mesmo, a sentença sempre já está pronta e tem o seguinte teor imutável: ‘socialismo!’. Declara-se como socialista o liberalismo burguês, o Iluminismo burguês e até a reforma financeira burguesa. Era considerado um ato socialista construir uma ferrovia onde já havia um canal, e era um ato socialista defender-se com um bastão ao ser atacado com uma espada”.

[2] Conforme foi dito no artigo Sem motivos pra rir, [para a extrema-direita] “somos, em outras palavras, uma pequena elite infiltrada em diversos espaços da sociedade civil e até mesmo do Estado. Agora, com o fortalecimento de pautas conservadoras e extremistas perante a opinião pública, com o fortalecimento da direita e da extrema-direita no seio da própria classe trabalhadora, processo este que começou ainda em 2013 […], é a hora do contra-ataque”.

[3] Existe ainda outra possibilidade de ler, sintaticamente, a trôpega frase do presidente, extraindo uma nova oração a partir de um outro emprego para “preciso”. É a implicitação do verbo derramar: Se for preciso [derramaremos] o nosso sangue pra mantê-la verde e amarela. Importa menos comprovar as sérias dificuldades de expressão verbal do presidente do que perceber o quanto esses vazios sintáticos são – de uma ou de outra forma – preenchidos na interlocução a partir de laços ideológicos. Esses laços, essa cumplicidade, é o que faz a base social e política do presidente compreender, tolerar, acobertar e conciliar com as suas falhas, suas faltas e excessos, preenchendo entusiasticamente todos os seus vazios.

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