Por Matheus Dias

Após a vitória da extrema-direita e sua chegada ao poder, parte da esquerda adotou um velho jargão, utilizado muitas vezes e em diversos outros processos eleitorais: “a culpa não é minha, votei em fulano”. Claro, em certa medida, faz sentido o uso de tal retórica, mas qual seria seu valor prático? Será que a esquerda deve abandonar a solidariedade de classe porque determinada fração da classe trabalhadora apoiou o governo Bolsonaro? Qual o impacto disso nas lutas da classe trabalhadora e de que forma é possível construir e contribuir com novas lutas?

Pretendo apresentar aqui algumas observações que tenho feito nesse processo, de forma a contribuir e auxiliar no debate.

1 – Algo que tem se tornado cada vez mais comum nos espaços da esquerda – principalmente após a emergência das lutas identitárias – diz respeito à fragmentação da luta de classes em lutas de identidades. Dessa forma, surgem as acusações e rotulações sem fim que, querendo ou não, têm um impacto significativo na totalidade das lutas. Se pensarmos fora do ambiente acadêmico, poderemos observar casos de machismo, mas como explicar tais coisas para os trabalhadores, que tomam a condição atual da mulher como natural, como explicar que não devem agir dessa forma? Simplesmente, não existe uma fórmula unilateral que seja capaz de dar conta dessa questão. Os movimentos identitários apresentaram apenas as rotulações e suas pautas são vistas como “mimimi”, ou seja, são problematizações bobas, que estão descoladas da realidade. Sabemos, enquanto militantes, que a luta das mulheres é legítima e precisa avançar ainda mais. Por outro lado, a busca pelo lacre – ou pelo like – não possibilita o debate, pelo contrário, ela o fragmenta em torno do “local de fala”. Com base nisso, a esquerda, sobretudo a “nova esquerda”, precisa se reorganizar ou reorientar em torno de seu objetivo principal que é – ou deveria ser – a superação do capitalismo e a extinção da propriedade privada. Me parece utópico querer construir redes de solidariedade entre os trabalhadores excluindo o seu núcleo principal, ou seja, excluindo os trabalhadores.

2 – Recentemente li no Twitter a publicação de um conhecido que foi numa manifestação e um dos trabalhadores que discursava disse ter votado no atual governador, mas, em tom de lamento, disse que não imaginava que as coisas chegariam a este ponto (atraso dos salários, demissões e perseguição aos grevistas). Esse conhecido ponderou que não havia como defender tal indivíduo pois esse “sabia claramente como o atual governo iria agir”. Aqui se encontra o limite da solidariedade de classe, o núcleo daquela retórica que apresentei anteriormente, “a culpa não é minha, votei no Haddad”. Se a solidariedade de classe consiste no “voto”, o que diriam estes aos antigos moradores do Parque Oeste Industrial em Goiânia que votaram em Marconi Perillo (PSDB) para governador do estado e em Pedro Wilson (PT) ou Iris Rezende (PMDB) para prefeito de Goiânia, com a proposta de que teriam regularizadas suas moradias, mas que acabaram brutalmente violentados e expulsos de suas casas?[1] O que diriam estes militantes aos trabalhadores petrolíferos do polo petroquímico de Camaçari na Bahia, em que nos de 1970, Lula negociou a pedido de um empresário, a não-greve do setor?[2] O que me parece, ao menos em parte, é que esse argumento é utilizado com bastante seletividade. Ora, quando o governo não é de “esquerda” a solidariedade esvai-se, quando é, deixa de fazer sentido, pois estaríamos vivendo o “reino dos céus na terra”.

Fatalmente, a solidariedade de classe deixa de importar e fazer sentido, sendo reduzida a um saudosismo e, assim, esvaziado de seu valor concreto. Quando a esquerda perde espaço entre os trabalhadores e deseja avidamente que eles caiam no abismo, a direita cresce e consegue capitalizar essa classe para seus interesses. Depois do abismo, o que resta? Esperar que o governo destrua todos direitos dos trabalhadores, para que com isso as lutas ressurjam e sejam radicalizadas é, no mínimo, esperar pelo trem que passa depois das onze horas.[3]

3 – Por dentro e por fora, a solidariedade de classe – tal como é empregada atualmente – acaba por fragmentar ainda mais as lutas. Os militantes entregam-se a um medíocre padrão de moralidade, como se a esquerda estivesse desintegrada da sociedade, e passa a caçar, tal qual a extrema-direita, os elementos desviantes da norma estabelecida. Dessa forma, a esquerda, na busca pela “santidade” de seus militantes, se compara significativamente ao fascismo da extrema-direita – fascismo esse que ela diz combater. O reflexo disso consiste na incapacidade da esquerda em se vincular às lutas ou apoiar trabalhadores que votaram em Jair Bolsonaro. Mais uma vez, o que me parece é que a esquerda tende a apoiar os trabalhadores que estão associados a ela e rechaçar os que não estão.

Nesse sentido, de que vale a solidariedade de classe, se esta for fragmentada? Claro, existem distinções óbvias nesse processo e vale uma breve reflexão. Como se organiza e o que é a nova classe trabalhadora? Em seu texto “Notas sobre a composição de classe”, o Coletivo Kolinko argumenta que “poderíamos afirmar que o capataz, o chefe da equipe e o gerente são também ‘trabalhadores’ e, portanto, explorados, mas quase toda luta deve se impor contra esses ‘patrõezinhos’. A divisão (hierárquica) do trabalho no processo de produção social é o fundamento para as divisões sexistas e racistas dentro da classe operária. Assim, por um lado, o capital divide os proletários, mas por outro, ele une proletários de todas as cores de pele, gênero, nacionalidade etc., no processo de produção”.[4] Dessa forma, é preciso que a esquerda desenvolva uma compreensão acerca das condições de trabalho dessa nova classe trabalhadora. É importante, sobretudo, analisar as novas formas e relações de trabalho que têm surgido com a tecnologia, que dão uma falsa noção de trabalho autônomo e que, na verdade, é apenas uma nova forma de trabalho precarizado.[5][6] Ainda dentro dessa questão, torna-se necessário acrescentar como a divisão hierárquica do trabalho fragmenta a solidariedade de classe. Nas universidades, por exemplo, é bastante comum a existência de uma solidariedade nas lutas de professores e estudantes. Estes, por estarem em melhor posição, conseguem relacionar-se ou associarem-se por pautas próprias. Por outro lado, a luta do trabalhador precário deixa de ser percebida ou passa a contar com uma ausência de solidariedade. Quem limpa os prédios? Quem organiza as salas? Quem faz a segurança? Quem é responsável pelo atendimento ao público? Esses trabalhadores técnicos ou terceirizados acabam, na maioria das vezes, sofrendo duras violências por parte de seus gestores e sua calamitosa condição de trabalho é drasticamente ignorada pelos que são superiores na hierarquia da divisão do trabalho nas universidades.

Portanto, a solidariedade deve, sobretudo, estender-se aos trabalhadores “invisíveis”, aqueles que não “aparecem”, mas que são fundamentais para o processo de produção. A solidariedade de classe precisa está inserida na noção de composição de classe uma vez que a classe trabalhadora é dividida no processo de produção.

4 – A solidariedade de classe está intimamente ligada à questão da consciência de classe. Dessa forma, precisamos compreender que a consciência de classe não é algo que os militantes imprimem nos trabalhadores, de fora pra dentro, mas que surge nos processos de luta desses trabalhadores. Com base nisso, a retórica do “falta de consciência de classe” ou “se os trabalhadores tivesse consciência de classe, isso não aconteceria”, não passa de algo contraproducente.

Os militantes não são responsáveis por imprimir consciência de classe. Seu papel na luta dos trabalhadores, tendo como base a solidariedade, é apoiar, divulgar e contribuir de forma que possibilite o avanço da luta e da autonomia dos trabalhadores. Marx, durante o processo de redação do estatuto geral da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) observou que “a revolução dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”. Nesse sentido, torna-se necessária a compreensão de que a classe trabalhadora não é um organismo vazio de consciência histórica, carente de um partido de vanguarda ou, ainda, uma classe que não consegue lutar por seus interesses. Se nós, enquanto militantes, pretendemos exercer a solidariedade, precisamos ter em mente que o nosso papel é apenas de apoio e que não cabe a nós dizer qual é o melhor caminho ou como as lutas devem ser conduzidas.

5– Sem dúvidas, o atual ciclo de desenvolvimento econômico possibilitou o avanço do fascismo.[7] As novas formas de trabalho e de repressão à luta dos trabalhadores corroborou significativamente para seu afastamento da esquerda. Sem dúvidas, o debate moral travado internamente, provocou um efeito contrário. Nesse sentido, a esquerda perdeu espaço, uma vez que no debate moral, a direita consegue estar mais alinhada aos trabalhadores. Esse é o limite do debate moral dos movimentos identitários: conceber a existência de perspectivas conservadoras no seio da classe trabalhadora. Dentro disso, vale destacar ainda que a esquerda teve um papel muito importante no regaste do valor moral, uma vez que o tomou para definir “quem é de esquerda e quem não é”. O uso da moral como parâmetro, possibilitou inúmeras formas de trashing, que aludem a uma espécie de “policiamento da militância”. Num campo maior, essas práticas surgem como uma tentativa de escrachar os trabalhadores que não votaram ou foram contrários aos candidatos defendidos pela esquerda.

Ao contrário do que pensa a maioria, a caça aos “bolsominions arrependidos” não aproxima esses trabalhadores da esquerda, pelo contrário, os afasta porque estes não encontram – por diversos fatores – possibilidades de mudança concreta nesse campo político. A esquerda precisa, dentro dessa relação, estar alinhada aos interesses dos trabalhadores, que independem do resultado das urnas. Ainda mais agravante e pontual é a mudança de posturas e posições acerca da compreensão de consciência e solidariedade de classe. Nesse sentido, desejar avidamente que os eleitores do Bolsonaro “quebrem a cara” ou “sofram com seu governo”, se apresenta como um desejo de que toda a classe trabalhadora sofra com condições cada vez mais precárias e humilhantes.

Notas

[1] SILVA, Márcio Luís da. Segregação, repressão e resistência: A ocupação do Parque Oeste Industrial em Goiânia/Go. Dissertação de Mestrado. PPGDH. Brasilia: UNB, 2007. p. 97-99.
[2] Lula, a pedido de Emílio Odebrecht, evitou diversas greves no polo petroquímico de Camaçari nas décadas de 1970 e 1980 (ver aqui e aqui).
[3] Alusão a música “Trem das Onze” de Adoniram Barbosa.
[4] Notas sobre a composição de classe. Coletivo Kolinko.
[5] Para uma melhor compreensão das novas formas de trabalho precarizado, Cf. SLEE, Tom. Uberização: A nova onda do trabalho precarizado. São Paulo: Elefante, 2017. ABÍLIO, Ludmila C. Uberização do trabalho: subsunção real da viração.
[6] Para uma melhor compreensão do conceito de precariado/precarizado, Cf. BRAGA, Ruy. A política do precariado: do populismo a hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2012. Pg. 18-19, 26.
[7] Manolo. Série: Fascismo à brasileira.

O artigo foi ilustrado com gravuras de Käthe Kollwitz

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